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Epistemologias do Sul e cotidiano escolar: Desaprendizagem, desobediência e emancipação social

Pode soar estranho que, ao evocarmos o cotidiano escolar, tenhamos como subtítulo o termo desaprendizagem, já que o esperado nesses cotidianos é que ocorram processos de ensino-aprendizagem, ou, como vimos preferindo, aprendizagemensino (Oliveira, 2013)1. A noção de (des)aprendizagem é aqui utilizada como um meio para deslocarmo-nos do ideário hegemônico, que concebe a escola como espaço somente de aprendizagem, e por vezes apenas como espaço de aprendizagens formais, permitindo-nos entrar no debate sobre o problema representado por um conjunto de conhecimentos socialmente aprendidos e que funcionam como empecilhos à aprendizagem democrática, emancipatória e favorável à justiça social e cognitiva. Ninguém nasce racista, machista ou competitivo. São esses conhecimentos que, sem nos terem sido ensinados, fazem parte das nossas redes e precisam ser desaprendidos para que “nos lembremos deles de modo diferente” (Santos, 2018), integrando às nossas redes de conhecimentos e subjetividades novas compreensões sobre igualdade e diferença — superando os preconceitos —, sobre a relação entre diferentes conhecimentos e culturas, democratizando-a, e sobre os modos de interação social, privilegiando a solidariedade e superando a naturalização dos valores competitivos em seu benefício.

No caso desses últimos, o trabalho de Maturana (1999) criticando a ideia de que faz parte de nossa humanidade competir é emblemático. Diz ele: “A competição sadia não existe. A competição é um fenômeno cultural e humano, e não constitutivo do biológico. Como fenômeno humano, a competição se constitui na negação do outro” (ibidem, p. 13). No prosseguimento de sua argumentação, o autor é ainda mais enfático e claro, afirmando que é “a cooperação na convivência (…) que constitui o social” (ibidem, p. 14). Portanto, podemos dizer que a sociedade saudável, na compreensão do autor, é aquela que funda suas relações sociais na solidariedade.

Sobre o problema da relação diferença e igualdade, também em destaque nesses processos, temos que enfrentar preconceitos e hierarquias aprendidos e naturalizados, tanto em si mesmos como nas relações entre diferentes sujeitos sociais. Nessa discussão, a nova equação entre diferença e igualdade formulada por Boaventura (Santos, 2006, p. 316) é a base para nosso debate. Diz o autor: “Temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”. Para o que nos interessa neste texto, a formulação permite perceber em que medida os preconceitos sociais transformam diferenças em desigualdades, dando origem a processos de exclusão e a hierarquias entre sujeitos com base nos mais diferentes critérios étnico-raciais, de gênero, em relação à sexualidade, contra pessoas com deficiência ou mesmo contra pessoas apenas destoantes de padrões estéticos e de inteligência considerados “normais”.

Com relação aos conhecimentos e culturas, foi também Boaventura (Santos, 1995) quem formulou, há tempos, a ideia de que não existem nem ignorância geral nem saber geral, mas sim uma articulação entre saberes e ignorâncias. Também aprendemos com o autor que essa questão aponta para a pluralidade de conhecimentos (e de ignorâncias) que estão no mundo, e que as relações entre eles precisam ser balizadas por uma concorrência leal (ibidem), e não por hierarquias apriorísticas. Além disso, precisamos ter como avaliá-los com base em um critério de validação que emerja da realidade, das possibilidades de cada conhecimento de contribuir à resolução de problemas enfrentados pela sociedade.

Com isso, poder-se-á construir, ao mesmo tempo, uma ecologia de saberes — na qual cada saber é percebido numa relação de interdependência com os demais — e mais justiça cognitiva, entre os diferentes conhecimentos e seus detentores, identificada por Boaventura (2007) como condição da justiça social e, portanto, da emancipação social.

Finalmente, e sempre em defesa da nossa argumentação sobre a necessidade de desaprender, acompanhamos Boaventura quando ele defende que, nessa perspectiva de multiplicidade de conhecimentos e ignorâncias, não necessariamente a ignorância é o ponto de partida, podendo ser considerada ponto de chegada quando novos conhecimentos nos levam a esquecer ou a desaprender os anteriores (Santos, 2016).
Podemos, portanto, dizer que, ao chegarmos à escola, trazemos conosco aquilo que já sabemos, que aprendemos nos diferentes cotidianos dos quais participamos e passamos a dialogar com os conhecimentos que estão na escola, de professores, colegas e nos currículos oficiais, além daquilo que se aprende nas interações cotidianas. São, portanto, processos plurais de aprendizagens/desaprendizagens que devem ser reconhecidos como presentes em nossas vidas, associados à articulação e à interdependência entre elas e os saberes que as influenciam, tendo-nos sido ensinados ou não, o que pode levar à superação de dicotomias e hierarquias entre esses saberes diversos, reconhecidas e produzidas na e pela modernidade.

Trataremos, portanto, neste texto, de argumentar, de modo ensaístico2 e com a contribuição de diferentes autores e reflexões, que a possível contribuição da escola aos processos de emancipação social (Santos, 1995; 2000; 2007; 2018) requer não apenas que ela produza aprendizagens, mas também que ela ajude a desaprender. Alertamos o leitor para o fato de que o que nos interessa não é criar, em teoria, um novo modelo de escola, que funcionaria como uma nova prescrição a respeito de como a escola deveria ser, mas reconhecer, na perspectiva das epistemologias do Sul (Santos, 2007; 2018; Santos; Meneses, 2010) e dos estudos do cotidiano escolar (Alves, 2008; Ferraço; Carvalho, 2011; Sussekind, 2007; Garcia, 2010; Oliveira; Peixoto; Süssekind, 2019) o quanto o trabalho nas/das escolas já realiza em seus cotidianos ações de combate aos preconceitos, de ruptura com hierarquias epistemológicas, políticas e sociais e incentivam a solidariedade. Nosso entendimento é o de que muito já se vem fazendo nas escolas em benefício dessas causas (Oliveira, 2003, 2013, 2016).

Nesse momento, o objetivo deste texto é o de argumentar sobre as desaprendizagens do já sabido, afirmando que elas fazem parte de um processo humano de formação, sendo, também, atos de desobediência do aprendido. O ato de desobedecer, nesta concepção, é, senão a principal, uma das principais características do humano: somos seres humanos porque desobedecemos. Regras e padrões aprendidos são desafiados constantemente pela humanidade, desde os seus primórdios, porque as desaprendemos para, posteriormente, formularmos novas regras e compreensões de mundo. Desobedecer a regras impostas é fazer escolhas, é usar a consciência e capacidade de escolher para questioná-las quando delas se duvida, é obedecer a si próprio (Gros, 2018). Para o autor, o si que faz desobedecer:

[…] é a paixão de se descobrir insubstituível quando nos colocamos a serviço dos outros para, não digo ‘representar’ a humanidade, mas defendê-la, defender a ideia de humanidade por meio de protestos, recusas claras, indignações, desobediências formalizadas (ibidem).

Na atualidade, é preciso conceber os processos de emancipação social como processos que exigem essa desobediência, que desafia, questiona e supera as aprendizagens dos preconceitos, das hierarquias e dos valores competitivos próprios das sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais (Santos, 2016, 2018) nas quais vivemos. E é isso que pretendemos mostrar aos leitores em nossa defesa das relações entre cotidiano escolar, desobediências e desaprendizagens, aprendizagens e emancipação social.

A Desobediência como próprio do humano e a desaprendizagem como processo de formação

A formulação desta ideia vem de um longo processo de reflexão, a partir de nossa inserção no campo de estudos do cotidiano, quando começamos a compreender, com a ajuda de Certeau (1994), que, mais do que consumir regras e produtos, obedecendo-as na suposta interminável repetição dos cotidianos, os praticantes da vida cotidiana usam a seu modo as regras e produtos que lhes são oferecidos para consumo. Já em 2001, abordávamos o tema, reconhecendo a rebeldia do cotidiano em relação às normas reguladoras. E em 2016, afirmávamos:

[…] em suas vidas cotidianas, os supostos consumidores instituem usos diferenciados desses produtos e regras, num processo de desenvolvimento de ‘táticas desviacionistas’ inscritas nas possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, utilizando, manipulando e alterando as operações produzidas e impostas pelas estratégias do poder instituído. Essas maneiras de fazer, estilos de ação dos praticantespensantes3 da vida cotidiana, obedecem a outras regras diferentes daquelas da produção e do consumo oficiais. Eles criam um jogo mediante a estratificação de ‘funcionamentos diferentes e interferentes’, dando origem a novas ‘maneiras de utilizar a ordem imposta’ (ibidem, p. 92-93)4. Para além do consumo puro e simples, os praticantespensantes desenvolvem ações, fabricam formas alternativas de uso, tornando-se produtores/autores, disseminando alternativas, manipulando, a seu modo, os produtos e as regras, mesmo que de modo invisível e marginal (Oliveira, 2016, p. 85).

Recorrendo a Michel de Certeau, vamos entender que aquilo que acontece na vida cotidiana, as práticas sociais que desenvolvemos e as desobediências nelas presentes são um modo de apropriação dos produtos e regras impostos para consumo. O autor defende que:

[…] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como ‘consumo’, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (Certeau, 1994, p. 94).

Certeau (ibidem) propõe, portanto, uma compreensão das relações entre as estratégias organizadoras da vida social, expressas nas normas sociais que supostamente balizam compreensões de mundo e comportamentos, entendendo que, apesar de sua força, elas não são capazes de controlar as ações dos praticantes, que são influenciadas por diferentes fatores, desde as possibilidades concretas inscritas nas situações cotidianas até fatores individuais, relacionados às crenças, convicções e possibilidades de cada um, bem como os comportamentos que delas derivam. A conclusão a que chegamos é a de que “Os praticantes da vida cotidiana, embora estejam inscritos em um mundo cujas regras não são estabelecidas por eles, usam essas regras de modo próprio” (Oliveira, 2016, p. 66). E, ao fazê-lo, recriam-nas e inventam possibilidades, produzindo, em momentos e circunstâncias específicos, novas normas.

Quando falamos em desobediência como o próprio do humano e como elemento constitutivo de nossas vidas cotidianas, estamos querendo afirmar que nenhum poder normativo ou controlador pode se exercer sem que ações rebeldes, desobedientes, sejam produzidas por aqueles que a ele estão submetidos. E isso desde o início dos tempos e das primeiras comunidades, que avançaram sempre desafiando o que lhes antecedeu. Mesmo na Bíblia, encontramos no mito de Lilith e na narrativa em torno de Adão e Eva, do pecado original e da queda do paraíso, a desobediência como foco central da humanização.

1 – Temos produzido muitos neologismos, juntando palavras que a modernidade dissociou e mesmo tornou opostas, acreditando que se faz necessário considerá-las como unidade indissociável. Muitos termos aparecerão assim grafados, incitando o leitor a romper com as falsas dicotomias, compreendendo as articulações com as quais trabalhamos. No caso acima, o neologismo assinala que os processos de aprendizagem precedem os processos de ensino.
2 – Embora muito do que aqui se dirá seja calcado em resultados de pesquisa dos últimos quatro ou cinco anos, alertamos o leitor que as noções aqui trabalhadas estão em processo de estudo e consolidação, não devendo, portanto, serem percebidas como conceitos definitivos. O amadurecimento das reflexões produzirá, certamente, ampliações e mudanças de rumo. Estamos aqui compartilhando possibilidades e perspectivas ainda-não (Bloch apud. Santos, 2000) prontas ou definitivas de compreensão das questões que nos interrogam.
3 – O neologismo, grafado em itálico por norma da editora, faz alusão ao fato de que esses praticantes, que são as pessoas comuns, sempre, de algum modo, pensam no que fazem, mesmo que de modo assistemático. A noção pretende ser uma espécie de resposta aos críticos do termo praticantes, que é percebido como uma ameaça à reflexão teórica e, com isso, acusam os autores de nossa corrente de pesquisa de contribuírem para “o recuo da teoria”.
4 – As aspas indicam os trechos retirados do livro. Os itálicos são do autor.
Inês Barbosa de Oliveira inesbo2108@gmail.com

Mestre em Administração de Sistemas Educacionais pelo Instituto de Altos Estudos em Educação da Fundação Getúlio Vargas, Brasil, e doutora em “Sciences et Théories de L'éducation” pela Université de Sciences Humaines de Strasbourg, França. Pós-doutora pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro, Brasil, e Professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Atua na área de Educação, no campo de estudos do Currículo e do Cotidiano Escolar.