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Diante do fim do mundo, recomeçar pela infância¹

Marina Harter Pamplona
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Psicologia, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-0485-5052

Marcelo Santana Ferreira
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Psicologia, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-1301-5709

DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.49543

Em um desses dias de isolamento, em que via o tempo passar dentro de casa, fui guiada à lembrança de uma tarde em que olhava através da janela da casa de minha avó a paisagem que revelava os fundos de uma serralheria. Uma criança, que, na época, fazia quatro anos com os dedos quando lhe perguntávamos sua idade, brincava ali onde eram depositados os restos de serragem, cujo o acúmulo sedimentado ia formando, gradativamente, uma crescente montanha. A montanha de serragem oferecia-se à criança como um lugar em potencial para experimentar o tempo de sua solidão em meio ao universo adulto. Lembro-me de observá-la brincando de desaparecer por entre os restos de cortes de madeira, subir até o ponto mais alto da montanha e rolar morro abaixo, deixando o corpo coberto de descartes. Também no topo da montanha, defendia-se de opositores imaginários, regia seu mundo, experimentava quedas e alturas, ali, onde o que víamos eram destroços de madeira, a exata mistura do que um dia foi matéria primeira da natureza e do que não serviu para ser; um armário, uma cama, um palete.

Tradicionalmente, a imagem da destruição, necessária para a abertura do novo, sempre teve seu lugar nas organizações culturais dos povos: no tarô, a carta da morte; no hinduísmo, Shiva, responsável pela destruição do universo para a criação do novo; entre os Yanomamis, a cultura de atear fogo nas shabonos2 (casas comunitárias) reverenciando a renovação para que se possam construir outras estruturas. Essas são algumas imagens que me vêm ao pensamento.

Em 19313, o filósofo Walter Benjamin (1987) publicou um pequeno e enigmático texto intitulado O Caráter Destrutivo, por meio do qual desenvolve uma espécie de mosaico cujos fragmentos apontam para a presença de uma estética da barbárie em sua obra. Essas imagens do pensamento manifestam uma face importante de seu diagnóstico da modernidade: a todo tempo, o mundo é posto à prova em sua vocação para a destruição. Assim como Benjamin adverte que o caráter destrutivo não está interessado em ser compreendido, não será esse o sentido que este artigo buscará empreender, mas sim abrir uma chave de percepção que nos impulsione a observar os sinais lançados pelo texto de 1931 que seguem ressoando no tempo presente. Afinal, não existiriam momentos, condensações temporais, cuja face da destruição se deixaria notar sem que pudéssemos ignorá-la tão facilmente, como uma tomada de consciência de que as coisas poderiam correr mal? Esse gesto de observar, no presente, inícios de um porvir de catástrofes inventaria uma espécie de bússola ética nos escritos de Walter Benjamin.

Nesse sentido, não podemos nos esquecer do contexto em que o texto em questão foi publicado, ano de consolidação do nazismo no poder na Alemanha. Nesse mapa, cujas coordenadas são traçadas pelo tempo, a origem do caráter destrutivo tem uma importante coincidência temporal com os escritos de Benjamin que continham memórias de sua infância.

Neste artigo, buscamos operacionalizar o jogo que compõe a relação entre a imagem do caráter destrutivo e o gesto retroversivo da narrativa operacionalizado pelas lembranças de infância como uma forma de delinear uma concepção política de infância capaz de construir outras formas de ler a história – e em oposição aos regimes políticos totalitários, movidos por outra espécie de destruição.

Nesse sentido, diante dos últimos acontecimentos no contexto da chegada da pandemia do novo coronavírus no Brasil, em 2020, é preciso, como nos alerta Walter Benjamin (2009), organizar o pessimismo.

A crise sanitária agrava e escancara outras crises. Ainda que o vírus desconheça fronteiras e se espalhe pelo tecido social sem distinguir os códigos normativos criados pelo sistema econômico e político no qual estamos inseridos, “não estamos todos no mesmo barco”. Ainda que o vírus nos obrigue a reconsiderar a fragilidade como um paradigma da existência humana, o estágio avançado do neoliberalismo e suas conexões políticas com o neofascismo não nos deixam seguir a análise mais rápida de que somos todos iguais. É a desigualdade que emerge na superfície do presente: a desigualdade em uma “sociedade enfraquecida imunologicamente pelo capitalismo global” (HAN, 2020, n.p.).

Começar pela infância

A poeta Aglaja Veteranyi (2017, p. 102), cuja família refugiou-se na Suíça, em 1977, fugindo da ditadura romena de Nicolae Ceaușescu (1918-1989), escreve, em uma de suas memórias infantis do refúgio: “Será que Deus fala outras línguas? / Será que ele entende os estrangeiros? / Ou será que os anjos ficam sentados em pequenas cabines de vidro fazendo traduções?”.

Há algumas décadas, no contexto de ascensão do nazismo na Alemanha, Walter Benjamin lançou luminosidade sobre o encontro imprevisto entre crianças e anjos (FERREIRA; PAMPLONA, 2019). Os anjos povoam o pensamento de Benjamin (GAGNEBIN, 1997) na construção de um limiar entre teologia e materialismo histórico, colhendo vestígios do sagrado no profano. No entanto, esse povoamento subverte a referência historicamente hegemônica que se faz da imagem das crianças às figuras angelicais cristãs que herdamos do século XIII, quando, segundo os estudos iconográficos de Philippe Ariès (1981), as crianças passaram a ser representadas como anjos nas pinturas, sendo desenvolvida, assim, a forma de uma infância sagrada.

Comungar a imagem de uma infância sagrada com a dos anjos parece ser, em diversos contextos, uma forma eficaz de silenciar esses seres canhestros, inábeis e incompletos, tomados apenas como um “vir a ser” adulto. Perguntamo-nos, assim, se não encontramos, ao cobrir as crianças com a face desses anjos, a arbitrariedade de exigir que elas observem em silêncio, em estado de adoração, o mundo que criamos.

Ao examinar a presença dos anjos na obra de Benjamin, Gagnebin (1997) descreve-os como fulgurantes e efêmeros, portadores de uma temporalidade específica que surge e desaparece diante de Deus, como faíscas. Nos escritos do filósofo alemão, os anjos ditos “menores”, – e não aqueles que transmitem a vontade divina – que vivem apenas nos instantes dos seus hinos para logo se dissiparem que possuem interferência sobre o curso do pensamento. É contra uma essencialidade histórica, portanto, que essas aparições se dirigem; “Benjamin reivindica uma atualidade simultaneamente resplandecente e frágil, o tempo de cantar um hino e, em seguida, de se aniquilar” (GAGNEBIN, 1997, p. 125).

Os anjos, nessa perspectiva, introduzem cesuras no ritmo do tempo, são portadores da destruição necessária à cronologia linear, que pretende perpetuar a história dos vencedores e ameaçar com o esquecimento a história dos oprimidos. Essa destruição dirige-se também para a linguagem segura de si, a linguagem burguesa dos bem-pensantes e bem-apessoados, expondo-a novamente à sua força de estranheza e de subversão.

A esperança existe para os anjos, pois a cesura que instaura suas breves e frágeis luminosidades é a potência que faria com que a história, de repente, não seguisse mais a letargia do seu curso. Em um contexto de extermínio, a temporalidade dos anjos, que se dirigem ou que são inventados, para e pela infância, é a da interrupção, onde as esperanças frustradas podem ser retomadas por um trabalho político de uma memória ativa. Os anjos não são mais aqueles que testemunham em silêncio a transcendência sagrada, mas participam dos desabrigos do mundo profano. A salvação do passado, presente na angeologia benjaminiana, é a da interrupção dessa temporalidade infernal, da “tempestade do progresso” que impele o anjo da história, presente em suas Teses sobre o Conceito de História (BENJAMIN, 2012), para o futuro, ainda que seus olhos estejam voltados para o amontoado de ruínas que cresce sob seus pés.

Carlos Garaicoa, artista contemporâneo cubano, inventou uma pequena cidade global cuja arquitetura é composta de velas acesas que derretem ao fogo. Trata-se de uma cidade que mistura o monumental e o corriqueiro, elementos arquitetônicos de diversas partes do mundo, e que, no ciclo de alguns dias, desaparece por completo e é substituída por outra. A obra chama-se “Ahora juguemos a desaparecer (II)”4. Diante da cidade de velas acesas, detemo-nos na luminosidade do fogo, que é condição de seu desaparecimento – o que é algo absolutamente incomum, estranho, na sociedade brasileira contemporânea, cuja intenção é escamotear a estrutura de um “fascismo suicidário” – como alertou Vladimir Safatle (2020) – comprometido com a própria destruição das formas singulares de sobreviver, sem que possamos dispor do tempo e dos meios necessários que nos permitam perceber e elaborar o que e quem temos perdido ou imaginar outras possibilidades de vida.

1 – Este artigo foi escrito entre os dias 7 e 15 de abril de 2020.
2 – Em 1974, a fotógrafa Claudia Andujar registrou uma das shabonos em chamas. Em 2005, a fotografia transformou-se na instalação intitulada Yano-a, que, atualmente, encontra-se exposta no Instituto Inhotim.
3 – Ano da publicação do texto original.
4 – Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2020.
Marina Harter Pamplona hartermarina@gmail.com

Mestra em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Brasil.





Marcelo Santana Ferreira ferreira_marcelo@id.uff.br

Professor associado de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. Mestre e Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Brasil.