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A adolescência negligenciada: múltiplos olhares

Um convite à reflexão sobre uma situação de negligência

Encerrando este artigo, apresentamos uma situação fictícia como um convite ao leitor para refletir a respeito do que foi discutido anteriormente.

Aline, uma mulher negra de 15 anos, comparece à consulta na Clínica da Família com seu filho de 1 mês de idade. Começou o pré-natal no último trimestre de gestação, quando foi detectado que estava com sífilis. A gestação não foi planejada, mas Aline ficou feliz com a gravidez. A adolescente mora com sua mãe, de 30 anos, que aceitou sua condição. Ela e o bebê fizeram o tratamento proposto pela equipe de saúde, mas o pai da criança se recusou a fazer os exames e, portanto, não se sabe se ele está com sífilis. Aline e o pai do bebê (16 anos) não moram juntos e ele não quer registrar a criança em seu nome, apesar de manter relacionamento com Aline até o momento. Ele estuda e sua família não tem condições de ajudar financeiramente. A mãe de Aline trabalha fora o dia todo e, portanto, não tem condições de ajudá-la nos cuidados com o bebê. Por não ter com quem deixar a criança, Aline parou de frequentar a escola e, como os gastos aumentaram, tem ido vender doces no sinal ou no trem, levando consigo o bebê, que está em fase de aleitamento materno exclusivo. A médica que atendeu Aline identificou que tanto ela quanto o bebê encontram-se em situação de risco social e de saúde.

Observa-se, nesse caso, vários aspectos que envolvem a ausência de cuidado e autocuidado e revelam formas de negligência com origens, durações e implicações distintas. Do ponto de vista estrutural, o Estado brasileiro se mostra negligente ao não viabilizar direitos sociais de modo universal e seletivamente não priorizar essa fase da vida, a despeito de o ECA assim prescrever em seu artigo 4º (BRASIL, 1990).

A origem de classe, de raça e gênero dessa adolescente posicionam-na de modo muito desfavorável diante das oportunidades de acesso a bens e serviços. Os indicadores sociais anteriormente referidos indicam a invisibilidade ou a visibilidade perversa que o segmento ao qual ela pertence representa diante dos dados de escolaridade, ocupação, moradia, saúde e outros que expressam direitos previstos pelo ECA.

Quando omissas ou inefetivas nas atribuições que lhe competem, as diversas instituições que compõem o Estado tendem a delegar aos familiares e aos próprios adolescentes o atendimento às demandas que também lhe competem. Essa delegação se mostra ainda mais justificada quando motivada por uma alegada “razão comportamental»: gravidez na adolescência, evasão escolar, uso abusivo de drogas, entre outras. No caso de Aline, engravidar e deixar a escola pode ser entendido como uma escolha individual com consequências danosas. A responsabilização individual desfoca a relação dessa adolescente do seu contexto sociocultural e não considera suas escolhas individuais como expressões do seu tempo e das relações sociais mais amplas. A omissão ou ineficiência do Estado não aparece no questionamento sobre suas condições habitacionais, sobre os recursos que seu território dispõe, sobre como a temática da sexualidade e do cuidado com o corpo foi apresentada nas escolas e nas unidades de atenção básica. A passagem da “batata-quente” para a família se traduz numa forma de contenção e de desresponsabilização do Estado, mesmo que a família se encontre desprotegida e, portanto, sem condições de proteger.

A saúde de Aline é outro aspecto que merece atenção. Gravidez na adolescência é um evento de risco para mãe e bebê. Além dos riscos sociais já citados, pode haver ainda anemia, hipertensão arterial grave, mortalidade materna, depressão pós-parto, prematuridade, dentre outros problemas (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2019). Quando acompanhada de uma infecção sexualmente transmissível (IST), como no caso, esse risco é ainda maior, haja vista que a IST aumenta o risco de abortamento, a criança pode nascer contaminada e ter sequelas decorrentes da doença e a exposição a um tipo de IST aumenta a suscetibilidade a associações com outras IST (NERY et al., 2015).

Não é raro que os parceiros não aceitem fazer a investigação para IST, o que demanda dos serviços de saúde um planejamento singular para cada situação, com busca ativa do parceiro, a fim de compreender os vínculos afetivos existentes, de proporcionar o cuidado adequado à situação e a proteção dos envolvidos (pai, mãe e bebê).

Sexualidade, métodos contraceptivos, planejamento da gravidez e prevenção de IST são temas que precisam ser incluídos no dia a dia dos adolescentes. Laços familiares fortalecidos, rede de apoio próxima e atuante, conversas no ambiente escolar ou nos serviços de saúde podem proporcionar espaços “terapêuticos” e de troca de informações sobre esses temas fundamentais aos adolescentes. No caso de Aline, prevenir IST e outra gravidez em curto prazo, proporcionar a volta à escola e providenciar vaga em creche para seu bebê são ações de proteção que não devem ser negligenciadas, pois são fatores determinantes para sua saúde e inserção na sociedade.

O que foi observado a respeito das dimensões social e de saúde implicadas no caso nos faz pensar no caráter indissociável entre universo psíquico e universo sociocultural. Os importantes elementos de natureza psíquica, conscientes e inconscientes, implicados nesse caso se entrecruzam com aqueles que concernem a um contexto determinado. O ambiente desempenha papel fundamental desde o início da vida de cada indivíduo e a noção de ambiente não se limita aos cuidados do outro imediato, ou seja, exercido por aqueles que desempenham a função materna e paterna. É preciso ter em conta o aspecto fundamental de outra camada, constituída justamente por objetos sociais vinculados à qualidade no plano do laço social no interior do qual a experiência subjetiva se forma e transcorre.

Como tópico de especial relevo, do ponto de vista psicanalítico, vale sublinhar a situação da gravidez em sua ressonância psíquica. Quais seriam os elementos vinculados aos desejos, às fantasias infantis que fazem parte da história subjetiva dessa jovem, que teriam levado-a, no que tange aos fatores de natureza psíquica, a engravidar tão cedo? Uma multiplicidade de fatores certamente esteve em jogo trazendo à cena sua história singular de vida, devendo-se levar em conta não somente os vividos atuais, mas também o que houve de determinante na sua infância.

A existência de certa quebra da proteção de si mesma, da negligência do cuidado de si, tendo em vista a precoce exposição a uma vivência tão crucial e complexa como a maternidade, comporta em si mesma a esfera corporal, já que se trata de um ato no qual a capacidade psíquica de mediação, do psiquismo poder dar conta do turbilhão interno que está em curso, parece apresentar falhas significativas. A questão que se coloca é se essa atuação não seria reveladora de precariedade da utilização dos recursos psíquicos diante das dificuldades colocadas pela experiência da própria adolescência.

No caso em questão, a falta de proteção, de confiança no amparo de um ambiente mais amplo, social, relativa aos objetos sociais, parece ter desempenhado forte papel nessa situação, em que vem abruptamente a se tornar cuidadora, agora como mãe. Poderia haver nessa passagem, em algum plano, a tentativa de conquistar uma posição subjetiva afirmativa. Mas, ao se tornar mãe nessas circunstâncias, a jovem paradoxalmente vem a se fixar numa posição de dependência. A relação mãe/filha, própria à vida infantil violentamente, se pereniza – negligência de si mesma, da sua possibilidade de seu efetivo crescimento como sujeito, negligência do outro, enquanto ameaça potencial de precariedade a que a nova criança possa ser exposta. Estamos, assim, diante de significativos entraves no trabalho de luto que o adolescente deverá necessariamente fazer, tarefa nada simples, e que se realiza num espaço, relacional, no âmbito do mundo interno, do ambiente familiar e na inserção social.

Ao apresentarmos a negligência como uma manifestação de violência nem sempre visível e enfrentada na adolescência, consideramos sua ocorrência como um processo, e não como uma circunstância episódica. As elaborações subjetivas, assim como as determinações sociais, são necessárias ao seu reconhecimento e superação. As reflexões apresentadas apontam para a complexidade da prevenção e da intervenção em situações de negligência às quais muitos adolescentes estão submetidos no nosso país, sendo necessárias análises situacionais e a implementação de ações com olhares simultâneos de diversos campos do saber.

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Resumo
Neste artigo, a adolescência é apresentada a partir de múltiplas dimensões que a caracterizam, fundamentada por formulações de distintos, porém complementares, campos disciplinares sobre essa experiência de vida. A proteção do adolescente é considerada uma atribuição coletiva, incluindo, além da autoproteção, um amplo conjunto relacional e institucional com seus recursos diferenciados, necessários e desejáveis para o asseguramento da qualidade de vida. Tendo como foco a negligência, em suas diferentes figuras, a adolescência é explorada em sua dimensão relacional, segundo a perspectiva de três áreas: a Medicina, o Serviço Social e a Psicanálise. O artigo é finalizado com um relato de atendimento produzido pelas autoras inspirado em demandas cotidianas de uma unidade de saúde, envolvendo uma adolescente em situação marcada por formas distintas de negligência, reflexão na qual se evidencia a riqueza de uma análise interdisciplinar acerca das temáticas exploradas.
Palavras-chave: violência, negligência, adolescente, trauma, fatores de risco.

La adolescencia negligenciada: múltiples miradas
Resumen

En este artículo se presenta la adolescencia desde las múltiples dimensiones que la caracterizan, a partir de formulaciones de campos disciplinares diferentes pero complementarios sobre esta experiencia de vida. La protección del adolescente se considera una atribución colectiva, que incluye, además de la autoprotección, un amplio conjunto relacional e institucional con sus recursos diferenciados, necesarios y deseables para asegurar la calidad de vida. Teniendo como foco la negligencia en sus diferentes figuras, la adolescencia es explorada en su dimensión relacional, según la perspectiva de tres áreas: la Medicina, el Servicio social y el Psicoanálisis. El artículo termina con el relato de un atendimiento realizado por las autoras, inspirado en demandas cotidianas de una unidad de salud, envolviendo una adolescente en situación marcada por formas distintas de negligencia, reflexión en la cual es evidenciada la riqueza de un análisis interdisciplinar acerca de las temáticas exploradas.
Palabras clave: violencia, negligencia, adolescente, trauma, factores de riesgo.

Neglected adolescence: multiple views
Abstract

In this article, adolescence is presented from the multiple dimensions that characterize it, based on formulations from different but complementary disciplinary fields on this life experience. Adolescent protection is considered a collective attribution, including, in addition to self-protection, a broad relational and institutional set with its differentiated, necessary and desirable resources to ensure quality of life. Focusing on neglect, in its different figures, adolescence is explored in its relational dimension, according to the perspective of three areas: medicine, social work and psychoanalysis. The article ends with a report produced by the authors, inspired by the daily demands of a health unit, involving an adolescent subjected to different forms of neglect, a reflection in which the richness of an interdisciplinary analysis on the themes explored is highlighted.
Keywords: violence, neglect, adolescent, trauma, risk factors.

Data de recebimento – 19/07/2021
Data de aprovação – 12/10/2021

Joana Garcia joanagarcia@ess.ufrj.br

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, Brasil. Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora titular da Escola de Serviço Social/UFRJ, Brasil. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Trabalho sobre Infância, Juventude e Famílias (NETIJ). Associada ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA-RJ).

Ana Lucia Ferreira analuferr@gmail.com

Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Médica pediatra. Doutora em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/Fiocruz. Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ, Brasil.

Marta Rezende Cardoso rezendecardoso@gmail.com

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. Psicóloga; Psicanalista; Doutora em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental pela Université Paris Diderot, França; Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil; Pesquisadora do CNPq.