Foto: Pxhere

Adolescência e suas marcas: o corpo em questão

Do invisível biológico à superfície que se mostra: fronteiras da pele

A pele se constitui no maior órgão do corpo humano, sendo responsável por cerca de 16% do peso corporal, é formada pela epiderme, que é a camada mais visível aos olhos, a derme e a hipoderme (ou tela subcutânea), que são as camadas mais profundas. A pele tem por função isolar as estruturas internas do ambiente externo, servindo também como proteção a outros órgãos (DOMANSKY; BORGES, 2012). Quando o indivíduo nasce, a pele ainda sofre transformações. A pele infantil ou jovem se apresenta como uma pele em formação, ou seja, uma pele sensível, com todas as suas estruturas de um adulto. Com a entrada na adolescência, a pele começa a sofrer alterações por influência hormonal, em que se destaca a atividade das glândulas sebáceas, e a resposta do sistema sensorial é altamente ativada (BERNARDO; SANTOS; SILVA, 2019; ROCHA; HORTA; SELORES, 2004). É através de estímulos à pele, de receptores táteis, que percebemos o toque, a pressão, a temperatura.

Se, nessa perspectiva mais orgânica, já é possível vislumbrar sua função em isolar estruturas internas do ambiente externo, a pele será compreendida aqui em sua função demarcatória. Nessa lógica demarcatória, o contemporâneo vai assistir a um movimento que a radicaliza, justamente porque escreve sobre essa função bio uma nova demarcação, seja por palavras ou imagens, como na tatuagem, seja nos cortes ou nas cirurgias plásticas. Ou seja, o corpo já não é uma versão irredutível de si, um corpo somente bio, mas uma construção pessoal, um objeto transitório e manipulável suscetível de mudanças segundo os desejos do indivíduo (LE BRETON, 2004).

O corpo, entendido como universo signo, é representado através da aparência, dos movimentos e das sensações como um corpo que é comunicante, que deixa rastros de sentidos, onde a pele (a epiderme) adquire uma importante expressividade simbólica, bem como potencialidades performativas e sensitivas que são experimentadas pelos sujeitos ao limite. Com efeito, o corpo já não é mais encarado como um dado natural, matéria orgânica onde as modificações decorrem apenas do tempo biológico, pois o corpo adquiriu um potencial de mudança e exploração que lhe passou a ser intrínseco e ad infinitum. Nessa outra visão de corpo, o caráter identitário ganha um lugar de destaque.

As modificações e marcações corporais, como signo de identidade, são uma maneira de afirmar uma singularidade radical e atinge os jovens em seu conjunto como importante fenômeno cultural para toda uma geração. Sem se caracterizar como um fenômeno da moda, as tatuagens, os piercings, as diversas marcas corporais encarnam novos modos de identidade social, de gênero, pertencimento social e, ainda, novas formas de sedução (LE BRETON, 2004).

Na adolescência, o corpo torna-se um importante passaporte de acesso a um mundo de trocas afetivas, eróticas e emocionais e, principalmente, das interações que se inscrevem no domínio da sexualidade e da sedução (PAIS, 2012). Porém, para Le Breton (2017), o processo mais importante que ocorre é o de uma subjetivação, de uma apropriação simbólica de si em que os vários aspectos da construção de uma identidade estão em jogo. Ou, em termos mais enfáticos, diante das evidências da imagem corporal e das marcas, o conhecimento dos adolescentes sobre o repertório de insígnias passa a ser indicativo do valor de um jovem perante seu grupo, pois esse saber mostra o sólido conhecimento que ele possui sobre o repertório de marcas disponíveis junto aos seus pares. Assim, marcar e desmarcar o corpo é uma forma primordial de socialização, pois existir é o mesmo de ser notado, marcado e desmarcado. Por essa razão, “uma aparência que desagrada o grupo expõe à perda de prestígio permanente, à zombaria, ao desprezo e ao assédio” (LE BRETON, 2017, p. 109).

A construção da identidade à flor da pele

A pesquisa de campo empírica realizada no Departamento Geral de Ações Educativas (Degase-RJ) com adolescentes e jovens de 15 a 21 anos feita por uma grande equipe de pesquisadores e alunos das Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Fernandes Figueiras (IFF-Fiocruz), Brasil, em três unidades, duas masculinas e uma feminina, constatou em termos mais enfáticos evidências da importância da imagem corporal e das marcas presentes nos corpos dos entrevistados, bem como o conhecimento dos adolescentes sobre o repertório de insígnias e tatuagens que passam a ser indicativo do valor de um jovem perante seu grupo, principalmente no contexto dos jovens cujo destino foi ou ainda é a passagem pelo Degase.

Em campo se observou muitas diferenças de gênero na questão da marcação do corpo e das tatuagens feitas entre os próprios adolescentes homens e mulheres no que diz respeito à escolha da imagem da tatuagem, ao tipo de desenho de pinturas e aos locais escolhidos do corpo para receberem a tatuagem. As adolescentes – exemplificadas neste artigo – apontam no próprio corpo nomes próprios, siglas de nomes/apelidos, como PJL para designar “paz, justiça e liberdade”, coração, flores, nomes de facções criminosas, como Terceiro Comando (TC) e Comando Vermelho (CV), artigo do Código Penal (157), imagens e fotos dos(as) namorados(as) ou dos(as) filhos(as), menos as que são feitas na cadeia, essas últimas não são facilmente mostradas.

A pesquisa feita em grupo com quatro adolescentes na Unidade Feminina – Joana, 16 anos; Nádia, 15 anos; Paula, 17 anos; e Telma, 14 anos – evidenciou que todas elas tinham nomes de ex ou atuais namorados(as), maridos ou companheiras tatuados, assim como de familiares. Essa prática é muito frequente, como também é a do auto ferimento, cortes, riscos/riscas, marcas dolorosas (ou não) feitas durante a internação, sobre as quais falaremos mais adiante.

Ao pedir às adolescentes que informassem quantas tatuagens tinham feito e com quantos anos fizeram a primeira, Telma (14) disse ter quatro e que a primeira foi feita aos 12 anos; Paula (17) falou ter três e que a primeira foi aos 15; Joana (16) tem ao todo 12 tatuagens, tendo feito a primeira aos 11 anos; Nadia (15) disse que tem apenas duas e que fez a primeira aos 13 anos. Joana interrompeu e disse que Nádia, na verdade, tinha três tatuagens, e não duas, já que colocou uma por cima da outra na intenção de apagar a primeira. Completou dizendo que também tinha mais uma pelo mesmo motivo: tentou esconder o nome de um ex-marido fazendo outra tatuagem (CASTRO et al., 2016).

Como Joana (16) era a que tinha mais tatuagens entre as quatro, foi pedido que ela contasse sobre cada uma. Citou uma pimenta na virilha, o nome da mãe no braço, o nome do pai nas costas, o desenho de uma flor com uma borboleta, uma frase no braço (“Livrai-me de todo mal, amém”), um diamante na perna e uma coroa com o nome Ângelo (ex-marido) no braço, mas desta havia se arrependido e feito uma flor de lótus por cima. Ela afirmou que a do diamante era a única que não tinha um significado, mas que a escolha do diamante se deu porque ela gosta de tudo que brilha. Nadia (15) diz que fez uma pena no braço em cima do nome do ex-marido, porque se arrependeu de ter feito a primeira. Segundo ela, o significado é liberdade.

Paula (17) e Joana (16), quando indagadas sobre a escolha dos lugares das tatuagens, explicaram que o importante é escolher lugares não comuns para assim se diferenciarem. Joana (16) diz que fez pássaros próximos aos seios, pois eles são grandes e quando ela coloca uma blusa fica chamando atenção. Afirma: “Ainda vou fazer outros pássaros descendo pela lateral da barriga, uma gaiola e um pássaro na porta gaiola com a frase: Deus é grande, existe, me fortalece e me guarda” (CASTRO et al., 2016, p. 26)

Tatuagens de cadeia

As tatuagens chamadas “de cadeia” feitas durante o cumprimento da medida socioeducativa são realizadas para esconder as mazelas, manchas ou “perebas” (terminologia empregada pelas meninas). Elas explicaram que as machas/perebas são frutos das tatuagens que elas mesmas fazem em si, as chamadas “tatuagens de cadeia” e que podem causar desconforto, inflamação, manchas, sumiços da pele. O motivo para se ferir está associado a razões como marcação, agonia, aflição, passatempo, dentre outros sentimentos e motivos. Quando perguntadas sobre quem mais faz esse tipo de tatuagem, todas atestaram que quase todas fazem. Eis a explicação do grupo da Joana, Nádia, Paula e Telma:

Geralmente, rasgam (nós rasgamos) a pele profundamente com um copo descartável e colocam tinta de caneta. A tatuagem fica esbranquiçada devido à nova pele que nasce, mas com o tempo e com o sol, ela vai sumindo. Algumas vezes sangra e outras não, depende do lugar no corpo. Fazem em si mesmas e umas nas outras (CASTRO et al., 2016, p. 26).

Se toda essa discussão sobre a pele como superfície que se mostra e nos dá a ver como palco de identificações nos instiga a pensar nas subjetividades que aí estão sendo produzidas, é também a pele e suas marcas que fundamentam todo um modelo de atenção quanto à automutilação em adolescentes calcado sobre estudos epidemiológicos de grande escala. Assim, tanto a pele cifrada para um outro num cenário pessoal de identificações subjetivantes quanto a pele objeto bruto das estatísticas epidemiológicas podem nos dizer dos adolescentes e jovens. No contexto empírico estudado particularmente por uma das autoras deste estudo, dentre outras que participaram de um grande estudo (CASTRO et al., 2016; D’ANGELO; HERNÁNDEZ, 2017; HERNÁNDEZ et al., 2018; HERNÁNDEZ; CASTRO; D’ ÁNGELO, 2019), o das adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas foi observado não somente o uso da tatuagem como signo de identidade, mas também a prática de lesões auto infligidas feitas dentro e fora do sistema socioeducativo, além de outras importantes marcas identitárias, tanto como uma tendência social e grupal como modo de fabricação de si, de uma singularidade ou ainda como habilitando uma verdadeira manifestação de sofrimentos diversos. Nesse caso, o corpo é abjeto, abjeção que pode ser entendida, nesse contexto, como rejeição e sofrimento corporal frente a condicionantes sociais de existência. Nesse caso, algo se pronuncia à flor da pele, que fere, que produz chaga, que causa sensação ambígua de impressionar e desagradar, que trava um combate entre o tocar e o tanger a dor que fere. Essa dor pode vir da ofensa, da mágoa, da injúria, da punição, do castigo produzido que rompe no corpo o silêncio a provocar sofrimento ou raivas. Provocar marcas e sofrimentos em si mesmo, golpear-se, corta-se, doer-se, ressentir-se, condoer-se da prisão, do presídio, da jaula em que habita.

A pele em que habita os adolescentes, portanto, “fala” e nos indica que somente numa perspectiva ampliada de corpo poderemos ouvir melhor esse dizer, numa densidade que considere seu substrato somático, sua sociabilidade, bem como suas incursões psíquicas, políticas e culturais.

Beatriz Akemi Takeiti biatakeiti@medicina.ufrj.br

Terapeuta Ocupacional, docente do Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil.

Cristiana Carneiro cristianacarneiro13@gmail.com

Psicanalista. Pós-doutora, Paris VII. Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Coordenadora do NIPIAC e do Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) – Psicanálise e Educação.

Simone Ouvinha Peres simoneoperes@gmail.com

Professora Associada do Departamento de Psicologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestre em Psicossociologia e Doutora em Saúde Coletiva.