Editorial – Ed. 18

Frequentemente as injustiças se disfarçam na trama social, quando é mais difícil se dar conta de algumas situações injustas que clamam por mudanças na sociedade. O processo de “familialização” das crianças e jovens, termo usado para descrever a invisibilidade destes atores na dinâmica social a não ser pela ótica de seu pertencimento familiar, determina também a “familialização” das responsabilidades e de uma ética de cuidado em relação à população de crianças e jovens. Seria o caso, por exemplo, de circunscrever as responsabilidades de cuidado àqueles que se gerou – os próprios filhos e filhas, os descendentes. As “outras” crianças e jovens, assim se crê, devem ser responsabilidade de suas próprias famílias, ou do Estado. Se o fato de ter filhos/as pode até se constituir como uma decisão individual, vir ao mundo significa, de um modo muito mais amplo, tornar-se parte da comunidade humana compartilhando com ela uma longa história, ao mesmo tempo trágica e aventurosa, e um destino. Cada nascimento, como diria Hannah Arendt, instaura a possibilidade de um outro começo para toda a humanidade.
Assim sendo, a nova geração representa para todos e todas, um verdadeiro cataclismo de vida e esperança e, portanto, faz sentido perguntar: a quem cabe o cuidado das crianças e jovens a despeito de quem as pôs no mundo?

Urge colocar esta pergunta no presente das sociedades latino-americanas em que um enorme contingente de crianças e jovens estão fadados a sobreviver e se virar sozinhos na ausência de vínculos que concretizem a solidariedade intergeracional mais ampla. Urge criar espaços de discussão que problematizem as injustiças que se cometem quando “familializamos” as responsabilidades do cuidado da nova geração. O assassinato de Marielle Franco, líder negra, vereadora municipal do Rio de Janeiro, Brasil, que escancarou o escárnio, a indiferença e a violência, com que os jovens e crianças das favelas são tratados pelo aparato do Estado – a polícia e outras instituições, nos interpela a continuar sua luta e seu compromisso com os jovens e as crianças, todos eles, como nossos legítimos descendentes.

Nesta edição, refletir sobre a convocação de “desfamilializar” a responsabilidade com a geração mais jovem é provocada pelos dois artigos da seção Temas em Destaque. Um deles, “É o preço de um almoço: sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes no sertão do Pajeú pernambucano, Brasil”, trata justamente do vínculo desumanizador do adulto que usa a criança como objeto de gozo próprio, seja na exploração sexual e/ou comercial. O outro, “Risco e vulnerabilidade: pontos de convergência na produção brasileira sobre juventudes” discute as implicações de se associar a vulnerabilidade dos jovens com suas condições precárias de vida o que conduz, frequentemente, a políticas de repressão, exclusão, e até de extermínio, mais do que a políticas de cuidado. Afinal, somos todos vulneráveis, esta condição sendo constituinte da subjetividade humana. A entrevista desta edição trata um tema difícil e pouco discutido: qual é a relação entre infância e ditadura? Como as crianças viveram este período político naqueles países em que foi instaurado um estado de exceção? Como as relações e a solidariedade intergeracional se modificaram em um momento político em que o ódio era cultivado para com determinadas pessoas, tidas como terroristas, e o regime político se baseava em um controle da voz, da liberdade e de qualquer dissidência?

Finalmente, apresentamos a resenha do livro “Entre a escola e a casa de reza: infância, cultura e linguagem na formação de professores indígenas guarani”, de Domingos Nobre, resenha feita por Renata Bergo e Renata Prado. Na seção do Levantamento Bibliográfico, estão os livros publicados na área das ciências humanas e sociais dos países da América Latina sobre infância e juventude. O levantamento contemplou obras publicadas no período de dezembro a março de 2018 cujas informações puderam ser obtidas nos sites de suas respectivas editoras.

Boa Leitura!
Lucia Rabello de Castro
Editora Chefe