Foto: Flávio Pereira

A curiosidade na adoção: terreno pantanoso ou saúde psíquica?

Considerações

Segundo Winnicott (1955/1997), mais do que informações, as crianças precisam de pais confiáveis, que estejam do seu lado na busca da verdade, e que compreendam sua necessidade de viver as emoções apropriadas às situações reais. Elas têm uma capacidade incrível de descobrir os fatos, que são simplesmente aceitos como fatos. O ‘mistério’ pode gerar um problema muito maior, e permite a criação de fantasias perturbadoras.

Quando há uma dificuldade muito grande nos pais com relação à adoção, a curiosidade é sentida como um perigo em potencial, mas seu bloqueio produz um estado de estagnação psíquica com efeitos adversos para toda a família. No caso clínico citado, isso fica claro, por exemplo, na forma com que a paciente montava cenários nos quais não havia ação. Não havia caminho possível para o desenvolvimento. Sua capacidade de aprendizagem e o convívio social ficavam mutilados. Da parte dos pais, havia o temor contínuo de que a história de adoção encoberta viesse à tona com efeitos incontroláveis. Nos bastidores da comunicação havia sempre um segredo pesado a ser sustentado.

O medo de perder o filho inclui muitas vezes a ideia de que, sabendo de sua história, ele irá procurar os genitores. Afinal, quem são ‘os pais verdadeiros’? A insegurança dos pais adotivos não se sustenta na realidade. Os ‘pais verdadeiros’ são aqueles que criam a criança por toda uma vida, que lhe dão seu nome, suas horas de sono, seus valores, seu amor, seus limites e seus cuidados. Em condições normais, o filho não irá questionar sua importância. Sua investigação servirá para que tenha uma noção mais inteira de si mesmo.

Em minha experiência clínica tenho encontrado também grande resistência em alguns adotados em abrir as portas de sua curiosidade, apesar dos movimentos de abertura dos pais. Para estes jovens, tocar em sua história é abrir uma ferida assustadora. Na análise, a curiosidade pode aparecer em relação à figura do analista, sentido inconscientemente na transferência como representante das figuras parentais. Nestes casos, respeitar o ritmo de cada um é essencial, para que o impulso à pesquisa ocorra de forma saudável e com uma tensão que possa ser suportada.

A psicanálise tem como pilar principal a busca da verdade de cada um no caminho de um desenvolvimento harmônico. A curiosidade assume um papel fundamental nessa busca. Ela representa uma medida de saúde. No campo da adoção, pode ser perturbadora para todos os membros da família, mas é essencial na constituição de bases verdadeiras. Nosso trabalho, como analistas, é auxiliar a todos neste trajeto precioso que é a apropriação de si mesmo.

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Resumo

Este artigo aborda o tema da curiosidade no universo da adoção. São ressaltados os aspectos que indicam saúde psíquica, assim como aqueles que denotam um bloqueio de recursos pessoais essenciais ligados à busca de conhecimento. As angústias dos pais adotivos, seu medo de perder o filho, suas dificuldades em relação a viver o luto de sua esterilidade ou de reconhecer as diferenças entre eles e a criança, entre outras, podem levá-los a desestimular o adotado a pesquisar sua história. Da mesma forma, este último pode apresentar resistências a fazê-lo em função das dores inerentes a este processo. A possibilidade de sentir e de expressar curiosidade é considerada uma medida de saúde mental, especialmente na criança ou adolescente adotados, que têm diante de si a tarefa de construir um sentimento de identidade sólido apesar das lacunas e traumas vividos. É apresentado um caso clínico, no qual havia por parte dos pais intensa dificuldade em contar à filha que ela era adotada, o que resultava em prejuízos importantes no seu desenvolvimento. O trabalho psicanalítico com a criança e o acompanhamento regular em consultas com os pais permitiram que fosse retomado o caminho para o crescimento.

Palavras-chave: curiosidade adoção, pais adotivos, psicoterapia psicanalítica, dificuldades de aprendizagem.

Data de Recebimento: 16/02/2015
Data de Aceitação: 23/03/2015

Gina Khafif Levinzon ginalevinzon@gmail.com

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Doutora em Psicologia Clínica-USP, professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica CEPSI-UNIP, São Paulo, Brasil.