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Reflexões sobre promoção de saúde na escola: invenções e possibilidades de uma extensão universitária

O grupo como dispositivo de promoção de saúde na escola

O modelo educacional atual, majoritariamente influenciado pela lógica capitalista de seleção, meritocracia e exclusão, tem como consequência vivências de escolarização cada vez mais solitárias, competitivas e potencialmente geradoras de adoecimento. Na contramão desse movimento, tomamos o grupo como dispositivo-chave na promoção de saúde dentro do espaço escolar.

A partir da leitura do conceito de dispositivo em Deleuze (2006), Melsert e Bicalho (2012, p. 156) apresentam o grupo como um dispositivo que, “a partir do encontro de vários sujeitos, faz ver e faz falar múltiplas formas de ser, de pensar, de experimentar, de sentir o mundo”. Para Passos (2007), o grupo, enquanto dispositivo de intervenção, se oferece numa dupla abertura: produção de conhecimento e produção de transformação.

Apesar de não se poder prever os efeitos do encontro grupal, aqui apostamos em certas práticas como facilitadoras de encontros potentes e inventivos, assumindo não um lugar de especialistas, baseados em um “fazer para”, mas reconhecendo nossas implicações no campo e nos preocupando com um “fazer com”. Sendo assim, destaca-se a importância do diálogo entre os profissionais de Psicologia e os agentes daquela realidade escolar a qual se propõe a intervenção (alunos, professores, orientação educacional, pais, entre outros). É a partir do diálogo que então se podem conhecer as encomendas, aquilo que é esperado da intervenção, e desvelar as demandas de trabalho, que se mostram no encontro (ROSSI; PASSOS, 2014). Além disso, é preciso ser inventivo, utilizar recursos diversos. Aqui, muito nos vale a ideia da “caixa de ferramentas” apresentada por Foucault e Deleuze (1979).

A imagem de uma caixa de ferramentas supõe um conjunto de instrumentos que vão sendo utilizados de acordo com a necessidade, e geralmente em conjunto. Interessa-nos a metáfora da caixa para pensar o conceito de intervenção, considerando essa perspectiva de movimento e multiplicidade (MALITO, 2016, p. 128).

Nesse contexto, ganham espaço as oficinas como ferramentas potentes de intervenção grupal na escola. A oficina, segundo Afonso (2018, p. 9), é definida como “um trabalho estruturado com grupos, independentemente do número de encontros, sendo focalizado em torno de uma questão central que o grupo se propõe a elaborar, em um contexto social”. É importante esclarecer que as oficinas se diferem de um grupo terapêutico ou de um projeto apenas pedagógico, pois ela, como afirma a autora, trabalha também com os significados afetivos e as vivências relacionadas ao tema discutido.

Assim, possibilitando um encontro grupal mobilizador de questões relativas ao processo de escolarização, suas formas hegemônicas e as possibilidades de criação frente às mesmas, as oficinas se apresentam como relevante recurso para intervenções que visam à promoção de saúde no espaço escolar.

Intervenções possíveis na escola: a experiência de um projeto de extensão universitária

Tendo como preocupação as questões referentes ao adoecimento e ao sofrimento psíquico causados pelo processo de preparação para o vestibular em jovens de Ensino Médio e tomando a promoção de saúde na escola sob o olhar da integralidade e de aumento da potência de vida, foi idealizado por alunas do curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, em 2017, o projeto de extensão “Juventudes e Processos de Escolarização: Crises, Obstáculos e Invenções”.

O primeiro campo em que o projeto pôde se inserir foi um colégio federal de nível médio localizado no município de Niterói, RJ. Inicialmente, a proposta do projeto era trabalhar especificamente a temática do vestibular e futuramente expandir os temas abordados a partir do que surgisse no encontro com os estudantes.

Através da proposição de oficinas, apostamos em um espaço de coletivização das diversas formas como os estudantes experienciavam o processo de preparação para o vestibular, seus desafios e estratégias, de modo que pudessem se sentir acolhidos, encontrar suporte no grupo e descobrir possibilidades de apropriação e reinvenção de seus próprios percursos.

A proposta de trabalho, influenciada também pela pesquisa-intervenção (ROCHA; AGUIAR, 2003), permitia que os caminhos de análise fossem construídos pelo próprio grupo, em uma relação flexível entre os proponentes e os jovens participantes. Tal modelo possibilitaria um trabalho compartilhado, apostando numa atuação inventiva e desnaturalizadora dos lugares hegemônicos de facilitador e participante (AGUIAR; ROCHA, 2007).

A seguir serão apresentados dois relatos, registros de oficinas-experimentações realizadas no colégio, uma no ano de 2018 e outra em 2019, com alunos da terceira série do Ensino Médio.

O corpo do pré-vestibulando: dos dias “brancos” aos “coloridos”

No início da atuação do projeto de extensão, nossa proposta se voltava para a realização de uma série de oficinas regulares com um mesmo grupo de estudantes por vez. O grupo cuja experiência será narrada a seguir foi formado por 10 alunos, oriundos das 6 turmas de 3º ano do Ensino Médio do colégio, sendo 9 meninas e 1 menino. A média de idade dos participantes era entre 16 e 17 anos.

Ao longo dos encontros e através das atividades desenvolvidas, notamos que os estudantes se sentiram confortáveis para compartilhar seus anseios e angústias relacionados ao período do vestibular. Muitas questões mencionadas por alguns alunos, antes tidas como individuais, acabavam tomando um contorno coletivo, conforme se percebia que outros participantes também se identificavam com as mesmas.

Também não achar, por ter várias pessoas, não achar que é a única que tá lá pensando que tá tudo errado […] ver também a realidade de outras pessoas (Lucas1, 16 anos).

Muito foi falado sobre a pressão para a realização do exame, os afetos mobilizados no processo de preparação e as expectativas sobre a obtenção de sucesso no mesmo. Além disso, também foram fortemente mencionados o cansaço decorrente da farta rotina de estudos e os diferentes posicionamentos das famílias diante de tais questões. “Eu me sinto cansada, não consigo esquecer nem um pouquinho, toda hora eu penso, mas eu não tô desesperada achando que vai dar tudo errado não” (Amanda, 17 anos).

Na terceira oficina desse grupo, decidimos retomar algumas dessas falas através de uma atividade que colocasse o corpo como lugar de destaque para pensar as questões que atravessavam esses jovens. Preparamos tiras brancas de papel com a seleção de algumas falas ditas por eles ao longo dos encontros anteriores. Frases como “Eu não quero ser aquele aluno que as pessoas olham estranho porque não passou no vestibular”, “Eu não tenho tempo de dormir”, “Tempo é dinheiro”, dentre outras, foram dispostas no chão para que os estudantes pudessem visualizá-las e escolher aquelas com as quais mais se identificavam.

Após esse primeiro momento, apresentamos uma grande folha de papel pardo e propusemos que eles desenhassem o corpo de um estudante para representá-los. Uma das participantes se posicionou ao centro da folha e o contorno foi construído. A proposta seguinte foi que eles dispusessem as tiras de papel sobre o corpo recém-criado, posicionando-as de acordo com o local no corpo onde acreditavam que aquelas frases os afetavam. Discutimos sobre a disposição criada e o porquê das escolhas daqueles locais. A frase “Meus pais não levam a sério minha necessidade de estudar”, por exemplo, foi posicionada na região do peito, próxima ao coração, pela relação do órgão com os sentimentos e os relacionamentos. Já a frase “Preciso descansar”, apesar de colocada na cabeça, afirmaram estar relacionado a todo o corpo.

Na sequência foram distribuídos pequenos papéis coloridos com a proposta de que escrevessem aquilo que acreditavam que aquele corpo estava precisando ouvir, quais seriam possíveis falas de cuidado para direcionar a ele. Após um tempo, pedimos para que compartilhassem suas produções, e o que se seguiu foram frases como: “Não precisa se cobrar tanto”, “Calma, eu estou do seu lado e não vou deixar você desistir”, “Cada um tem seu tempo”.

Perguntados sobre o que gostariam de fazer com essa nova produção, os jovens decidiram posicionar os novos papéis no corpo, de forma a responder as frases antes colocadas. Uma das sugestões também foi substituir os papéis brancos pelos papéis coloridos, mas os estudantes optaram por deixar ambos, afirmando que reconhecer e não “apagar” esses problemas é importante para que se pensem soluções e formas de cuidado.

Discutimos juntos sobre a nova disposição e o que isso lhes causava. Os estudantes responderam que o corpo estava bonito, mencionando sensações de alegria e alívio. Conversamos sobre a relação entre o corpo do estudante desenhado, seus atravessamentos e sua nova configuração e os corpos dos próprios jovens. Estabeleceram relações entre as primeiras frases, impressas em papel branco, como sendo os “dias brancos”, dias de desânimo e desmotivação, enquanto os papéis coloridos representavam os “dias coloridos” em que se sentiam mais confiantes e animados.

Uma das alunas apontou sobre a importância dessa atividade para entender que nem todos os dias são “brancos”, assim como nem todos os dias são “coloridos”, mas que eles têm o poder para colori-los. Falaram sobre não normalizar que a preparação para o vestibular precisa ser sofrida, reservando seu bem-estar e sua saúde para um futuro após aprovação, quando tudo será melhor, e, ainda, sobre entender que esse processo pode ser “colorido”, pode ser diferente.
Outro ponto mencionado e que merece destaque foi a reflexão de que a realidade do ensino brasileiro não é igualitária e que o vestibular, no modo como é feito hoje, não comporta essas diferenças e que, portanto, o resultado não os define. Ao serem perguntados sobre o que gostariam de fazer com aquele corpo, o grupo decidiu que aquela produção seria exposta em alguma área visível da escola para que mais pessoas tivessem acesso.

As ilhas do autoconhecimento: e eu no vestibular?

Uma das oficinas realizadas com os estudantes da turma de 3º ano do mesmo colégio em 2019 foi intitulada E eu no vestibular?, trazendo como temática questões de autoconhecimento que permeiam o momento da escolha profissional e de preparação para o vestibular. Compareceram a essa oficina 10 estudantes, sendo 7 meninas e 3 meninos. A média de idade entre os participantes também foi entre 16 e 17 anos.

Selecionamos algumas relações que compõem as vivências desses estudantes como disparadores para pensar sobre autoconhecimento e como essas relações se estabelecem em suas vidas no momento de preparação para o vestibular. Dividimo-las em diferentes categorias com pequenos grupos, que chamamos de ilhas. Nesses subgrupos, pudemos discutir sobre rotina de estudos, lazer, relações com família, amigos e parceiros amorosos, além de trazer a relação com o próprio corpo e suas emoções. Os participantes passaram por todas as categorias, podendo compartilhar experiências e dificuldades acerca do tema proposto. Elaboramos pequenas atividades como disparadores para a discussão nos subgrupos as quais, posteriormente, seriam ampliadas para um debate final com todos os alunos.

Muitos deles relataram o modo como o preparo para o vestibular gera uma série de restrições que afetam diversos âmbitos de suas vidas, impossibilitando que explorem e se dediquem a outras partes não vinculadas aos estudos. Flexibilizar a rotina de estudos para ter momentos de lazer ou de convivência com familiares e amigos se apresentava como um desafio, uma vez que, quando se permitiam a isso, se sentiam culpados por não estarem estudando. “No meio de tanta coisa você acaba esquecendo as coisas boas” (Ana Júlia, 17 anos).

A partir dessas circunstâncias, eles não conseguiam manter seus vínculos afetivos durante o ano de vestibular, o que produzia sentimentos de tristeza e solidão, segundo os mesmos. Assim, declararam que a experiência do vestibular afasta e rompe laços por conta da rotina intensa de estudos e cobrança. Alguns alunos até admitiram se privar de estabelecer certas relações que poderiam atrapalhar o foco nos estudos, principalmente namoros.

Conforme suas narrativas, compartilhar essas adversidades os remeteram a emoções como angústia, desconforto, tristeza, irritabilidade e cansaço que sentiam em sua rotina. Esse cotidiano sobrecarregado contribuía para a construção de um olhar negativo frente ao processo de vestibular que estavam experienciando. “Eu me fecho para tudo e tento não sentir nada, nem as coisas boas e nem as ruins” (Matheus, 16 anos).

Quando ampliamos a conversa para o debate geral das questões que foram levantadas nos subgrupos, conversamos bastante sobre a importância da manutenção de bons momentos de convivência e de como isso impacta na saúde. Discutimos também sobre o planejamento e inclusão desses momentos de autocuidado (lazer, convivência com pessoas queridas etc.) na organização das atividades, sempre considerando as possibilidades reais de cada um, até mesmo como forma de evitar culpabilização por estarem desviando do que foi previamente planejado. Assim, a direção da discussão foi de considerar a forma como eles têm vivenciado essas relações, pensar em como se sentem com os modos de estarem juntos que têm conseguido sustentar e refletir sobre estratégias possíveis.

1 – Os nomes aqui apresentados são fictícios para preservar as identidades dos participantes.
Maryana de Castro Rodrigues maryana_rodrigues@id.uff.br

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.

Ingrid Moraes de Siqueira psi.ingridmoraes@gmail.com

Psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.



Vitória Ramos Santana vitoriaramos@id.uff.br

Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.



Juliana Caminha julianacaminha@id.uff.br

Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Brasil (UFF).



Vivyan Karla do Nascimento Pereira da Silva vivyanpereira@id.uff.br

Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Brasil (UFF).