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“Sem um pingo de cor”: experiências de crianças e adolescentes com a Doença Falciforme na Paraíba

Considerações finais

A DF afeta profundamente a vida dos acometidos e esse processo de afetação começa antes mesmo do diagnóstico. Com a baixa efetividade na realização do teste do pezinho, especificamente em relação à doença falciforme, o diagnóstico que deveria ser precoce não acontece, então, de fato, são as crises e sintomas relacionados à enfermidade que levam ao reconhecimento e diagnóstico da doença.

Neste estudo, o desconhecimento da doença por parte dos pais é unânime no momento do diagnóstico, de modo que todos passaram a saber que carregam o traço falciforme a partir do nascimento e diagnóstico das(os) filhas(os). Notamos também que esse desconhecimento se estende aos profissionais de saúde, o que dificulta ainda mais a vida dos adolescentes e crianças.

Se ainda existem lacunas na realização do teste do pezinho, a atenção em saúde para as pessoas com doença falciforme e suas famílias deveria levar em consideração a condição genética dos pais com orientação/aconselhamento genético e planejamento familiar. Essa é uma situação de luta por direitos sociais em saúde, considerando que a inexistência de políticas de atenção voltadas à população negra e com doença falciforme foi extinta pelo Ministério da Saúde, em 2019.

Nos relatos da experiência com essa enfermidade, as crianças e adolescentes comentam que é no contexto escolar que fica nítida a diferença entre as pessoas com DF e as não acometidas pela doença. Para nossos(as) interlocutores(as), a icterícia e o déficit de crescimento são sinais considerados explícitos, fazendo com que os comentários dos(as) demais alunos(as) os incomodem.

A esse respeito, o racismo institucional não aparece nitidamente nas falas, mas a dificuldade de acesso ao sistema de saúde e as problemáticas enfrentadas pelas pessoas com DF revelam elementos relacionados ao racismo enfrentado. Por exemplo, aparece na pesquisa pelo nome de “preconceito” usado por uma das mães; as outras, mesmo tendo dificuldades parecidas, não fazem essa associação. As crianças e os adolescentes também falaram sobre dificuldades encontradas no enfrentamento da doença nas redes de saúde pública e privadas. Essa falta de percepção do racismo institucional se dá pela característica de ser velado, acontecendo de forma tão minuciosa que nem sempre é notado.

Percebe-se que as crianças e adolescentes do interior têm mais dificuldade na busca por assistência que os da capital, sendo que o transporte para levar ao atendimento médico em outras cidades é uma barreira a ser enfrentada, nos casos em que a cidade não dispõe de atendimento para o caso específico. Além disso, os usuários da rede pública de saúde demonstram mais dificuldades nessa luta por assistência que os usuários dos sistemas privados na marcação de consultas, exames e atendimento de emergência.

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Resumo

Esse artigo traz uma reflexão a partir das perspectivas de crianças e adolescentes que vivem com a Doença Falciforme ou anemia falciforme, como é conhecida, sendo problematizada através da experiência e limites da vida com a doença. Trata-se de uma doença genética que acomete a população negra, o que traz consequências para o diagnóstico e tratamento. O estudo foi realizado com pais, responsáveis, crianças e adolescentes em cidades do interior e na capital paraibana, Brasil. O diálogo com os interlocutores se deu através da produção de desenhos e de entrevistas semiestruturadas. Essa abordagem permitiu concluir que os entendimentos e as experiências da doença associam-na a uma alteração no sangue, marcada por crises de dor como expressão unívoca da enfermidade. O desconhecimento dos profissionais de saúde da doença, assim como do ambiente escolar, reforçam a lógica do racismo institucional, resultando em bullying, preconceito de classe e raça.

Palavras-chave: anemia falciforme, experiência da doença, criança, racismo.

“Sin una gota de color”: vivencias de niños y adolescentes con anemia falciforme en Paraíba (Brasil)

Resumen

Este artículo reflexiona sobre las perspectivas de los niños y adolescentes que viven con la enfermedad de células falciformes o anemia de células falciformes como se la conoce; problematizado a través de la experiencia y los límites de la vida con la enfermedad. Es una enfermedad genética que afecta a la población negra, lo que tiene consecuencias para el diagnóstico y tratamiento. El estudio se realizó con padres, tutores, niños y adolescentes en ciudades del interior y en la capital de Paraíba, Brasil. Se realizó el diálogo con los interlocutores mediante la producción de dibujos y entrevistas semiestructuradas. Este enfoque nos permitió concluir que los entendimientos y experiencias de la enfermedad la asocian con un cambio en la sangre, marcado por crisis de dolor como expresión única de la enfermedad. El desconocimiento de los profesionales de la salud sobre la enfermedad, así como en el ámbito escolar, refuerza la lógica del racismo institucional, resultando en bullying, prejuicio de clase y raza.

Palabras clave: anemia de células falciformes, experiencia de enfermedad, niño, racismo.

“Without a drop of color”: experiences of children and adolescents with sickle cell disease in Paraíba (Brazil)

Abstract

This article reflects on the perspectives of children and adolescents living with sickle cell disease or sickle cell anemia as it is known; problematized through the experience and the limits of life with the disease. It is a genetic disease that affects the black population, which has consequences for diagnosis and treatment. The study was carried out with parents, guardians, children and adolescents in cities and in the capital of Paraíba, Brazil. The dialogue with the interlocutors took place through the production of drawings and semi-structured interviews. This approach allowed us to conclude that the understandings and experiences of the disease associate it with a change in the blood, marked by crises of pain as a unique expression of the disease. The ignorance of health professionals about the disease, as well as in the school environment, reinforces the logic of institutional racism, resulting in bullying, prejudice of class and race.

Keywords: sickle cell anemia, disease experience, child, racism.

Data de recebimento/Fecha de recepción: 30/09/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 05/01/2020

Bruna Tavares Pimentel bruna.t.pimentel@hotmail.com

Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais, mestra pelo programa de pós-graduação em Sociologia (PPGS) e pós-graduanda em Gênero e Diversidade na Escola, todos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil.

Ednalva Maciel Neves ednmneves@gmail.com

Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ICH/UFRGS, Brasil, Professora dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, Brasil. Pesquisadora do Grupessc/UFPB e do Mandacaru/UFAL, Brasil, integrante da Rede Antropologia e Saúde.

Flávia Ferreira Pires ffp23279@gmail.com

Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Mestre, Doutora e Pós-doutora pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Pós-doutora pela Universidade de Sheffield, Inglaterra, e UFMG; Pesquisadora do CNPq, Líder do CRIAS, Professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil.