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Feminismo teen e youtubers: feminismo na adolescência em tempos de redes sociais

Feminismo teen, youtubers e “feminização da cultura”

Retomo, então, os enquadramentos do feminismo teen. O primeiro enquadramento diz respeito à construção da identidade feminista e um primeiro ponto é que se descobrir feminista, para as meninas, tem uma forte relação com descobrir-se como vítima potencial da violência de gênero. A identidade feminista de Larissa, branca e 16 anos, começou a se delinear de forma clara quando um assédio sexual ocorreu, conforme relata:

Esse foi o momento [ela se refere ao assédio sexual] que marcou que eu falei que eu era feminista. Porque eu falei agora faz algum sentido eu defender isso. Vou me declarar [feminista] porque eu fui machucada.

Assim como Larissa, Jout Jout, em vários vídeos, aborda o tema violência de gênero como parte da construção de seu feminismo, sendo o vídeo “Não tira o batom vermelho”10 um exemplo. Em pouco mais de 8 minutos, em um tom didático e bem humorado, Julia enumera situações abusivas (como quando o namorado obriga a namorada a tirar o batom vermelho) e explica as razões pelas quais tais comportamentos podem evoluir para casos graves de violência. O vídeo “Vamos fazer um escândalo”11 compartilha com as entrevistadas a perspectiva de que a dor de se saber vítima de violência une as mulheres em sua diversidade e as impele à ação de fazer um escândalo para demonstrar que violência contra a mulher não é aceitável. Jout Jout demonstra que, a despeito da multiplicidade das experiências implicadas nas violências sofridas por mulheres cotidianamente, se perceber como vítima ou potencial vítima da violência as conformam como parte de um coletivo que precisa vocalizar sua vulnerabilidade e força como forma de lutar contra a violência.

Outro ponto de partida para a construção da identidade feminista das meninas é o que chamei de “experiência do corpo como expressão de si”; o feminismo é percebido não só como uma narrativa sobre a violência que incide sobre os corpos de mulheres e meninas, mas também como liberdade, e é essa experiência compartilhada que produz um sentido de um “nós feministas”. Essa experiência de liberdade, no discurso das meninas, está relacionada ao modo como a diversidade de corpo, em relação a um padrão determinado, é equacionado. Da perspectiva das meninas, perceber-se como diferente de um determinado padrão (estético-corporal e sexual são destaques nas entrevistas) implica um duplo movimento: questionar o padrão e positivar a diferença em relação à norma como uma expressão de si. O questionamento das normas estéticas e sexuais assume um sentido de desafio para adolescentes que têm no pátrio poder ou na família os eixos norteadores de sua vida. Milena, 15 anos e negra, contou como, da sua perspectiva, a luta contra o machismo está inserida no modo como ela se veste: vestir um short curto ou uma blusinha cropped é um desafio à ordem representada na figura do pai:

Uma vez eu ia sair e eu estava com um cropped e aí meu pai falou “a gente vai rasgar suas roupas”. Eu disse: “Rasga! Não é você que compra; no dia em que você comprar minhas roupas, aí você pode falar alguma coisa”. Até hoje eu falo essa mesma coisa pra ele. O meu guarda-roupa inteiro mudou de dois anos pra cá; as roupas são literalmente do meu gosto porque sou eu que compro literalmente tudo. Eu lembro que eu tinha uma blusa que era ombro a ombro e era mais curtinha. E eu só usava ela com regata por baixo para cobrir a barriga porque eu achava ela muito curta. Aí hoje eu uso ela sem nada por baixo e não tô nem ligando.

No vídeo “Ninguém está imune”12, Jout Jout trata de um tema muito caro às entrevistadas, a autoestima ou, como Julia coloca, a falta dela, da qual ninguém escapa. Reconhecer-se mulher, em uma sociedade machista, tem como uma decorrência uma experiência de si marcada pela negatividade em relação a padrões estéticos e de comportamento; no vídeo, Julia dá dicas para se ter autoestima, definida por ela como “seu corpo muito feliz de ser o seu corpo”. No vídeo intitulado “Por uma ppk mais feliz”13, Jout Jout trata da masturbação feminina e a vincula à autoestima e ao autoconhecimento femininos: conhecer seu próprio corpo e sentir prazer é um passo importante na conquista da autonomia feminina. No vídeo intitulado “Corpo perfeito”, a youtuber pergunta se há um corpo perfeito para curtir o verão e, em um bate-papo descontraído com suas amigas, demonstra que o corpo perfeito para o verão é o corpo que se tem. Tal como as entrevistadas que afrontam os valores patriarcais em seu dia a dia (ao usar um short curto ou uma blusinha cropped), gostar do corpo que se tem e mostrá-lo ao mundo é parte da experiência feminista que questiona um padrão estético e positiva a diferença como uma expressão de si. Para Julia e para as adolescentes, o questionamento das normas estéticas e sexuais assume um sentido de enfrentamento aos valores machistas.

O segundo enquadramento são as motivações para ação do feminismo teen, tendo três temas surgido como recorrentes: 1) feminismo é igualdade entre os gêneros; 2) feminismo é ser dona de si; e 3) feminismo é acolher as diferenças, é “acolhedorismo”14. Como tais temas são abordados nos vídeos de Jout Jout?

O tema igualdade entre os gêneros não é debatido de maneira declarada por Jout Jout, mas é um valor subjacente a todos os vídeos que tratam do tema feminismo. A igualdade entre os gêneros está presente, por exemplo, no vídeo “Oi, nós transamos. Ass: mulheres” (2018)15, no qual Julia apresenta uma série televisiva ficcional na qual o tema sexualidade é tratado a partir da perspectiva das mulheres. Julia entende que a sexualidade feminina, no cinema e na televisão brasileiros, é historicamente tratada a partir da perspectiva masculina, refletindo um valor caro à sociedade patriarcal que toma o prazer sexual como uma experiência inerentemente masculina. Como explica a youtuber, as mulheres fazem sexo e o fazem de modos distintos dos homens. Nesse sentido, a série ficcional, apresentada no vídeo, é um passo na construção de caminhos para igualdade entre os gêneros que se fazem cotidianamente em cada pequena ação e comportamento questionado e vivenciado de outra forma.

A igualdade é um valor fundamental do feminismo, mas tal valor toma sentidos específicos nos discursos e práticas das meninas e da youtuber: a igualdade assume um sentido tão amplo que é capaz de abarcar toda prática ou discurso que considera a igualdade entre homens e mulheres como princípio inegociável. Assim, se alguém assume como valor importante em sua vida a igualdade entre homens e mulheres, então estamos diante de uma feminista. Quem fica de fora desse amplo grupo? Ora, explicaram as meninas, fica de fora quem fala e não faz! Do ponto de vista das entrevistadas, o feminismo não é apenas “falação”, mas é ação que se faz cotidianamente: “eu acordo, faço as minhas coisas, começo a pensar e começo a desconstruir algumas situações”, explicou Larissa.

A segunda bandeira do feminismo teen é a ideia de que feminismo é ser dona de si, o que significa ser autônoma, livre e coerente com seus desejos e valores mais profundos. Nas entrevistas, o termo empoderamento surgiu associado a essa elaboração e significava o reconhecimento de uma identidade coletiva, “nós meninas e mulheres”, que têm suas vidas marcadas pelas desigualdades de gênero, classe, raça e sexualidade, mas também pelo compartilhamento do valor supremo da igualdade entre homens e mulheres. Patrícia, 15 anos e negra, contou que empoderamento se forja desde cedo:

Eu nunca tinha tido contato com nenhuma dessas coisas progressistas. Na minha casa não tem nada dessas coisas. Quando eu chego em casa expressando opiniões diferentes ou ditas progressistas, há um questionamento do tipo “onde você aprendeu isso?”. A minha irmã [ela tinha 10 anos no momento da entrevista] é meio que inconscientemente ligada a essas coisas [progressistas]: ela não veste as coisas que ela não quer, ela não faz as coisas que ela não quer. Ela é muito dona de si.

“Ela é muito dona de si”: essa é uma expressão do feminismo na experiência das meninas, reafirmada por meio do enfrentamento a valores e normas consideradas machistas. Essa proposição está diluída em inúmeros vídeos do canal da Julia, e todos os vídeos citados o tematizam: ao tratar da masturbação no vídeo “Por uma ppk mais feliz”, empoderamento diz respeito a se tornar dona de seu prazer por meio do conhecimento do próprio corpo; nos vídeos em que Julia trata da violência de gênero, empoderamento diz respeito a reconhecer-se como sujeito de direitos e, consciente da experiência compartilhada por outras mulheres, dar um basta à violência. No vídeo “Corpo perfeito”, empoderamento diz respeito a aceitar quem se é e, assim, colocar em suspensão padrões estéticos e de comportamentos, e dizer um basta a esses padrões não significa empoderamento e liberdade apenas para si, mas para todas as mulheres. O empoderamento, portanto, não diz respeito a uma experiência individual, mas a uma experiência coletiva de conquista de voz no espaço público; portanto, ser dona de si implica o reconhecimento de um mundo diverso ao qual é preciso devotar respeito para, assim, ser respeitada.

A tolerância à diferença é um valor importante na formação feminista tanto da perspectiva das adolescentes quanto da youtuber. Tal como Julia, as entrevistadas estabelecem uma relação entre identidade feminista e uma variedade de outras práticas que pregam a tolerância e respeito à diversidade humana; assim, é possível afirmar que as meninas, assim como Julia, ao se identificarem como feministas também se declaram antirracistas, anti-homofóbicas e contra qualquer preconceito associado à classe social. Ser feminista, para as meninas e para Julia, está ligado a refletir sobre e agir contra as diversas formas de opressão existentes em nossa sociedade e é por essa razão que para as meninas feminismo é “acolhedorismo”. Em todas as entrevistas, é unânime a percepção de que um valor caro ao feminismo teen é a experiência de que todas, no feminismo, têm voz e espaço para falar e todas falam a partir de suas diferenças (de classe, raça, sexualidade ou qualquer outra referência), que devem ser abraçadas e celebradas. Para as meninas, feminismo é sinônimo de acolher a diversidade humana e ampliar a visão de mundo a partir da percepção de que diferença não pode implicar desigualdade de nenhuma espécie.

Antonia contou que ao fazer um cartaz sobre feminismo, solicitado pela professora de Filosofia, tentou expressar todas as possíveis formas de ser mulher, mas, alertada por uma colega, percebeu que não havia representado a mulher transexual e ficou muito triste. Ela confessou que se sentiu mal por deixar de fora uma forma de ser mulher e feminismo é justamente “colocar todo mundo para dentro”.

O vídeo “Não é para sair”16 expõe uma conversa entre uma feminista branca, Jout Jout, e uma feminista negra, Natály Neri, e ilumina como a tolerância à diferença é elemento essencial da prática feminista. A violência de gênero é um exemplo sobre as diferenças inerentes à experiência feminista: Julia retoma em sua conversa com Natály o vídeo “Vamos fazer um escândalo” e faz um mea-culpa ao reconhecer que nem todas as mulheres podem colocar a boca no trombone quando o assunto é violência, pois há inúmeras formas de opressão que se articulam e que repõem o silenciamento de mulheres negras especialmente. “Não é para sair” sintetiza a essência da bandeira do “acolhedorismo”: diz Julia que não é para ninguém “sair [do debate]. É horrível sair. Não é para sair – é para estar lá, mas para aprender”, tal como ela faz no vídeo em análise.

Mas, para ser feminista, além de falar, é preciso agir, então quais seriam as estratégias de ação, terceiro enquadramento, para atender as motivações descritas? As respostas das meninas e de Jout Jout apontam que é preciso afrontar. Afrontar sintetiza a forma como as meninas criam estratégias de ação que encampam as motivações do feminismo. Afrontar, no dicionário, significa ofender ou provocar ultraje. No feminismo teen, tal significado é sublevado e assume o sentido de enfrentamento e subversão de uma ordem social comprometida com a desigualdade e a violência. Milena relatou inúmeros eventos em que a afronta foi adotada como estratégia de ação para questionar normas e estereótipos de gênero que a oprimiam, como, por exemplo, a diferença entre ela e o irmão no que tocava às permissões dadas pelo pai para passear sem supervisão de um adulto:

Tinha uma época que ele [o pai] não deixava eu sair sozinha e daí uma vez eu falei que ia sair e ele disse que não era para sair e eu disse que só ia comprar um sorvete e daí eu dei um rolê…nossa…UM ROLÊ…só para afrontar mesmo e daí ele ficou muito bravo.

Um passeio para comprar um sorvete se transformou em uma ocasião para demonstrar que regras injustas, baseadas em estereótipos de gênero, precisam ser desafiadas. Jout Jout afronta em todos os vídeos citados, nos quais normas de gênero são desafiadas; ao afrontar, as meninas e Júlia subvertem a ordem patriarcal e demonstram que defender a igualdade entre homens e mulheres, ser dona de si e acolher as diferenças deveria ser regra, e não ultraje. Ao afrontar, elas tornam o feminismo parte da cotidiana luta pela dignidade e liberdade de mulheres e meninas.

10 – O vídeo contava, em fevereiro de 2020, com quase 4 milhões de visualizações e havia recebido mais de 226 mil curtidas e quase 6 mil comentários, por meio dos quais meninas e mulheres relatavam situações de abuso, tal como se faria numa relação tête-à-tête com uma amiga.
11 – O vídeo contava, em fevereiro de 2020, com mais de 2 milhões de visualizações, mais de 165 mil curtidas e mais de 8 mil comentários por meio dos quais são relatados casos de assédio e estupro.
12 – Em fevereiro de 2020, o vídeo contava com mais de 384 mil visualizações, 20 mil curtidas e 236 comentários
13 – Em fevereiro de 2020, o vídeo contava com 920 mil visualizações, 30 mil curtidas e 700 comentários.
14 – O neologismo foi criado por uma das pesquisadoras de nosso grupo e é uma referência às conhecidas ondas do movimento feminista: se a igualdade e diferença são valores de referência para as três ondas do feminismo, a tolerância, ou o acolhimento à diversidade humana, é o valor supremo do feminismo no século XXI, por isso, feminismo é “acolhedorismo”. Quarta onda é uma referência à proposta de Matos (2010).
15 – Em maio de 2020, o vídeo tinha mais de 500 mil visualizações, 60 mil, curtidas e quase 1.600 comentários.
16 – Em fevereiro de 2020, o vídeo contava com 950 mil visualizações, 90 mil curtidas e 4.786 comentários.
Ana Carolina Vila Ramos dos Santos carolina.vila@ifsp.edu.br

Doutora em Sociologia e Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus São Paulo-Pirituba, São Paulo, Brasil.