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Discutindo projetos de vida com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social

Resultados e discussão

Perfil das/os participantes: quem são, o que desejam e o que farão para alcançar suas aspirações?

A análise das respostas dos questionários possibilitou conhecer o perfil do grupo de participantes da pesquisa, suas famílias e seus projetos futuros. As/os participantes ocupavam a faixa etária de 9 a 13 anos e cursavam o Ensino Fundamental. Sobre a cor/raça, o grupo apresentou a predominância de participantes que se declararam pardos (44,4%) seguida dos que se autodeclararam pretos (14,8%) (Tabela 1).


Tabela 1 – Perfil dos participantes das oficinas

As famílias eram numerosas quanto ao seu núcleo, sendo 74,1% delas composta por mais de 4 indivíduos por domicílio. O grupo desconhecia as informações sobre a ocupação das/os responsáveis. Aquelas/es que souberam informar quais atividades suas/seus responsáveis desempenhavam comunicaram que as/os familiares trabalhavam em atividades de baixa qualificação profissional, como operários, autônomas/os, informais, assalariadas/os não qualificadas/os, como vendedoras/es no comércio e tinham profissões de empregadas domésticas, faxineiras e cozinheiras, porteiros, pedreiros e vigias. O conhecimento da maior parte do grupo sobre a ocupação das/os responsáveis era parcial e circunscrita ao conhecimento do local de trabalho (44,4%) ou da atividade desenvolvida (18,5%). As/os participantes não informaram ou não souberam informar sobre familiares que estavam desempregadas/os (Tabela 2).


Tabela 2 – Aspirações ocupacionais dos participantes por sexo

As meninas demonstraram predileção por profissões de maior nível de escolaridade com relação aos meninos. Aproximadamente metade delas gostariam de ser médica e veterinária, bem como outras carreiras de prestígio, como advocacia, e também relacionadas ao cuidado e de natureza altruísta. Já entre os meninos, a profissão mais apontada foi a de jogador de futebol (28,6%), seguida da carreira de bombeiro (21,4%) e policial (14,3%).

As/os participantes das oficinas foram incentivadas/os a manifestar o que fariam para alcançar a profissão e a vida que queriam ter no futuro. 76,9% das meninas declararam que a principal ação deveria ser estudar, em comparação com 35,7% dos meninos. Os meninos também informaram outras ações, como ter uma boa alimentação e praticar atividades físicas e acreditar na concretização dos planos.

Observou-se, portanto, que os meninos reproduziram os estereótipos profissionais com base na diferenciação por gênero. A análise dos resultados sugere confirmação não só da relação que as meninas estabelecem com a escola, mas também do atual cenário de distribuição de gênero na educação superior, que tem se transformado há alguns anos. Determinadas características comportamentais incorporadas por meninas no âmbito de sua sociabilidade, como a disposição para tarefas que exigem submissão e docilidade, são valorizadas no universo escolar, o que contribui para um melhor desempenho com relação aos meninos (Duru-Bellat, 2000). Esse desempenho tem efeitos sobre o ensino superior, hoje acedido por uma maioria de mulheres no Brasil (Ricoldi; Artes, 2016).

Apesar do estudo ter sido mencionado como uma ação necessária para alcançar o futuro desejado, a escola não é citada diretamente como um caminho para alcançar os projetos pretendidos pela maioria das/os participantes. Tal constatação se diferencia do que se observa em grupos de classe média – baseando-se na relação que se constrói entre o futuro profissional e a educação, uma vez que, nesses estratos sociais, a conclusão do Ensino Médio e o ingresso no mercado de trabalho são simultâneos –, o que pode representar uma limitação quanto aos projetos de vida relacionados à continuidade dos estudos após a conclusão do Ensino Médio (Venturini; Piccinini, 2014). A dissonância entre a idealização do ato de estudar e a vivência na escola relaciona-se com a desconexão entre a escolaridade e a ocupação profissional dos pais e mães das/os adolescentes, o que pode constituir uma barreira na compreensão da escolarização como instrumento eficaz de mobilidade socioeconômica (Teixeira, 2005).

Projetos de vida como construção da afetividade e relações familiares

No desenvolvimento dos debates sobre os planos para o futuro, foram analisados os registros do grupo a partir da oficina Como me vejo daqui a 10 anos?. Nessa oportunidade, as/os adolescentes relataram os elementos que constituem seus projetos de vida: o estudo; a profissão; a formação de uma nova família e a aquisição de bens materiais. Essa visão foi verificada nas seguintes falas: “Eu me imagino daqui a 10 anos fazendo faculdade, trabalhando, com minha família já formada, morando perto da casa dos meus pais. Faculdade de engenharia civil ou advocacia” (Feminino,13 anos). “Eu casei, tive 2 filhos, não estou morando com meus pais, já sou jogador de futebol, e eu vou ter 20 anos. Eu moro no EUA, tenho carro, minha esposa é linda e maravilhosa e eu vou viver feliz para sempre” (Masculino, 10 anos).

Com respeito à vida afetiva, uma participante apresentou segurança ao falar do plano futuro que normalmente contraria as expectativas de muitas das meninas da sua idade, que é casar e ter filhos. “Quando eu crescer quero ser professora. Tenho 20 anos, moro num apartamento. Eu estudo ainda e trabalho. Moro em BH. Não tenho namorado, não casei, não tenho planos para ter filhos” (Feminino, 10 anos).

A qualidade dos relacionamentos, familiar e conjugal, é um aspecto importante que exerce influência direta no desenvolvimento das/os filhas/os (Pratta; Santos, 2007). A partir das falas, foram verificados alguns conflitos familiares, principalmente no relacionamento entre mães e pais, uma situação que perturba as/os crianças e adolescentes, trazendo tristeza e mágoa. Isso foi verificado em registros como: “Fiquei muito triste com a separação dos meus pais” (Feminino, 11 anos). “Na minha família meu padrasto fica brigando com a minha mãe e isto me deixa muito triste e isto me incomoda” (Feminino, 12 anos).

Em relatos sobre a família, também se tornaram evidentes situações de desconforto devido à presença de violência doméstica e imputação de castigo pelas mães e pais. Foi queixa do grupo não só a violência por parte de familiares, mas também a que ocorre nos ciclos de amizade e da escola, como deboches relacionados a determinadas características físicas ou comportamentos. O respeito foi mencionado como uma demanda fundamental. A violência também foi relacionada ao gênero e à vivência da sexualidade. A agressividade foi associada à masculinidade e a discriminação LGBT foi pontuada pelo grupo.

Embora muitas falas reproduzissem estereótipos de papéis de gênero (como a condenação das meninas pelo uso de determinas roupas, tatuagem, cigarro, ou por terem vida sexual ativa e, no caso dos homens, a associação a características como provedor, ciumento e possessivo), algumas meninas demonstraram criticidade na percepção de que mulheres são mais controladas e responsabilizadas nas relações sociais que os homens. Tais observações vão de encontro com recentes estudos que têm analisado as percepções de gênero e sexualidade entre adolescentes de periferias, em que se destaca maior desenvolvimento desses debates entre as meninas, na mesma medida em que geram reações conservadoras de grupos contrários (Pinheiro-Machado; Scalco, 2018).

A importância da projeção da vida futura não apenas baseada nos objetivos individuais, mas também nas relações afetivas e no bem-estar de outras pessoas, evidencia a capacidade de vislumbrar as suas expectativas em relação aos seus anseios de modo mais amplo (Pátaro; Arantes, 2014). A projeção de uma vida conjugal aliada à vida familiar e à maternidade/paternidade foi mencionada constantemente entre o grupo.

Outro ponto de destaque foi a importância dos vínculos afetivos e da relação de cuidado entre familiares. Chamou a atenção algumas falas apontarem para o projeto de maternidade/paternidade anterior ao casamento e logo na passagem da adolescência para a vida adulta, o que pode refletir não só as mudanças contemporâneas nas estruturas familiares, mas também seu contexto local específico, em que, em geral, a inserção na vida adulta relaciona-se à maternidade/paternidade na adolescência (Chacham; Maia; Camargo, 2012).

Entretanto, na projeção da vida familiar, esteve fortemente presente a ideia de ter filhas/os após ter a possibilidade de garantir para elas/es uma boa condição de vida. Relacionado a isso, também apareceram falas que explicitaram o desejo de ter uma vida profissional diferente da vida do grupo familiar ou vizinhança. A precariedade da situação econômica da família foi explicitada como fator que gera infelicidade, como no registro a seguir: “Falta de trabalho, isso me incomoda porque a gente fica sem comida e sem dinheiro, e se mudasse a gente ia ser uma família feliz” (Feminino, 10 anos).

O futuro silenciado: projetos de vida não compartilhados entre mães/pais e filhas/filhos

Tão importante quanto o que se diz sobre um tema é aquilo que não é manifestado ou expresso e, portanto, não é conhecido. No encontro com pais e mães, elas/es trataram dos percalços que os impediram de realizar os seus próprios projetos de vida. Em geral, declararam não conhecer as aspirações profissionais das/os filhas/os e que falar sobre o assunto não é comum entre familiares. O pai de um dos participantes disse que não pôde seguir o seu sonho de ser engenheiro em virtude do seu ingresso no mercado de trabalho, interrompendo precocemente a sua escolarização. Outro declarou que constituiu família cedo e teve que aceitar as oportunidades de emprego disponíveis. Uma mãe que sobrevivia com o dinheiro de faxina expôs a dificuldade de ser a única responsável pelo filho de 13 anos e que esse desejava sair da escola para trabalhar de entregador de compras num supermercado.

Dessa forma, a constatação, de modo geral, do desconhecimento mútuo das aspirações das/os filhas/os e dos percalços das mães e pais enunciam a necessidade de trabalhar o projeto de vida na perspectiva do desejo e não-desejo. Sabe-se que a renúncia à reprodução da vida das/os responsáveis pode ser um importante propulsor da construção de um projeto de vida profissional alternativa (Senkevics; Carvalho, 2016). O conhecimento parcial das ocupações das/os responsáveis aponta para a relevância de se conhecer mais profundamente tanto as profissões das/os responsáveis quanto a de pessoas provenientes de meios sociais distintos, como forma de viabilizar projetos de vida com trajetórias profissionais alternativas, para além daquelas infligidas pelo contexto social em que vivem.

Um olhar sociológico, entretanto, na perspectiva clássica de Pierre Bourdieu (1990), contribui para a compreensão dos modos como as escolhas nas classes populares são marcadas pela necessidade. Nesse caso, as crianças e adolescentes não desejam aquilo que parece pouco provável para o seu grupo social, dificilmente suas/seus integrantes vislumbram um futuro diferente daquele de seu contexto, já que há uma predisposição do sujeito em conhecer o mundo já prejulgado a partir do que lhe foi apresentado, ou o único que lhe é dado conhecer. O conceito central em sua obra com respeito a essa questão é o habitus, de gênese coletiva e individual. O habitus se refere à forma como os sujeitos incorporam e reproduzem as estruturas sociais, relacionada às predisposições que desenvolvem. O habitus seria o princípio gerador das estratégias subjetivas elaboradas pelos indivíduos, as sequências de práticas adaptadas às condições objetivas (Bourdieu, 1990). Também qualificado como “necessidade tornada virtude”, esse conceito tem sua contribuição na tentativa de explicar o modo como as escolhas cotidianas dos sujeitos se relacionam às suas condições estruturais. Apesar das críticas a essa teoria, que se iniciam a partir da década de 1980, pelo fato de obedecer marcadamente à lógica de classe, é possível se valer de suas contribuições ao olhar para contextos marcados pelos sistemas de reprodução social.

Cuidado, saúde, violências e desigualdades

Por fim, também foram trabalhadas as questões propriamente relativas à saúde e ao cuidado. A ideia de cuidado apresentada pelo grupo envolveu uma concepção ampla de saúde, tanto com relação a si, como com o espaço público. O cuidado de si esteve relacionado a hábitos saudáveis e também ao acesso a serviços de saúde. O cuidado com o espaço público foi relacionado aos direitos básicos como saneamento e moradia.

De modo geral, foi possível observar que o grupo apresentou percepções críticas com relação à saúde, às desigualdades, às violências, que coadunam com as perspectivas de saúde e proteção integral (Minayo, 2006). Tais percepções foram construídas com base em sua história, na observação de seu contexto e cotidiano, e também por meio da formação nas oficinas educativas.

Entretanto, houve pouca criticidade quanto ao uso da violência por eles próprios, sobretudo entre os meninos. Tal questão foi abordada em uma oficina sobre estratégias para conseguir um boné de custo alto, desejado por todos, em que prevaleceu a ideia de que ter o boné seria o mais importante, independentemente do meio utilizado para consegui-lo. Esse contexto corresponde às análises das recentes mudanças nas periferias nas últimas décadas, em que se ressalta o impacto do aumento da capacidade de consumo no envolvimento de adolescentes com a criminalidade (Feltran, 2010).

Cláudia Gersen Alvarenga gersenclaudia@hotmail.com

Bióloga pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil e Mestra em Ciências da Saúde pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil. Pesquisadora na área de Saúde Coletiva, com ênfase em educação em saúde, adolescentes, escola, sexualidade e masculinidades.

Laís Barbosa Patrocino laisbp89bh@gmail.com

Cientista Social e Mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, e Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil.
Pesquisadora nos campos da educação em saúde, sexualidade e violência contra meninas e mulheres, especificamente a divulgação não autorizada da intimidade.

Lucas Barbi lucbarbi@gmail.com

Pesquisador na área de Saúde Coletiva, na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde com ênfase na avalição de serviços e intervenções participativas em saúde. Cientista Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, Mestre e Doutorando em Saúde Coletiva pelo Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), Brasil.