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As aprendizagens de crianças rurais em grupos de diferentes faixas etárias ou idades mistas e seu uso na experiência escolar multisseriada

As aprendizagens dos meninos e das meninas na familia e na comunidade

A observação das atividades de meninos e de meninas em San Antonio e a forma como aprendem a fazê-las indica quatro características centrais da aprendizagem no lugar: o desenvolvimento de um senso de autonomia e responsabilidade; a importância da observação; a prática como meio de desenvolver habilidades; e a natureza multi-idade do processo de aprendizagem. A primeira parte desta seção se concentra nos três primeiros elementos e o quarto é explorado na segunda seção.

Os papéis das crianças e as formas de aprender em casa

As crianças de San Antonio realizam várias tarefas em casa e na comunidade para apoiar o trabalho doméstico e produtivo. Seu trabalho não é apenas uma ajuda para a sobrevivência da família, mas também uma maneira de dominar as habilidades domésticas, agrícolas ou de pesca, em preparação para se tornarem sujeitos produtivos. Neste sentido, a vida das crianças de San Antonio é similar à de muitas outras crianças nas comunidades rurais do Peru. A literatura sobre a socialização infantil nos Andes (Ames, 2013) tem mostrado que as crianças são parte de unidades produtivas (seus lares) e são envolvidas em atividades produtivas e domésticas desde uma idade muito tenra, como em outras partes do continente (Padawer; Enriz, 2009).

Quais são as atividades que as crianças realizam? Meninas e meninos ajudam quase igualmente em tarefas domésticas, carregando água e madeira do rio para a cozinha, cuidando e alimentando pequenos animais domésticos (galinhas, porcos), lavando pratos, fazendo pequenos serviços e pequenas compras, varrendo a casa, levando coisas para o porto e cuidando de seus irmãos mais novos. Eles também participam da agricultura (capina, apoio em atividades de colheita e semeadura) e na pesca (carregar peixe, redes e ferramentas, verificar redes e pescar). Após os 12 anos, as atividades entre meninos e meninas são claramente diferenciadas de acordo com os padrões de gênero de trabalho entre adultos. As meninas estão mais ocupadas com atividades domésticas e com o pomar, enquanto os meninos passam mais tempo na agricultura, pescando ou fazendo e consertando ferramentas para atividades produtivas. Aos 12 anos, uma criança geralmente conhece a maioria das técnicas de pesca e agricultura (embora a prática de algumas delas ainda espere até que se torne forte o suficiente para realizá-las). O mesmo vale para as meninas, que são especializadas em muitas tarefas domésticas e agrícolas realizadas por mulheres.

Os pais promovem um senso de responsabilidade nas crianças sobre suas tarefas através dos estímulos verbais, porém também através do castigo diante de casos de irresponsabilidade. As crianças se dão conta desde uma tenra idade de que cada membro da família desempenha um papel e tentam atender às expectativas dos pais e às necessidades da família. Eles têm muito tempo livre para aproveitar quando terminam de cumprir suas responsabilidades e tarefas. Durante seu tempo livre, e mesmo ao realizar essas tarefas, as crianças desfrutam de grande liberdade de movimento dentro da aldeia. Elas também saem da aldeia para as áreas de cultivo quando acompanham adultos ou seus irmãos mais velhos.

Essas responsabilidades e liberdade de movimento indicam uma grande autonomia para os meninos e meninas, uma vez que nem sempre estão sob a supervisão de seus pais ou de outros adultos, mas cuidam uns dos outros e se envolvem em suas próprias atividades, muitas vezes fora de casa. Essa autonomia e liberdade de movimento também têm sido apontadas no caso de vários povos da Amazônia brasileira e peruana (Tassinari; Codonho, 2015; Cohn, 2000; Anderson, 2015).

O movimento livre ou acompanhado dentro ou fora da aldeia também é importante como uma forma de aprendizagem. Permite que as crianças observem seu ambiente e o conheçam com grande precisão. Eles aprendem com adultos ou com outras crianças não apenas nomes, usos e características de árvores, plantas e animais, mas também a localização das áreas de cultivo a que pertencem, o que foi cultivado no ano anterior e no ano em curso, e algumas noções de gestão de culturas. Cada visita às áreas de cultivo (sítios) implica que as crianças irão trabalhar ajudando seus pais e aprendendo com eles como fazer diferentes tarefas. Crianças mais velhas às vezes acompanham seus pais quando vão pescar e aprendem com eles várias técnicas. Em sua relação com o meio ambiente e ajudando seus pais, as crianças desenvolvem um profundo senso de observação. Eles estão sempre comentando se o nível do rio é alto ou baixo, se vai chover, o quanto cresceram os cultivos etc. A observação ambiental é promovida por adultos que estão sempre preocupados com (e falando de) vários indicadores ambientais relevantes para suas atividades produtivas e cotidianas.

A observação também é uma forma direta de aprender quando se interage com os outros e é complementada pela prática. Por exemplo, quando as crianças explicam os jogos uns aos outros, em vez de explicar os passos verbalmente, uma criança mostra cada passo para o outro, que tenta repeti-lo depois de observá-lo. A observação também parece ser uma estratégia central de aprendizado quando os pais ensinam a seus filhos:

Um grupo de crianças tenta ajudar Oddy a desenrolar o fio usado para reparar as redes. Edu (9) o faz bem e eu pergunto:
Patricia: Quem te ensinou?
Edu: Ninguém, (eu aprendi) apenas olhando como meu pai faz.
(Notas de campo, casa de Rosa)

A observação, então, torna-se um modo fundamental de aprender. Quando fui aprendiz em diferentes situações, adultos e crianças me ensinaram mais com exemplos práticos do que com explicações explícitas. O adulto ou a criança mais experiente realiza toda a atividade e os outros alunos devem observar e praticar os passos demonstrados pelo instrutor. Adultos e crianças podem contar os passos realizados para fazer alguns procedimentos (por exemplo, preparar um remédio com ervas, plantar milho). Todavia, no processo de aprendizagem, há mais ênfase em praticar os distintos passos, e as instruções verbais específicas se brindam em relação a cada passo quando é necessário (como “se faz isto” ou “se faz assim”, seguido por exemplos práticos), em vez de uma explicação do procedimento completo. O instrutor pode corrigir o aprendiz, mostrando-lhe a maneira correta de fazer a tarefa, porém, sem censurar os erros.

Espera-se que as crianças aprendam progressivamente e aumentem a dificuldade dos exercícios quando já dominam os passos prévios. Isso sugere uma estratégia de andaimes para impulsionar a aprendizagem. As crianças sentem-se orgulhosas quando se tornam competentes nas atividades que são exigidas delas e constroem um forte senso de realização e competência nessas habilidades (uma experiência mais alusiva na escola). Isso, por sua vez, impulsiona seu senso de autonomia como aprendizes.

A aprendizagem através da prática também se exemplifica pelo uso comum de fazer pequenas ferramentas para as crianças, seguindo o modelo das verdadeiras ferramentas de trabalho, com as que podem jogar e trabalhar: faz-se pequenos remos para as crianças, por exemplo, para que possam aprender e praticar em uma canoa, uma habilidade que muitas crianças já adquiriram aos 6 anos. Embora não existam pequenos machetes, uma ferramenta central para quase todas as atividades, as crianças de 6 anos também podem lidar com elas com facilidade.

Os modos de aprender em casa são guiados pela observação, prática e senso de responsabilidade e autonomia na realização de atividades domésticas e produtivas. Uma quarta característica é desenvolvida a seguir, sendo especialmente importante por seus benefícios potenciais para salas de aula multisseriadas.

Patrícia Ames Ramello pames@pucp.edu.pe

Doutora em Antropologia da Educação pela Universidade de Londres. Professora e Pesquisadora de Antropologia no Departamento de Ciências Sociais da Pontifica Universidad Católica del Perú (PUCP) e pesquisadora principal do Instituto de Estudios Peruanos. Coordenadora do grupo EVE – Edades de la Vida y Educación, da PUCP.