O que você vai ser antes de crescer? Youtubers, infância e celebridade, de Renata Tomaz

Resenha por Juliana Doretto

Aparecer mesmo sem crescer: a ocupação do YouTube pelas crianças

Bons livros costumam começar com bons títulos. Este é o caso de O que você vai ser antes de crescer? Youtubers, infância e celebridade, de Renata Tomaz. A razão de a escolha ter sido feliz foi o fato de a frase expressar bem o teor da obra. Ao buscar compreender melhor as relações sociais e as práticas culturais que podem ser observadas nos canais de youtubers mirins, a pesquisadora mostra que, ali, as meninas (sobretudo elas) e os meninos acabam por desafiar alguns papéis sociais que lhes são estipulados. Entre eles, o principal seria o de a criança se resumir a um sujeito que está sendo preparado para o mundo adulto, desenvolvendo potencialidades a serem exploradas somente quando tiver ingressado nas esferas da formação universitária e do trabalho. Os youtubers, por sua vez, querem ser reconhecidos pelo que são hoje, a partir das brincadeiras que mostram online, da capacidade de criar redes sociais em torno dessa produção e da habilidade em conseguir visibilidade mesmo fora da plataforma virtual. Essas crianças parecem querer transformar a expressão “Vê se cresce e aparece”, relembrada pela autora na introdução do trabalho: elas querem ser visíveis ao mundo agora, mesmo antes de completar seu crescimento físico e cognitivo.

A obra é fruto da pesquisa de doutorado da autora, defendida em 2017 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, e ganhadora do prêmio de melhor tese entre todas as indicadas pelas entidades que formam a Compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação). Foi a premiação que financiou a publicação do trabalho em livro, pela editora da Universidade Federal da Bahia, Brasil. Trata-se de uma obra importante para os estudos da relação entre infância e mídia, investigada a partir do olhar das ciências da comunicação. As sociabilidades e as construções culturais advindas da presença e da participação de crianças em produções midiáticas, bem como do consumo que elas fazem desses conteúdos, têm pautado há algumas décadas pesquisas nos campos da psicologia e da educação, e agora começam a ganhar mais corpo nas investigações comunicacionais brasileiras.

Esses estudos sobre a infância, bem explorados pela autora, sobretudo no primeiro capítulo (Infância e mídia), têm demonstrado há muito que a infância é uma construção social – definida primordialmente pelos adultos –, e não uma etapa de vida definida por critérios biológicos. Nesse sentido, a produção midiática é um dos elementos basilares nessa construção, tendo em vista que ela é um dos grandes espaços de construção e difusão de verdades enunciativas (Foucault, 1998); ou seja, ideias e valores a respeito de processos e fatos sociais divulgados por alguns grupos, com poder para influenciar e estimular essa produção cultural. Nessa disputa de forças, as crianças entram em desvantagem, por sua pouca autonomia social, ainda que seu protagonismo tenha sido bastante estimulado nos últimos anos no campo do consumo (outro ponto ressaltado pela autora). Assim, é também pela mídia que temos acesso, por exemplo, à compreensão de que os nossos primeiros anos devem ser destinados ao brincar e à escola, como forma de preparação física e cognitiva para a vida futura. Por isso, a participação das crianças no mundo laboral e nas arenas das celebridades deve ser proibida ou controlada.

O que Renata Tomaz consegue identificar, como ponto de partida de seu estudo, é que os regimes de visibilidade proporcionados por plataformas digitais como o YouTube são capazes de promover alterações na “verdade da infância” (p. 42) que vem sendo construída em nossas sociedades desde a época moderna. Sua hipótese inicial dizia que se tratava de uma ruptura absoluta com o antigo ideal, mas ela acaba por identificar, no decorrer do trabalho de campo, que vários dos elementos dessa concepção se mantêm, ainda que alterações importantes possam ser detectadas. Mudanças que provocam reações de oposição:

Elas [youtubers] também estão expandindo o espaço da criança no mundo social, uma ação claramente reconhecida, especialmente por aqueles que lhes fazem resistência. Ao afirmarem, “aqui não é o lugar delas”, usuários das plataformas evocam uma visão de infância que restringe as sociabilidades infantis ao ambiente familiar e escolar e retratam a presença das crianças na internet como anormal (Tomaz, 2019, p. 227).

Com o objetivo de procurar entender “que tipo de infância é construída em meio às interações de canais infantis brasileiros do YouTube” (idem, p. 17), a pesquisa investigou quatro páginas de relevo na plataforma: Bel para meninas; Julia Silva; Juliana Baltar e Manoela Antelo, todas youtubers entre 9 e 11 anos, com mais de 1 milhão de inscritos (marca, aliás, que quando atingida gera uma premiação do YouTube aos criadores das páginas, por meio de uma placa dourada). Além disso, essas crianças participam de programas de TV, são convidadas a eventos, escrevem livros e nomeiam aplicativos para celulares. Para compreender esse fenômeno, Renata Tomaz analisa não apenas 120 vídeos veiculados pelos canais, mas também os comentários listados em cada um (buscando marcas da escrita infantil, em meio a centenas de frases, e analisando também as comunicações entre os seguidores e os haters das meninas) e seus quadros enunciativos (títulos, descrições, reações do público por meio de botões que expressam sentimentos e visualizações).

No entanto, a autora compreende que as interações sociais detectadas no site não se limitam a ele, mas prosseguem em encontros presenciais entre os youtubers e seus fãs, chamados de “encontrinhos”, e comumente promovidos por lojas de brinquedo. Em dois eventos como esse, a pesquisadora entrevistou as meninas que nomeiam os canais estudados, a partir de um roteiro semiestruturado, e falou informalmente com crianças enquanto esperavam encontrar seus ídolos – sempre com o consentimento dos entrevistados e de seus responsáveis. Essa interessante articulação é um dos muitos pontos altos do livro, já que acaba por explorar a investigação etnográfica em diversas frentes, mostrando não uma separação entre ambientes virtuais e físicos, mas a contiguidade deles. Tal fato, amplamente já demonstrado em diversas pesquisas com crianças (expostas pela autora), ainda é rechaçado pelo senso comum: a sociedade enxerga a atividade online dos pequenos como algo que provoca distanciamento social e distorção de personalidades e não como outras formas de construção (e exibição) de nossas subjetividades.

Renata Tomaz não trata o processo de youtubing de forma acrítica, mas reconhece que, em primeiro lugar, para fazer parte desse novo palco de projeção de modelos de ser, as crianças devem ter à mão não apenas aparatos tecnológicos, mas também suporte adulto (e, por vezes, empresarial também) e condições econômicas suficientes para produzir os vídeos (daí as youtubers estudadas serem brancas e de classe média, por exemplo). Além disso, a autora compreende que, ao tentar ampliar cada vez mais os números de seguidores e conquistar mais visibilidade, as crianças youtubers reproduzem a lógica do ser empreendedor de si mesmo (Ehrenberg, 2010), que vem marcando as atuais práticas neoliberais do capitalismo. As crianças, ao brincarem em frente a telas para que seus pares as vejam, transformam o ato em “performance”, tendo sempre como meta a conquista de mais fãs, ou de pessoas que “gostam” delas, como reforçam nas suas falas. E para isso, elas não precisam mais esperar o crescimento físico e cognitivo, mas podem conseguir posições mais altas na hierarquia social (ou seja, ser rico e famoso) a partir de seu próprio desempenho. Ao fazê-lo, inspiram outras crianças a buscarem o mesmo, tornando-se exemplos a serem seguidos e reforçando o “culto à performance” que tem dominado a contemporaneidade.

Em cinco capítulos, a pesquisadora vai nos mostrando paulatinamente sua entrada no campo, bem como as descobertas que vai fazendo a partir disso, com o apoio de discussões teóricas interdisciplinares, acionando autores do campo da sociologia, da psicologia e da comunicação, entre outros. Ao levar o leitor consigo nessa jornada, ela o convida a ir desvendando a infância que aparece nos canais das youtubers, e os dados levantados na pesquisa empírica, por vezes, aparecem com mais ou menos destaque, a depender do debate realizado. Nesse sentido, os trechos em que as falas das crianças ganham evidência, nos comentários, nos vídeos ou nas entrevistas analisadas, são especialmente interessantes, a despeito da profunda discussão teórica também realizada.

No capítulo Infância e Youtube, por exemplo, surge a apropriação bem-sucedida do site pelas crianças (apesar de a plataforma não ter sido pensada para elas), por meio da veiculação de vídeos em que elas aparecem em atividades do seu cotidiano, domésticas, como inventar brincadeiras e abrir presentes. Ao contrário de outras celebridades mirins de outrora, elas não mais aparecem em ações “geniais” (não esperadas para sua idade), ou reforçando características estereotipadas de inocência e candura (ligadas ao ideal moderno de infância), mas atraem a atenção de outros meninos e meninas ao dar visibilidade a práticas culturais infantis cotidianas. Ações que podem ser reproduzidas por outras crianças, em suas casas ou então na internet, em canais próprios no YouTube, o que reforça a conexão estabelecida entre as youtubers e seus seguidores.

Já em Infância e cultura lúdica, Renata Tomaz defende que as práticas brincantes das crianças em suas páginas, com formas inventivas de jogar e com o uso de novos e desejados brinquedos, se transformam em capital cultural (Bourdieu, 2001), a partir do qual se forma uma grande rede social. As crianças querem descobrir, com as youtubers, novas possibilidades de brincar. Essas relações serão, por sua vez, comoditizadas, segundo as lógicas de mercantilizações do YouTube: as inscrições nos canais e as visualizações dos vídeos rendem remuneração às meninas youtubers, o que permitiu, inclusive, a aquisição de um imóvel por uma delas.

Assim, os leitores que esperam uma denúncia contundente de possíveis manipulações das crianças youtubers por adultos ou críticas severas ao trabalho midiático das meninas não serão contemplados nesse livro. Afinal, a autora não trata o fenômeno dos youtubers de forma simplista, que agradaria ao senso comum (ou até a alguns pesquisadores), mas revela as diversas camadas desse novo processo midiático, que oferece oportunidades e riscos aos pequenos – como ocorre em diversos campos do mundo social quando explorados pelos meninos e meninas. A autora mostra que as narrativas das crianças que circulam no YouTube representam um novo modo de interferência dos pequenos na construção social da infância que, se não consegue demolir os elementos basilares da atual concepção do ser criança, nos faz pensar em suas limitações e embaraços e na imperativa expansão de suas fronteiras. Como se vê, o bom título faz jus ao livro.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (org.) Escritos de Educação. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 73-79.

EHRENBERG, A. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. Aparecida: Ideias & Letras, 2010.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1998.

TOMAZ, R. O que você vai ser antes de crescer? youtubers, infância e celebridade. Salvador: Editora da UFBA, 2019.

Palavras-chave: infância, mídia, YouTube, youtubers.

Data de recebimento: 09/07/2020
Data de aprovação: 10/08/2020