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A difusão do diagnóstico de transtorno bipolar infantil: controvérsias e problemas atuais

O transtorno bipolar infantil: controvérsias e problemas atuais

O caso do Transtorno Bipolar infantil é paradigmático do contexto da psiquiatria infantil contemporânea, investigada no tópico anterior e indissociável das mutações que a noção de infância sofreu nos últimos anos. Em relação à psiquiatria infantil, observa-se que a bipolaridade marca uma linha de continuidade entre a psicopatologia infantil e a do adulto, de uma perspectiva que difere da noção desenvolvimentista tradicional.

Até meados dos anos 90, no entanto, não se falava da possibilidade de encontrar esse quadro na criança. Segundo Withaker (2010), entre os anos de 1995 e 2003, observa-se um aumento de quarenta vezes no número de crianças diagnosticadas com este transtorno nos EUA. Healy (2008), por sua vez, indica que este aumento significativo é bastante surpreendente quando olhado de uma perspectiva histórica. Muito embora o Transtorno Bipolar infantil nunca tenha sido incluído como uma categoria diagnóstica autônoma no DSM, os diagnósticos feitos em crianças em sua maioria são rotulados como transtorno bipolar não especificado (NOS)5.

Cabe ressaltar que grande parte dos diagnósticos feitos nos dias de hoje são realizados através de um questionário semelhante ao aplicável em adultos para mensurar as oscilações de humor. Este é distribuído amplamente por companhias e organizações de pacientes, como a Juvenile Bipolar Research Foundation. O questionário, que contém sessenta e cinco itens, é usualmente respondido pelos pais, sendo por meio dele que muitas crianças passam a iniciar o tratamento.

A popularização deste diagnóstico é também sustentada por hipóteses discutidas em centros de pesquisas renomados nos EUA. Em 1996, Bárbara Geller esboçou a primeira lista de critérios para o diagnóstico do transtorno bipolar do humor no âmbito de estudos do Instituto Nacional de Saúde Mental norte americano – National Institute of Mental Health (NIMH). O estudo apontava para a necessidade de aprofundamento teórico sobre esta afecção, uma vez que muitas das crianças que apresentavam uma condição que poderia se encaixar nesses critérios teriam sido diagnosticadas com TDA/H ou esquizofrenia infantil – quando os sintomas se apresentam de maneira mais severa. A partir deste estudo, desenvolveu-se, em 2001, uma mesa redonda no encontro da NIMH sobre transtorno bipolar pré-puberal. De acordo com Olfman (2007), desde então, qualquer publicação, seja ela de caráter crítico, ou até mesmo com teor cético, ajudou a inflamar a discussão em torno deste diagnóstico.

Naquele momento, as questões principais quanto à bipolaridade infantil giravam em torno da diferença entre os sintomas manifestados no adulto e aqueles referentes à infância. Ao contrário de sua sintomatologia no adulto, a bipolaridade infantil se manifestaria através de oscilações de humor que podem ocorrer ao longo do dia. A bipolaridade infantil elimina a noção de um tempo mínimo para os episódios de mania: os chamados de ciclos ultrarrápidos que a caracterizam podem oscilar entre alguns minutos ou dias. Ademais, sugere-se que o curso da doença tende a ser crônico e contínuo, diferente da versão adulta, caracterizada por episódios agudos e esporádicos.

No entanto, encontramos controvérsias dentro do próprio campo da psiquiatria infantil no que concerne aos sintomas que caracterizariam a mania na infância. Geller e Luby (1997) indicam que a mania na infância se manifesta por euforia, grandiosidade, falta de sono, hipersexualidade e outros sintomas associados à definição clássica de mania. Já para outro psiquiatra – Joseph Biederman – que lidera pesquisas pioneiras sobre o transtorno bipolar infantil, a mania se apresenta de maneira diferente na infância. Biederman e seus colaboradores (1996) afirmam que os episódios de mania nas crianças apresentam uma sintomatologia distinta daquela descrita no contexto adulto, mas, diferente de Geller, elegem outros sintomas como indicadores desta condição. Segundo eles, a mania na infância é caracterizada por “irritabilidade” e “afetividade tempestuosa” (Biederman et al., 1996, p. 998). Os autores, todavia, concordam com Geller e Luby (1997) que um grande número de crianças diagnosticadas com TDA/H estaria sendo vítima de um equívoco, uma vez que possivelmente seria portadora do transtorno bipolar do humor.

Estes dados, no entanto, não foram recebidos sem críticas. Healy (2008), por exemplo, aponta que o estudo apresentado por Biederman não se baseia em entrevistas com as crianças, não se calca em critérios específicos de mania pré-puberal e utiliza instrumentos feitos para estudar a epidemiologia do TDA/H. Todavia, afirma que a mensagem foi passada, ecoando no meio acadêmico e na cultura como um todo: casos de transtorno bipolar do humor não estão sendo diagnosticados e muitas vezes são confundidos com TDA/H. De acordo com o autor, tendo em vista que muitas crianças diagnosticadas com TDA/H não respondem bem ao uso de estimulantes, o estudo de Biederman surgiu como um bom pretexto para os psiquiatras abraçarem um novo transtorno e outros medicamentos.

Uma série de pesquisas foi realizada, principalmente na direção de teste de tratamentos medicamentosos. Este tipo de pesquisa se tornou bastante popular no contexto americano, na medida em que é mais atrativo para as indústrias farmacêuticas financiar acadêmicos para desenvolverem pesquisas clínicas com medicamentos do que submeter seus dados à aprovação da Food and Drug Administration (FDA), devido a restrições mais severas que este órgão impõe. Os artigos escritos por acadêmicos seriam suficientes para impulsionar o uso de medicamentos na infância. Isto porque, a possibilidade de uso off-label6 permite que os mesmos medicamentos utilizados para tratar o transtorno bipolar na fase adulta fossem receitados para crianças e adolescentes. O fato é que, a partir de então, uma série de drogas, em sua maioria anticonvulsivos e antipsicóticos, como a olanzapina e o risperidona, passou a ser usada em larga escala para tratar crianças nos EUA. Nota-se um grande interesse das indústrias farmacêuticas na direção da difusão deste diagnóstico e do seu tratamento medicamentoso, uma vez que se trata de um diagnóstico de um transtorno mental crônico, que se estenderia para vida toda.

Diante desses dados, Withaker (2010) levanta a hipótese de que a epidemia de bipolaridade na infância, assim como a do adulto, estaria ligada a um efeito iatrogênico de certos medicamentos. Baseado no fato de que o TDA/H e a prescrição de estimulantes para crianças se difundiram bastante a partir dos anos 80, ele afirma que tanto o uso de antidepressivos quanto de estimulantes é capaz de provocar episódios parecidos com aqueles diagnosticados como mania na infância. De acordo com o autor, “toda criança medicada com estimulantes se torna um pouco bipolar” (Withaker, 2010, p. 238).

Embora este caso seja paradigmático do que ocorre na psiquiatria infantil contemporânea, é importante ressaltar que, de uma maneira geral, o transtorno bipolar do humor infantil ainda é um fenômeno eminentemente norte-americano. No entanto, é impossível negar a influência que a psiquiatria norte americana exerce sobre o contexto brasileiro. Não demorou muito tempo para que este transtorno também passasse a ser discutido no nosso país. Algumas publicações enfocando a temática vêm sendo feitas no Brasil. Na base “LILACS”, localizam-se 19 artigos brasileiros através dos descritores “Transtorno bipolar” e “infância”. Já na base “Scielo”, foram detectados 12 artigos com os mesmos termos em inglês e 15 em português7. Além disso, uma série de livros abordando o transtorno foi lançada, em sua maioria organizada por um grupo de São Paulo, liderado pela psiquiatra Lee Fu-I, e do Rio Grande do Sul, sob a direção de Tramontina e Rodhe. Estudos epidemiológicos, no entanto, são mais raros. Destaca-se uma pesquisa realizada por Tramontina et al. (2003), no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), entre 1998 e 2001, que, além de apresentar a taxa de 7,2% de prevalência do transtorno, visa descrever a sintomatologia e analisar a prevalência da bipolaridade infantil no Brasil. Os autores indicam que “em uma amostra clínica de pacientes externos de uma unidade psicofarmacológica pediátrica no Brasil, encontramos uma alta prevalência do transtorno bipolar juvenil” (Tramontina et al., 2003, p. 1046). Além disso, conclui-se que os jovens diagnosticados com bipolaridade apresentaram irritabilidade ou irritabilidade combinada com elação do humor e um alto índice de comorbidade com o TDA/H. Nesse sentido, o padrão dos sintomas maníacos encontrados na amostra pesquisada é bastante similar ao descrito pelos pesquisadores norte-americanos. Nota-se, portanto, que este transtorno não surge no Brasil como um fenômeno próprio, mas importado da psicopatologia norte-americana, bem como importamos com bastante frequência outros diagnósticos supostamente ‘universais’ presentes no DSM.

Considerações finais

O transtorno bipolar infantil diz respeito a um fenômeno relativamente recente (últimas três décadas), com raízes eminentemente norte-americanas – muito embora, tenha sido importado como categoria diagnóstica pela psiquiatria em outros países. A discussão em torno deste diagnóstico não se deu sem controvérsias, sendo também articulada a uma série de fatores distintos, como os interesses das indústrias farmacêuticas, dos meios de divulgação midiáticos e um possível efeito iatrogênico causado pelo uso extensivo de psicotrópicos. Ademais, a discussão em torno deste transtorno está intrinsecamente articulada a uma reconfiguração da noção de infância, bem como a certa forma de se fazer psiquiatria infantil.

O caso do transtorno bipolar infantil, nesse sentido, evidencia um movimento mais amplo da psiquiatria infantil, uma vez que se trata de uma categoria diagnóstica antes destinada à idade adulta e que passou a ser considerada uma afecção crônica. Este movimento consiste no apagamento das fronteiras entre as patologias relativas à infância e aquelas direcionadas aos adultos e um consequente alargamento das categorias diagnósticas nesta faixa etária.

Este trabalho teve como objetivo mapear e localizar o surgimento da bipolaridade infantil em um contexto sociocultural mais amplo. Trata-se de um transtorno intimamente atrelado a um novo lugar que a criança ganha na sociedade. No entanto, esta nova perspectiva, que concebe a criança como agente, mas também como passível de portar transtornos psiquiátricos crônicos, exige que levantemos algumas questões no âmbito da psiquiatria infantil: não seria importante investigar outros interesses que se interpõem à prática e à teoria psiquiátrica, que se distanciam propriamente da escuta daqueles que sofrem? Nesta mesma direção, não seria necessário levar mais em consideração o discurso das crianças sobre o seu próprio sofrimento? O que este escrito pretendeu foi justamente apresentar um panorama mais amplo da noção de norma e desvio na infância contemporânea, com enfoque no caso do transtorno bipolar infantil, pois é sempre importante lembrar, conforme aponta Canguilhem, que é, sobretudo, a partir daquele que sofre e nos conta sobre seu sofrimento que se pode distinguir o que é normal e patológico.

4 – Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).
5 – “NOS” é a sigla inglesa utilizada para designar a expressão “Not Otherwise Specified”. Em português “não especificado”. Trata-se de uma subcategoria presente nos manuais psiquiátricos que permite consolidar o diagnóstico sem que, no entanto, todos os sintomas ou critérios descritos anteriormente tenham sido preenchidos.
6 – O uso off-label diz repeito à possibilidade de utilizar certos medicamentos para transtornos distintos daqueles em relação aos quais a droga foi aprovada legalmente.
7 – Pesquisa realiza em 07/11/2015.

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Resumo

O presente artigo visa, a partir de uma perspectiva normativista, a investigar a construção do diagnóstico de Transtorno Bipolar Infantil. A discussão em torno deste obriga a articular dois objetos de estudo: a infância e a psiquiatria. Traça-se um breve histórico da noção de infância, buscando caracterizá-la no contexto de surgimento do transtorno bipolar infantil. Paralelamente, acompanhamos o mesmo percurso no que concerne à psiquiatria infantil. O caso do Transtorno Bipolar Infantil evidencia um movimento mais amplo da psiquiatria infantil e da infância, uma vez que se trata de uma categoria diagnóstica destinada à idade adulta que passou a ser considerada uma afecção crônica. Por fim, este trabalho não tem como objetivo questionar a validade do Transtorno Bipolar Infantil, mas mapear e localizar o surgimento deste diagnóstico em um contexto sociocultural mais amplo, levantando as controvérsias e questionamentos suscitados por ele.

Palavras-chave: bipolaridade, psiquiatria, infância, medicalização, transtornos afetivos.

Data de recebimento: 16/02/2017

Data de aprovação: 04/06/2017

Thais Klein thaiskda@gmail.com

Psicóloga formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (IMS-UERJ) e em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ (PPGTP-UFRJ). Bolsista CAPES.

Rossano Cabral Lima rossanolima1@gmail.com

Doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (2010), com doutorado sanduíche no Instituto Max Planck de História da Ciência (Berlim, Alemanha). Foi Professor Visitante do NUPPSAM/IPUB/UFRJ (2011) e atualmente é Professor Adjunto e Vice-Diretor do Instituto de Medicina Social da UERJ.