Foto: Unsplash

A notificação compulsória da violência contra crianças e adolescentes e seus desdobramentos via Conselho Tutelar

Joana Garcia
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-7137-075X

Vanessa Miranda Gomes da Silva
Instituto Nacional de Câncer, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-8510-1342

DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.42585

Introdução

No Brasil, toda suspeita ou confirmação de violência contra crianças e adolescentes deve ser compulsoriamente notificada ao Conselho Tutelar. Essa instrução foi estabelecida a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e consta em seu artigo 13 (BRASIL, 1990). A notificação é, portanto, o primeiro instrumento de garantia dos direitos de crianças e adolescentes após a ocorrência ou suspeita de violência.

Consideramos que ainda há, no Brasil, uma naturalização de certas manifestações da violência, bem como das implicações de sua ocorrência (PAIXÃO et al., 2018). Politizar essa questão implica reconhecer as diversas expressões da violência, tornar o que é considerado natural ou imutável em algo que seja preferencialmente evitável, publicizar as implicações do ato violento e considerar estratégias de enfrentamento, responsabilização e reparação (BRASIL, 2010, 2018). Além de favorecer a visibilidade e a politização sobre as formas de violência, a notificação potencialmente impulsiona um conjunto de ações de diversos atores sociais com vistas a intervir na situação e a prevenir novos episódios de violência. Ademais, ao documentar as ocorrências, produz dados que compõem sistemas de informações e subsidiam a elaboração e o planejamento de políticas públicas para o seu enfrentamento e prevenção.

A violência é um fenômeno difuso nas relações sociais, com múltiplas expressões, com distintas origens e, por isso, de difícil enfrentamento e erradicação. Diante da complexidade da violência e de suas manifestações contra crianças e adolescentes, seu enfrentamento indica a importância de um trabalho em rede. Embora o Conselho Tutelar seja o órgão de referência em casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes, o trabalho articulado deve caracterizar a natureza de sua intervenção (BRASIL, 1990), rompendo com um modelo de “pronto-socorro” que caracterizou as políticas assistenciais tradicionais (GONÇALVES; BRITO, 2011).

A rede é uma estratégia operacional na gestão das políticas públicas (FLEURY, 2005), entendida como um conjunto articulado de instituições governamentais, não governamentais e informais, serviços e programas que potencialmente compartilham interesses comuns e recursos materiais e humanos para alcançar um determinado objetivo (BÖRZEL, 1997). Nas ações voltadas para crianças e adolescentes, a rede é composta por atores e instituições do chamado Sistema de Garantia de Direitos (SGD)1. Segundo Aquino (2004), a prática do SGD ganha concretude por meio das redes de proteção integral. Para a autora,

[…] a noção de rede permite traduzir com mais propriedade a trama de conexões interorganizacionais em que se baseia o SGD, pois compreende o complexo de relações acionadas, em diferentes momentos, pelos agentes de cada organização para garantir os direitos da população infanto-juvenil (AQUINO, 2004, p. 329).

A despeito de o trabalho articulado na forma de rede ser um princípio e uma estratégia de intervenção dos Conselhos Tutelares, sua prática é atravessada por variações em torno da própria concepção de rede, assim como do entendimento acerca das competências de cada ator interveniente. O estudo realizado por Burgos (2020, p. 377) indica “que as redes de proteção são constituídas por atores que realizam in acto a interpretação dos direitos da criança, ao mesmo tempo em que constroem o próprio significado da ideia de rede”. Essa livre interpretação nem sempre encontra convergência entre os atores, o que afeta diretamente a forma de a rede se organizar e o modo pelo qual praticam o direito da criança.

Este artigo é fruto de uma pesquisa qualitativa realizada em 2019 no município de Curitiba, Brasil, com o objetivo de considerar o potencial de mobilização da rede a partir do instrumento de notificação compulsória da violência doméstica e familiar2 contra crianças e adolescentes. O estudo enfatizou os casos notificados de violência doméstica e familiar porque verificamos que, segundo os registros do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA)3, a família é apontada como o principal violador dos direitos da população infantojuvenil, sendo o direito à convivência familiar e comunitária o grupamento de direitos mais violado. A expressiva ocorrência de notificações de violência doméstica é abordada em vários estudos empíricos que enfocam a legitimidade e a naturalização de práticas violentas (VENTURINI; BAZON; BIASOLI-ALVES, 2004), a maior permanência e exposição da criança a um tipo de relação de poder (BRITO et al., 2005), a maior incidência da violência doméstica entre famílias pobres (DAY et al., 2003), entre muitos outros. Sobre esse último enfoque, consideramos que o cuidado e a socialização de crianças são bastante demandantes para as famílias de um modo geral, mas as condições materiais – expressas não apenas na renda, mas em todos os recursos que podem ser mobilizados para que as famílias cumpram essas funções – são determinantes na análise das tensões familiares. No entanto, convém considerar que, quando se discute violência doméstica, o olhar sobre o modo de vida das famílias empobrecidas, especialmente das mulheres mães, é historicamente mais rígido e judicativo e, por isso, as famílias pobres, por estarem mais expostas ao controle das instituições públicas, são as mais notificadas por situações de violência. Além disso, os dados, a nosso ver, traduzem a complexidade do tema (em relação aos fundamentos e às manifestações da violência), e não as supostas evidências para explicações causais simplificadoras.

Metodologia da Pesquisa

Contextualizando o cenário do estudo

A pesquisa de campo foi realizada no município de Curitiba porque, com base em levantamento bibliográfico (LAVORATTI, 2013), ele se destaca por suas ações pioneiras voltadas ao enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes. Esse destaque se deve à organização do que se tornou um programa intersetorial da Prefeitura de Curitiba: a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência.

Segundo Lavoratti (2013), a Rede de Proteção de Curitiba teve origem em 1998 por uma construção coletiva e independente de agentes públicos, ou seja, sem a autoria dos representantes do poder político formal. Inicialmente, não foi instituída com o propósito de organizar um trabalho articulado intersetorialmente; a proposta era a de implantar um protocolo de notificação da violência contra crianças e adolescentes. Com o objetivo de dar visibilidade ao fenômeno, a primeira medida tomada pelo grupo que iniciou os trabalhos da Rede de Proteção foi a criação de um instrumento padronizado para a notificação da violência, conforme descrição de Lavoratti (2013). A ideia era unificar as informações sobre a violência cometida contra crianças e adolescentes com base em uma prerrogativa legal que exigia dos profissionais a comunicação dos casos de violência de que tinham conhecimento. No ano de 2000, a Rede de Proteção de Curitiba foi institucionalizada, passando a ser organizada em Coordenação Municipal, Coordenação Regional e Redes Locais, com centralidade administrativa e coordenação geral na Secretaria Municipal de Saúde, que é o órgão que define, entre outros assuntos, as pautas e o cronograma das reuniões com as coordenações regionais e com os parceiros, além de gerenciar toda a organização do trabalho intersetorial. Esse é um exemplo de como uma iniciativa política de constituição de rede partiu de setores organizados da sociedade e foi institucionalizada pelo Estado.

Os objetivos da Rede de Proteção de Curitiba estão definidos em um escopo de ações muito consistentes e ampliadas, com ênfase na prevenção e no processo educativo, sem priorizar a criminalização dos perpetradores, o que constitui uma medida contra hegemônica no trato da violência. São estes os objetivos:

[…] contribuir, de forma integrada, para a redução da violência contra a criança e o adolescente em Curitiba, principalmente no que se refere à violência doméstica/intrafamiliar e sexual; tornar visível a violência que se pratica contra crianças e adolescentes, estimulando a notificação dos casos; capacitar os profissionais para a percepção da violência e para o desenvolvimento do trabalho integrado e intersetorial; oferecer às vítimas, aos autores da violência e às famílias o atendimento necessário para ajudar na superação das condições geradoras de violência, bem como das sequelas dela resultantes; diminuir a reincidência da violência pelo acompanhamento e monitoramento dos casos; desenvolver ações voltadas para a prevenção da violência, com o envolvimento da comunidade (CURITIBA, 2008, p. 17).

O município de Curitiba é dividido em 10 regionais, segundo o Decreto Municipal nº 844/2018. Essa divisão administrativa é referência para todas as áreas de política pública e para a organização dos serviços, e cada regional possui um Conselho Tutelar. O Conselho Tutelar onde foi realizada a pesquisa de campo fica localizado na chamada Rua da Cidadania, um espaço público criado pela Prefeitura de Curitiba com o objetivo de facilitar o acesso aos serviços municipais, tais como aquisição de cartão transporte, passe escolar, passe idoso, emissão da carteira de trabalho e outros documentos de identificação. Esse espaço, além de ser a sede da Administração Regional, abriga o Núcleo Regional da Educação, o Distrito Sanitário, o Instituto de Identificação do Paraná, o Núcleo da Companhia de Habitação Popular de Curitiba, o Armazém da Família, o Núcleo de Atendimento da Fundação de Ação Social (FAS)4, entre outros. A proximidade de tantos equipamentos constitui um aspecto favorável para as duas primeiras etapas da construção de rede, que, segundo Rovere (1999), são assim caracterizadas: reconhecer, conhecer, colaborar, cooperar e associar. Rovere (1999) aponta a importância da gestão participativa e do entendimento da heterogeneidade como uma característica, e não como adversidade, e, embora se baseie em uma concepção de rede em saúde, suas considerações sobre os vínculos5 para um trabalho articulado se prestam às políticas sociais gerais. Reconhecer os serviços existentes em curso (mapeamento) e conhecer mais detalhadamente o trabalho desenvolvido por eles são ações melhor alcançadas pela proximidade territorial.

No momento da realização desta pesquisa, esse Conselho Tutelar contava com cinco conselheiros tutelares, um conselheiro suplente, dois profissionais administrativos e um motorista, estes últimos vinculados à FAS. Esse equipamento não possuía uma equipe técnica formada por assistentes sociais e psicólogos para dar suporte às intervenções dos conselheiros tutelares.

Instrumento de coleta de dados

A primeira etapa da pesquisa de campo compreendeu a coleta de dados em fichas de notificação de violência contra crianças e adolescentes recebidas e arquivadas no Conselho Tutelar. As fichas continham questões relacionadas aos dados gerais da pessoa atendida (nome, filiação, idade, sexo, raça/cor, escolaridade, estado civil, endereço, se a vítima tem filhos), da ocorrência (data e local da ocorrência, unidade da notificação, profissional que notificou, tipo de violência, natureza da violência, meio de agressão), do possível autor da agressão (vínculo com a pessoa violentada, sexo do(a) agressor(a), se o(a) agressor(a) é reincidente) e sobre o encaminhamento realizado, dentre outras.

O objetivo da análise documental foi identificar quais situações eram notificadas, como eram caracterizadas e os desdobramentos da notificação desde o seu recebimento no Conselho Tutelar até o seu encaminhamento para a Rede de Proteção. De um universo de 518 fichas de notificação, 46 foram selecionadas para análise dos dados. Essa amostra foi definida pelo critério de saturação (MINAYO, 2017), o que significa que as fichas analisadas foram consideradas suficientes por se tornarem repetitivas no conteúdo, demonstrando pouca ou nenhuma variação, sendo, assim, redundante persistir na coleta de dados para os propósitos da pesquisa. Convém considerar que muitos campos não estavam preenchidos, o que pode indicar desvalorização do registro, falta de coleta da informação, priorização dos dados considerados mais relevantes, visão circunscrita do uso da ficha, entre outros. Além das fichas de notificação, tivemos acesso aos dossiês organizados pelo Conselho Tutelar, os quais constituíam-se de documentos que informavam as ocorrências relacionadas a determinada família, além de registros dos atendimentos e encaminhamentos feitos em função da mesma.
Como instrumento de coleta de dados, utilizamos, ainda, a observação nas reuniões de uma rede local. São reuniões de curta duração (em média, duas horas), cujo objetivo é discutir os casos notificados de violência contra crianças e adolescentes. Ao serem apresentados, os representantes dos setores de políticas informam as providências que já foram tomadas ou aquelas ações que ainda serão desenvolvidas para o enfrentamento da questão. As discussões ali ocorridas eram registradas em atas e encaminhadas para a coordenação regional.

A última etapa da pesquisa de campo compreendeu a realização de entrevistas semiestruturadas com cinco conselheiros tutelares atuantes no município de Curitiba com o objetivo de conhecer as concepções que orientam a sua atuação junto às famílias em situação de violência, a sua relação com os demais atores da rede de proteção à criança e ao adolescente, bem como conhecer o fluxo de notificação dos casos de violência contra a população infantojuvenil. Contamos com a participação de cinco conselheiros tutelares (quatro titulares e um suplente) com o seguinte perfil: idade entre 41 e 69 anos, sendo quatro do sexo feminino e um do sexo masculino, com filhos (exceto um), praticantes da religião católica (com exceção de um, sem religião), com formação de nível superior, atuando no Conselho Tutelar no mínimo há quatro anos. Antes de exercerem a função de conselheiro tutelar, apenas um não exercia atividade laborativa: dois atuavam na área da Educação, sendo um funcionário público municipal; um atuava na área da assistência social como funcionário público municipal; e um era vinculado a uma organização religiosa que oferecia atendimento à criança e ao adolescente. Segundo os depoimentos, a ocupação anterior motivou a candidatura a conselheiro tutelar, com exceção de dois, que desconheciam essa função. Todos receberam capacitação sobre o ECA e sobre os serviços ofertados no município de Curitiba antes de iniciarem a atuação como conselheiros tutelares.

As entrevistas foram realizadas mediante a autorização dos participantes e a assinatura do Registro de Consentimento Livre e Esclarecido (RCLE). Para garantir o sigilo da identidade dos participantes, os depoimentos foram enumerados aleatoriamente, em sequência não correspondente à ordem de realização das entrevistas.

Para a realização da pesquisa foram considerados os aspectos éticos relacionados à pesquisa com seres humanos e o projeto foi aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa vinculado à instituição de origem das pesquisadoras.

1 – O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) institucionalizou o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) por meio da Resolução nº 113, de 19 de abril de 2006.
2 – Entendemos como violência doméstica e familiar aquela que ocorre no âmbito da unidade doméstica, espaço de convívio permanente de pessoas com ou sem vínculo consanguíneo, e é cometida por pessoas consideradas como sendo da família, comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços consanguíneos, por afinidade ou por vontade expressa (BRASIL, 2006).
3 – Sistema desenvolvido para monitorar a situação de violação dos direitos da criança e do adolescente no Brasil As informações contidas no SIPIA são inseridas pelos conselheiros tutelares e correspondem às demandas atendidas nesse equipamento.
4 – A Fundação de Ação Social é um equipamento público, da Prefeitura de Curitiba, responsável pela política e pelas ações de assistência social do município.
5 – Para Rovere (1999, p. 21), “redes son redes de personas, se conectan o vinculan personas, aunque esta persona sea el director de la institución y se relacione con su cargo incluido, pero no se conectan cargos entre sí, no se conectan instituciones entre sí, no se conectan computadoras entre sí, se conectan personas. Por esto es que se dice que redes es el lenguaje de los vínculos, es fundamentalmente un concepto vincular.”
Joana Garcia joanagarcia@ess.ufrj.br

Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora Titular da Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Trabalho sobre Infância, Juventude e Famílias (NETIJ), Brasil. Associada ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA-RJ), Brasil.

Vanessa Miranda Gomes da Silva vanessa.miranda@inca.gov.br

Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Tecnologista em C&T. Assistente Social do Instituto Nacional de Câncer, Rio de Janeiro, Brasil.