Foto: Pxhere

“Sinto que renasci”: a inserção de adolescentes em um Programa de Proteção

Conclusão

No núcleo analisado, foi possível identificar que os sentidos subjetivos podem vir a se posicionar de forma distinta em diferentes contextos, sempre convergindo do social para o individual, e posicionando o sujeito como protagonista desses fatos (GONZALEZ REY, 2012). Pelo foco de atuação do Programa buscar em especial garantir a integridade física do/a usuário/a, ocorrem impactos de ordem objetiva e subjetiva no desenvolvimento dos/as adolescentes que ingressam no PPCAAM, já que estes/as adolescentes precisam elaborar novos sentidos e subjetivações acerca de suas trajetórias, além da adaptação a um novo espaço de convivência e seguir regras que até então não faziam parte da sua realidade. Dentre as regras, a restrição das redes sociais e Internet foi mencionada pela maioria dos/as adolescentes, sendo esta experiência apontada como até mais difícil do que a separação dos familiares. Essa regra surge como forma de garantir a segurança e o sigilo do local de proteção. No entanto, é através da Internet que os adolescentes mantêm contato com os familiares, tornando-se confusa para eles a forma adequada de um uso seguro. Nesse sentido, é importante que a equipe técnica compreenda que a saída das redes sociais representa, muitas vezes, para o adolescente, a perda significativa da sua própria identidade e dos vínculos com o que é conhecido.

Além disso, cabe destacar que a transgressão pode ser considerada como um comportamento habitual nessa fase da vida que se caracteriza pela construção de uma identidade própria e, por isso, os atos transgressores, durante o período da proteção, devem ser encarados com naturalidade e como momentos de aprendizado e reafirmação dos valores até então compartilhados. As figuras de referências têm um papel fundamental neste processo, pois permitem, através do acolhimento e diálogo, que o/a adolescente possa incorporar os valores sociais e as regras de segurança, sem interferir na sua busca pela própria autonomia e identidade (ŢÎMPĂU, 2015). Através da construção do Plano Individual de Atendimento (PIA), o/a usuário/a pode ser orientado/a sobre seus deveres e responsabilidades, permitindo assim que ele/a possa gerenciá-las de forma positiva e empática.

Nesse sentido, a ampliação da equipe técnica foi identificada como uma melhoria importante para o funcionamento do Programa, já que, em um país tão continental como o Brasil, e em um estado tão grande como a Bahia, com o índice de violência letal tão alarmante, é preciso contratar mais profissionais para contemplar as demandas que o PPCAAM exige. Além disso, a dificuldade do repasse das parcelas de recursos federais para o Estado delimita a ação da equipe na garantia de preservar a vida destes/as e de outros/as adolescentes que necessitam desta modalidade de proteção.

Para além das questões práticas para saída do território de ameaça, os/as usuários/as enfrentam dificuldades em se distanciar de familiares e pessoas próximas, o que gera sentimento de tristeza, angústia e solidão. A adaptação em um novo espaço de convivência e o estabelecimento de relações entre pares também foi mencionado, já que não se pode relatar sobre suas próprias trajetórias no local de proteção, o que gera sentidos desfavoráveis relativos à confiança. A presença da equipe técnica de forma mais sistemática foi citada como relevante, pois os/as profissionais do Programa são associados/as a figuras de referência pelos/as protegidos/as. A continuidade dos estudos e a inserção no mercado de trabalho foram citados como uma perspectiva de desligamento do PPCAAM, sendo válido salientar que todas as meninas citaram este desejo após o desligamento do Programa.

Outra questão confirmada foi que os/as usuários/as compreendem o sentido da proteção à vida fornecida pelo Programa e identificam que, para além desta garantia, são possibilitadas novas experiências que abrangem seus direitos fundamentais como a inserção na escola, cursos profissionalizantes, entre outros. Dessa forma, o PPCAAM parece representar não apenas uma proteção imediata, mas também novos projetos de vida para esses/as adolescentes.

Em relação aos limites da presente investigação, o tempo para a coleta de dados foi considerado curto e não foi possível contactar todos/as adolescentes que se encontravam em proteção. Além disso, foi avaliada a importância de se pensar em investigações futuras que realizem o acompanhamento longitudinal dos/as adolescentes no PPCAAM, buscando compreender os impactos a médio e longo prazo da passagem pelo programa. Com isso, muito ainda pode ser analisado e discutido, pois muitos/as adolescentes ainda se encontram em situação de vulnerabilidade e risco real e iminente de morte, necessitando que sejam propostas as devidas intervenções para uma transformação dessa realidade.

O propósito foi auxiliar nas discussões acerca desse Programa, pois ainda existem poucas produções científicas sobre o PPCAAM e sobre os sentidos subjetivos produzidos pelos/as usuários/as em Programas de Proteção. Com isso, espera-se pensar em investigações que vislumbrem a importância dessa política pública na garantia dos direitos desse grupo social, principalmente no seu direito à vida.

Por fim, cabe destacar que o PPCAAM deve manter seu caráter de excepcionalidade e, para isso, é crucial o fortalecimento de políticas de distribuição de renda (com redução da desigualdade social), de educação, assim como o fortalecimento de medidas protetivas que atuem precocemente junto aos adolescentes em situação de vulnerabilidade. Isso é, a proteção à ameaça de morte precisa começar na defesa irrestrita da proteção integral de crianças e adolescentes.

Referências Bibliográficas

AGUIAR, W. M. J. de; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

AGUIAR, W. M. J. de; SOARES, J. R.; MACHADO, V. C. Núcleos de significação: uma proposta histórico-dialética de apreensão das significações. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 45, n. 155, p. 56-75, mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

AZEVEDO, A. C. O.; FERNANDES, R. M. Violência e juventude negra: um estudo sobre a política de proteção de crianças e adolescentes ameaçados de morte. Revista de Movimentos Sociais e Conflitos, v. 2, n. 1, p. 234 – 251, Jan./Jun. 2016.

BERNARDI, D. C. F. Famílias em situação de vulnerabilidade. In: BERNARDI, D. C. F. (Org.). Cada caso é um caso: a voz das crianças e dos adolescentes em acolhimento institucional. São Paulo: Associação Fazendo História, 2010, p. 37-44. Disponível em: . Acesso em: 18 Ago. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 510, de 07 de abril de 2016. Brasília, 2016. Disponível em: goo.gl/sxgLwS. Acesso em: 18 ago. 2020.

______. Decreto nº 6.231/07, de 11 de outubro de 2007. Institui o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte – PPCAAM. Brasília, DF: Presidência da República, 2007. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

______. Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a temática do lactente, da criança e do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais da criança e do adolescente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2020.

______. Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA]. Lei Federal nº 8.069. Brasília, 1990. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

______. Secretaria de Direitos Humanos. Programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte:PPCAAM/Secretaria de Direitos Humanos. Brasília, DF, 2010. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

______. Secretaria de Direitos Humanos. Um novo olhar PPCAAM: programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte. Ministério dos Direitos Humanos, Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2.ed., Brasília, DF, 2017.

CERQUEIRA, D. et al. Atlas da violência 2017. Org. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

CERQUEIRA, D. et al. Atlas da violência 2019. Org. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: < https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/19 0605_atlas_da_violencia_2019.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.

FEIJÓ, R. B.; OLIVEIRA, E. A. Comportamentos de risco na adolescência. Jornal de Pediatria, v. 77, supl. 2, p. 125-134, 2001. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

GONZÁLEZ REY, F. As categorias de sentido, sentido pessoal e sentido subjetivo: sua evolução e diferenciação na teoria histórico-cultural. Psicologia da Educação, São Paulo, n. 24, p. 155-179, 2007. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

______. As configurações subjetivas do câncer: um estudo de casos numa perspectiva construtivo-interpretativa. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 30, n. 2, p. 328-345, 2010. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

______. O social na Psicologia e a Psicologia social: a emergência do sujeito. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

MARCOLAN, M. L. P.; FRIGHETTO, A. M.; SANTOS, J. C. A Importância da Família no Processo de Aprendizagem da criança. (N)Ativa – Revista de Ciências Sociais do Norte de Mato Grosso, [S. l.], v. 2, n. 1, 2013.

MELO, D. L. B.; CANO, I. (Org.). Índice de Homicídios na Adolescência: IHA 2014. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2017.

KRUG, E. et al. (Org). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2002.

OLIVEIRA, B. R. G.; ROBAZZI, M. L. C. C. O Trabalho na vida dos Adolescentes: Alguns fatores determinantes para o trabalho precoce. Revista Latino-Americada de Enfermagem, [S. l.], v. 9, n. 3, p. 83-9, maio 2001. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

OLIVEIRA, R. L. S. Sentidos subjetivos de adolescentes soropositivos para HIV. 2015. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal da Bahia, 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Desenvolvimento Humano 2014. Sustentar o Progresso Humano: Reduzir as Vulnerabilidades e Reforçar a Resiliência. Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal: Instituto Camões da Cooperação e da Língua Portuguesa, 2014. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

OZELLA, S.; AGUIAR, W. M. J. Desmistificando a concepção de adolescência. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 133, p. 97-125, 2008. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

PEREIRA, S. E. Crianças e adolescentes em contexto de vulnerabilidade social: articulação de redes em situação de abandono ou afastamento do convívio familiar. DF, 2013. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

REIS, T. F. Se a morte é um descanso, quero viver cansado: análise do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

ROSA, E. M. et al. O processo de desligamento de adolescentes em acolhimento institucional. Estudos de Psicologia, Natal, v. 17, n. 3, p. 361-368, 2012. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

ROSATO, C. M. Subjetividades ameaçadas: Mudança de nome de testemunhas protegidas. Faculdade do Vale do Ipojuca. Estudos de Psicologia, Natal, v. 18, n. 2, p. 269-276, abr./jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

SARMENTO, M. J. A sociologia da infância e a sociedade contemporânea. In: ENS, R. T.; GANHANI, M. C. (Org.). A sociologia da infância e a formação de professores. Curitiba: Ed. Universitária Champagnat, 2013. p. 13-46.

SOARES, T. M. et al. Fatores associados ao abandono escolar no ensino médio público de Minas Gerais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 757-772, jul./set. 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

ŢÎMPĂU, C. The Role of Moral Values in Development Personality Teenagers. Romanian Journal For Multidimensional Education/Revista Romaneasca Pentru Educatie Multidimensionala, n. 7, v. 1, p. 75-88, 2015.

WAISELFISZ, J. J. Mapa Da Violência 2015: Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil. Rio de Janeiro: Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais – Flacso, 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2020.

Resumo

Esta investigação objetiva analisar os sentidos subjetivos atribuídos ao Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) por adolescentes protegidos no estado da Bahia, Brasil. Esta política foi instituída em função do aumento do número de homicídios na faixa etária de 15 a 19 anos e a necessidade de proteção para aqueles que sofrem iminente ameaça de morte. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 16 protegidos/as, sendo que os resultados demonstram a importância do programa no direito à vida e as principais dificuldades enfrentadas pelos adolescentes para permanecerem em um programa cuja inserção envolve mudanças, regras e restrições. Pretende-se contribuir para a qualificação dessa importante política a partir da difusão das vozes dos adolescentes, além de pensar em investigações futuras que realizem o acompanhamento longitudinal dos/as adolescentes no PPCAAM, buscando compreender os impactos a médio e longo prazo da passagem pelo programa.

Palavras-chave: adolescência, proteção, sentido subjetivo, violência letal.

“Siento que renací”: la inserción de adolescentes en un Programa de Protección

Resumen
Esta investigación tiene como objetivo analizar los significados subjetivos atribuidos al Programa de Protección a Niños, Niñas y Adolescentes Amenazados de Muerte (PPCAAM) por adolescentes protegidos en el estado de Bahía, Brasil. Esta política fue instituida debido al aumento en el número de homicidios en el grupo de edad de 15 a 19 años y la necesidad de protección para quienes sufren una amenaza de muerte inminente. Se realizaron entrevistas semiestructuradas a 16 personas protegidas, y los resultados demuestran la importancia del programa en el derecho a la vida y las principales dificultades que enfrentan los adolescentes para permanecer en el programa. Se pretende contribuir a la calificación de esta política, basada en la difusión de las voces de los adolescentes, además de pensar en futuras investigaciones que realicen el seguimiento longitudinal de los adolescentes, buscando comprender los impactos a mediano y largo plazo de su paso por el programa.

Palabras clave: adolescencia, protección, sentidos subjetivos, violencia letal.

“I feel I was reborn”: the insertion of adolescents in a Protection Program

Abstract

This investigation aims to analyze the subjective meanings attributed to the Program for the Protection of Children and Adolescents Threatened with Death (PPCAAM) by protected adolescents in the state of Bahia, Brasil. This policy was instituted due to the increase in the number of homicides in the 15 to 19 age group and the need for protection for those who suffer an imminent death threat. Semi-structured interviews were carried out with 16 adolescents, and the results demonstrate the importance of the program in the right to life and the main difficulties faced in a program whose insertion involves changes and restrictions. It’s intended to contribute to the qualification of this important policy, based on the dissemination of the voices of adolescents, in addition to thinking about future investigations that carry out the longitudinal monitoring of adolescents, seeking to understand the medium and long-term impacts of passing through the program.

Keywords: adolescence, protection, subjective sense, lethal violence.

Data de recebimento: 23/08/2020
Data de aprovação: 09/12/2020

Bianca Orrico Serrão bianca.orrico@gmail.com

Psicóloga, mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade de Coimbra, Portugal. Aluna de doutorado no Centro de Investigação em Estudos da Criança no Instituto de Educação da Universidade do Minho, Braga, Portugal.

Juliana Prates Santana julianapsantana@gmail.com

Psicóloga, Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, Braga, Portugal.

Maria Jorge Santos Almeida Rama Ferro mariajorgef@fpce.uc.pt

Psicóloga, Professora Auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Portugal. Mestrado e Doutorado em Psicologia na Universidade de Coimbra, Portugal. Suas linhas de investigação envolvem as áreas de Multiculturalismo, Teoria Crítica e Modelos de Aconselhamento.