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Maternidade, crianças e cuidado: Um olhar a partir de uma política de acesso à água no semiárido brasileiro

O “olhado” e o corpo da criança: explorando conexões entre doença e criação

Adequar as formas de uso da água daquelas mães aos parâmetros médico-sanitários de potabilidade exigia, ao longo dos cursos, adverti-las sobre as doenças veiculadas por águas contaminadas. Na linguagem técnica ao longo daquele momento, os “micróbios, bactérias e germes” eram uma ameaça constante e tidos como os responsáveis pelo adoecimento dos corpos, sendo ainda mais perigosos justamente por serem invisíveis aos olhos. Era, portanto, função formadora e pedagógica daquele espaço provar a existência desses agentes patógenos para as presentes, ainda mais pelo fato de a contaminação por eles causada ser ainda mais nociva às crianças.

Ainda que minhas interlocutoras considerassem que as doenças podiam ser, sim, causadas por esses microrganismos, havia outros elementos em jogo que levavam ao mal-estar dos corpos como, por exemplo, o “olhado”. A questão do “olhado” e sua relação com as dinâmicas de morbidade é um assunto muito presente nas conversas e no dia-a-dia das casas. Aos primeiros sinais de doença, principalmente nas crianças pequenas, as mães procuravam alguém que pudesse benzê-las, algo que geralmente é feito por mulheres mais velhas. “Botar olhado” muitas vezes tem origem no despeito, na inveja, no ciúme e demais sentimentos negativos, o que faz com que não haja, necessariamente, uma intencionalidade de prejudicar aquela a quem se olha, podendo o “olhado” vir de alguém muito próximo e querido. Um dia, ao levar o filho pequeno para benzer, Luiza, filha de Esmeraldina explicou que o “olhado” nesse caso se dava pelo fato de o menino estar sendo muito paparicado pela família e a “rezadeira” lhe disse que o “olhado”, muitas vezes, encontra-se dentro da própria casa.

Esse fato nos parece digno de nota porque, justamente, permite articular as dinâmicas da morbidade a aspectos que não necessariamente se enquadram nas explicações patológicas da ciência médica e da biologia. O que estava em jogo era uma conexão muito significativa, a meu ver, entre doença e formas de criação, uma vez que o adoecimento do filho de Luiza tinha relação com a forma como que ele era educado em casa pela família. O conselho de Maria, a “rezadeira”, mais uma vez, nos informa sobre os modos mais ou menos aconselháveis de lidar com as crianças e sobre as avaliações em torno dos bons cuidados, conectando a saúde do corpo à conduta familiar.

Tomar o “olhado” como um aspecto fundamental das causas de adoecimento, de forma alguma quer dizer que essas mulheres não concebem as bactérias, vírus e micro-organismos como vetores de doenças e malefícios para as pessoas. Contudo, essas duas explicações podem se compor e não necessariamente se anular, pois superam o princípio cartesiano de que as causas para os fenômenos do mundo são únicas e excludentes.

Assim como nas reflexões do povo zande (povo que vive na região hoje compreendida pelo Congo, Sudão e República Centro-Africana) sobre a incidência da bruxaria e como ela se relaciona a eventos da vida cotidiana (Evans-Pritchard, 2005), há coexistências de causas que explicam o fato de uma pessoa, por exemplo, furar o pé na estrada com uma pedra pontiaguda. É claro que, para eles, o pé ser furado diz respeito à sua interação com a pedra, todavia, há que se explicar por que a pedra e a pessoa estavam no mesmo lugar e por que o acaso fez a pessoa pisar justamente no lugar onde havia a pedra. Esse acaso, ou seja, uma ordem de coincidências espaço-temporais, pode ser atribuído à influência da bruxaria, um conjunto rico e complexo de conhecimentos desse povo, que serve para explicar os infortúnios e mal agouros. Parafraseando para nosso contexto aqui, os vírus e microrganismos podem até justificar uma parte do adoecimento, contudo, nem todos adoecem da mesma forma e ao mesmo tempo e, por isso, alguém que constantemente está enfermo, ou que não consegue se curar, pode estar sob influência do “olhado” de alguém.

Tal reflexão coloca para nós uma concepção de corpo que, justamente como propusemos no início do texto, articula ambiente, cultura e natureza, aspectos geralmente desconexos em uma acepção disciplinar de saúde. Em Liberdade, o corpo é concebido a partir das suas composições múltiplas, que não se limitam às separações entre natureza e cultura, corpo e mente, e essa concepção nos provoca rumo a um aporte mais complexo das diversas influências que constituem nossa relação com o mundo e, portanto, nossa saúde.

Considerações finais

Este texto constitui um esforço em articular as temáticas da saúde e do cuidado, pensando como suas distintas concepções e práticas perpassam e constituem relações entre mães e crianças. Partindo de uma definição sociocultural de saúde, vimos como uma política de acesso à água conecta processos de constituição do Estado em relações de gênero e geração, classe e raça.

Observamos como essa política de superação e gestão da pobreza, ao regular as formas de manejo dessa substância tão essencial à vida física e social das coletividades, inaugura um conjunto de mecanismos que elegem as mães e as crianças como alvos de suas ações. Isso pode levar tanto a uma reafirmação do papel das mulheres no cuidado das crianças, como a uma responsabilização das mesmas e de seus filhos no sucesso dessas políticas.

O número de filhos, a situação familiar e conjugal das mães, sua condição socioeconômica e a sua racialização são fatores que agem na apreciação do cuidado que elas dedicam (ou não) aos seus descendentes, bem como na forma como as crianças se comportam e se apresentam publicamente. O corpo das crianças e suas ações perante os outros na comunidade transformam-se, portanto, em um importante referente a partir dos quais essas mães são analisadas no exercício da maternidade. O trabalho de se ocupar com o asseio dos corpos e das roupas, uma atribuição socialmente tida como feminina por excelência e muitas vezes menosprezada pelo seu caráter privado, revelava-se, então, como um fazer extremamente público, uma vez que preparava os corpos para a apresentação perante os outros. As diversas tarefas domésticas que moldam os corpos para serem vistos aos olhos dos outros constituem, portanto, aspectos fundamentais nos processos de diferenciação e coletivização dentro e fora da comunidade e, por isso, são também um trabalho público e político.

Nesse fazer sobre e desde os corpos, e nesse jogo entre dinâmicas públicas e privadas, as formas de criação adquirem um lugar central, que conecta corpo e conduta e mescla elementos que a ciência natural ou a ciência médica tendem a separar. A partir da prática do “olhado”, vemos como o cuidado para que as crianças não adoeçam articula formas de lidar com o corpo e formas de educar, de modo que um corpo doente é explicado não só por agentes patógenos, mas também por modos inadequados ou não recomendados de agir com e perante as crianças.

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Resumo

Neste artigo, analisamos a execução de uma política de acesso à água em uma comunidade quilombola do agreste de Pernambuco com o intuito de pensar como concepções distintas de saúde, corpo e higiene incidem sobre as relações entre as mães e as crianças. Investigamos de que forma o discurso estatal elege esses grupos sociais como alvo de suas ações, criando dispositivos de regulação e controle que colocam em primeiro plano práticas de cuidado produtoras de corporalidades e coletividades. Essas práticas, vistas a partir das relações de classe, gênero, raça e geração que as engendram, se desdobram em mecanismos de avaliação pública tanto do comportamento e temperamento das crianças, como do exercício da maternidade.

Palavras-chave: maternidade, crianças, acesso à água, cuidado, corpo.

Data de recebimento: 29/04/2020
Data de aprovação: 30/09/2020

Resumen

Maternidad, niños y cuidado: Una mirada desde una política de acceso al agua en el semiárido brasileño

En este artículo analizamos la implementación de una política de acceso al agua en una comunidad quilombola en el agreste de Pernambuco, con el objetivo de reflexionar sobre cómo diferentes concepciones de salud, cuerpo e higiene afectan las relaciones entre madres e hijos. Investigamos de que modo el discurso estatal elige a estos grupos sociales como el centro de sus acciones, creando dispositivos de regulación y control que ponen en primer plano las prácticas de cuidado productoras de corporealidades y colectivos. Estas prácticas, vistas desde las relaciones de clase, género, raza y generación que las engendran, engendran mecanismos de evaluación pública tanto del comportamiento y temperamento de los niños, como del ejercicio de la maternidad.

Palabras clave: maternidad, niños, acceso al agua, cuidado, cuerpo.

Abstract

Motherhood, children and care: A look from a water access policy in the brazilian semiarid

In this article, we analyze the implementation of a policy of access to water in a quilombola community in the agreste of Pernambuco in order to think about how different conceptions of health, body and hygiene affect the modes of relationship between mothers and children. We investigated how the state discourse chooses these social groups as the target of its actions, creating regulation and control devices that place care practices that produce corporealities and collectives in the foreground. These practices, seen from the relations of class, gender, race and generation that engender them, unfold in mechanisms of public evaluation both of the behavior and temperament of children, as well as the exercise of motherhood.

Keywords: motherhood, children, access to water, care, body.

Marcela Rabello de C. Centelhas marcelarabello91@gmail.com

Mestre e doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil, e pesquisadora vinculada ao Núcleo de Antropologia da Política, da mesma instituição. É professora efetiva de Sociologia do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, Brasil.