“La niñez mapuche: sentidos de pertenencia en tensión”, de Andrea Szulc.

Resenha por María Adelaida Colangelo

 

A infância como campo de disputas. Uma análise antropológica das representações e práticas de e sobre as crianças mapuche da província de Neuquén, na Argentina.

 

Por que a referência à infância indígena costuma suscitar sentimentos e expressões de simpatia e ternura? É o que começa se perguntando a autora deste livro, ao registrar o reforço mútuo das ideias de inocência, pureza, autenticidade que o senso comum atribui tanto às crianças como aos povos indígenas.

A partir dessa pergunta inicial e ao longo das mais de duzentas páginas que conformam seu livro, Andrea Szulc nos convida a romper com essa noção romantizada da criança, e também do indígena mapuche, para dar conta do caráter político e disputado de ambas as identidades nos contextos sociais por ela estudados. Nesse sentido, o leitor não deve esperar uma etnografia descritiva das características “tradicionais” da infância mapuche, mas sim um estudo arguto da dimensão política que atravessa suas heterogêneas e mutantes construções.

Com efeito, o foco da autora está nas disputas pela hegemonia que se desdobram no campo da infância mapuche em torno das formas de definir, nomear, cuidar, formar, conformar como cidadãs as crianças ou picikeche (“pessoas pequenas”, em língua mapuche), assim como no papel ativo das próprias crianças nessas lutas. Mediante uma análise das práticas e representações de e sobre as crianças mapuche, Szulc nos mostra o modo como estas são constantemente interpeladas na sua vida cotidiana por diversos atores e agências sociais – a que a autora chama “usinas”, por serem produtoras de mensagens e ações – como as famílias, os representantes do estado provincial, das igrejas católica ou evangélica, organizações com filosofia e liderança mapuche, meios de comunicação, entre outras. Mas não somente nos permite ver o modo como as crianças recebem essas mensagens identitárias, mas também como se posicionam frente a elas e participam ativamente – ainda que não de maneira totalmente autônoma – na constante rearticulação de suas subjetividades. A saber, trata-se de definições e apelações dirigidas às crianças, mas que também elas interpretam e articulam, outorgando sentido às suas experiências.

Duas premissas sobre a infância sustentam a análise realizada e orientam as escolhas metodológicas feitas pela autora: o caráter de sujeitos ativos, posicionados e reflexivos, das crianças e, ao mesmo tempo, a necessidade de enquadrar sua agência nas relações com diversos adultos e nas representações da infância que eles põem em jogo cotidianamente. É essa dupla condição das crianças como sujeitos com capacidade de agência e reflexão, ainda que estejam condicionadas por suas posições sociais – o que, por sua vez, não os diferencia substantivamente de outros atores sociais – o que permitiu a Andrea Szulc apostar na realização de um trabalho etnográfico com as próprias crianças mapuche, recuperando suas ações e sentidos, mas sem deixar de levar em conta os discursos e as práticas dirigidas a elas, com o intuito de evitar sua essencialização.

O livro é o resultado de um longo trabalho de pesquisa etnográfica desenvolvido ao longo de 12 anos em diferentes comunidades mapuche das zonas centro e sul da província argentina de Neuquén. A continuidade e a profundidade temporal do estudo realizado possibilitou seguir e analisar transformações comunitárias, institucionais, pessoais, ligadas aos processos de iniciação na comuna e etnogênese de que participaram as crianças mapuche e suas famílias.

O texto que compõe o livro está organizado em duas partes, precedidas por uma introdução e seguidas por um tópico final que recupera os debates centrais do texto e suas implicações para a continuidade das pesquisas sobre o tema. Uma série de belas imagens fotográficas, captadas durante diferentes momentos do trabalho de campo, constitui um recurso visual que não somente ilustra, mas completa as argumentações escritas.

A primeira parte do livro, intitulada “Coordenadas conceptuales e históricas”, é conformada por dois capítulos. No primeiro capítulo, a autora realiza um balanço crítico das perspectivas que sobre a infância tem construído a antropologia, para explicitar seu próprio enfoque teórico e metodológico, assim como abalizar os possíveis desafios de um trabalho etnográfico com crianças. No segundo capítulo, apresenta os processos históricos que configuraram, de forma heterogênea, as relações entre o povo mapuche e os estados nacional e provincial. Considerar tais processos e relações levou a situar suas indagações em quatro comunidades com distintas características: rurais, urbanas, antigas ou recentemente constituídas.

Ao longo dos cinco capítulos seguintes, os quais integram a segunda parte do livro, denominada “Sentidos de pertenencia en tensión”, Andrea Szulc vai desdobrando os diferentes cruzamentos identitários em que se constitui a infância mapuche, colocando como eixo analítico os processos de construção de hegemonia e de articulação de subjetividades – conceito que prefere em vez de identidade. Em cada um desses capítulos se busca dar conta do modo como as crianças mapuche são interpeladas e convocadas enquanto crianças pelas distintas agências sociais, em âmbitos sociais particulares – ainda que, com frequência, sobrepostos e articulados entre si –, mas sem perder de vista a maneira como os próprios picikeche se situam e atuam no marco dessas relações sociais.

Assim, no capítulo 3, evidencia-se a heterogeneidade da infância mapuche a partir do modo como as variáveis etária e de gênero atravessam as diferentes – e, por vezes, contrapostas – apelações a e posições sociais das crianças, concebidas como obedientes, vulneráveis, mas também como capazes e responsáveis, de maneira divergente do modelo de criança-aluna universalizada pelo sistema escolar.

O capítulo seguinte se detém sobre a construção hegemônica da infância mapuche e sua formação, que se produz no âmbito da educação formal oficial, encarnada na escola e complementada pela igreja católica. A partir da análise dos sentidos de pertença promovidos pelo “Programa de Lengua y Cultura Mapuche” (PELCM) estabelecido nas escolas provinciais de Neuquén, assim como dos olhares que sobre isso constroem as crianças e suas famílias, a autora mostra a articulação hegemônica entre o “neuquino” como elemento identitário e uma visão “folclorizada”1 e despolitizada do mapuche.

Em contraponto com o anterior, o capítulo 5 dá conta de alguns dos processos formativos e das mensagens identitárias geradas para as crianças a partir das organizações com filosofia e liderança mapuche. Essas organizações lutam contra as perspectivas hegemônicas acerca da infância mapuche, apoiando-se no lugar político da língua (de pertença à comuna, resistência etc.), tanto ao atribuir nomes mapuche às crianças como ao integrar a língua como parte dos projetos de educação autônoma, dirigidos principalmente aos picikeche.

Em seguida, no capítulo 6, retoma-se a articulação hegemônica dos sentidos de pertença da infância mapuche, porém focalizando as mensagens identitárias promovidas pela igreja católica através de suas diferentes missões e ações educativas, as quais, frequentemente, complementam as interpelações realizadas às crianças pelas agências do estado provincial. A consideração das propostas das igrejas evangélicas permite, ao mesmo tempo, compreender novos cruzamentos identitários nos quais as crianças mapuche situam suas práticas e representações.

No sétimo – e último – capítulo, a autora analisa a rearticulação de subjetividades que se produz nas crianças de algumas comunidades a partir da revitalização recente de práticas e rituais promovida, com um sentido contra-hegemónico, por organizações com filosofia e liderança mapuche. A indagação em dois dos rituais revitalizados, dirigidos especialmente às crianças – o katan kawiñ e o bakutuwun – lhe permite mostrar o lugar central da infância nos processos de etnogênese e iniciação na comuna mapuche que se desenvolvem na província de Neuquén, assim como a conjunção do político e do cultural nas disputas identitárias.

Ao longo do percurso realizado, Andrea Szulc logra mostrar o lugar crucial das crianças nas disputas em relação ao lugar do(s) mapuche na província de Neuquén, dando conta da dimensão ineludivelmente política que atravessa os processos de construção da infância.

Nesse sentido, um dos aportes centrais do trabalho consiste em considerar as crianças como participantes ativas na constante rearticulação de suas subjetividades, dando conta da sua capacidade de ação e reflexão, porém sem perder de vista o caráter relacional e situado de suas práticas e representações. Daí a ênfase da autora em inscrever os processos de construção da infância mapuche na complexa trama entre desigualdade social e heterogeneidade cultural, entretecida de maneira particular na província de Neuquén. O cuidado para não perder de vista as relações de poder de que participam – ativamente – as crianças mapuche, evitando “ler” suas ideias e práticas como se fossem totalmente autônomas e transparentes, permite evitar o risco de uma nova essencialização da infância2 e possibilita uma frutífera discussão com as propostas de análise formuladas em termos de “culturas infantis”.

Voltando à pergunta inicial, podemos dizer que o livro aqui apresentado contribui não somente para problematizar a concepção de uma infância inocente e incapaz, mostrando o caráter heterogêneo e conflitante das práticas e representações de e sobre as crianças mapuche, mas também para questionar “o mapuche” como identidade e sentido homogêneos.

Referências Bibliográficas

Szulc, Andrea. La niñez mapuche: sentidos de pertenencia en tensión. 1. ed. Buenos Aires: Biblos, 2015.

Palavras-chave: infância, mapuche, tensões identitárias, etnografia.

Data de recebimento: 10/04/2016

Data de aceite: 20/04/2016

 

1 Que se fez folclórica.

2 Risco de uma essencialização que, tentando evitar a concepção moderna hegemônica da criança natural e essencialmente frágil, incapaz, puro objeto de cuidados e formação, termine apresentando-a, ao invés, como inerentemente livre de condicionamentos, puro sujeito de seus pensamentos e decisões.

 

María Adelaida Colangelo adecolangelo@yahoo.com.ar Licenciada en Antropología por la Universidad Nacional de la Plata (UNLP), Argentina; Máster en Sociología por la Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil, y Doctora en Ciencias Naturales, opción Antropología (UNLP). Docente e Investigadora en la Facultad de Trabajo Social de la Universidad Nacional de La Plata, Argentina.