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As aprendizagens de crianças rurais em grupos de diferentes faixas etárias ou idades mistas e seu uso na experiência escolar multisseriada

Discussão: Implicações para o aprendizado em salas de aula multisseriadas

Na sala de aula multisseriada, crianças de diferentes idades e séries estudam juntas. Eu argumento que a sua experiência anterior em grupos etários mistos poderia ser um recurso para eles e seus professores.

Em casa e na escola, o aprendizado é progressivo. Em casa, no entanto, não há separação física estrita entre grupos etários, como existe na escola. Pelo contrário, a interação entre grupos etários (adultos-crianças ou crianças mais velhas-menores) é o que possibilita a aprendizagem.

De fato, as crianças de San Antonio usaram sua experiência em grupos mistos espontaneamente para lidar com as exigências do trabalho escolar, trazendo à escola seu próprio conhecimento organizacional e estratégias de aprendizagem. Na sala de aula, as crianças interagiam entre si, independentemente de série e idade, para receber apoio no dever de casa de seus primos e irmãos ou simplesmente para observar como eles eram feitos. Alguns professores controlavam mais de perto os movimentos e conversas das crianças, o que limitava a interação entre eles e sua capacidade de receber ajuda de outras crianças. Outros professores, no entanto, eram mais flexíveis e permitiam que as crianças se movimentassem pela sala de aula e obtivessem ajuda.

A experiência da interação multi-idade que as crianças trazem para a escola, bem como as habilidades que desenvolvem nela, são de especial importância para as salas de aula multisseriadas. Os professores poderiam usá-las em atividades comuns em grupos multi-idade: organizar, por exemplo, estudantes para fazer atividades sem o apoio direto do professor, mas com seu envolvimento próximo em algum momento. Crianças mais velhas ou mais habilitadas poderiam ajudar as crianças pequenas em seu aprendizado, reforçando sua própria aprendizagem no processo. A literatura sobre estratégias de ensino multisseriada mostrou que a aprendizagem entre pares é uma ferramenta de sucesso para salas de aula multisseriadas (Collingwood, 1991; Thomas; Shaw, 1992; Boix 2011). Mesmo no contexto de aulas monosseriadas, diversos paradigmas de aprendizagem (como o construtivismo social), enfatizam que o aprendizado não é uma atividade isolada, mas um processo social no qual a interação com outras crianças, assim como com o professor, ajuda o aprendizado individual.

Observar a aprendizagem extracurricular mostra que algumas habilidades podem ser aprendidas através de uma relação mais interativa entre as crianças. Além disso, como vimos, essas formas alternativas de ensinar fora da escola fornecem recursos para que as crianças atendam às exigências da escola. Isso merece ser levado em conta na escola, especialmente se houver um grupo multi-idade na mesma sala de aula. Também lembramos que a aprendizagem ocorre de diferentes maneiras e não apenas na díade adulto-criança, mas, muito frequentemente, nas interações entre as próprias crianças, conforme documentado ao redor do mundo (Maynard; Tovote, 2010; Szulc, 2013).

Conclusão

A evidência que foi produzida ao longo do estudo mostra que a aprendizagem das crianças de San Antonio é baseada em uma abordagem participativa e contextualizada, na qual as crianças aprendem através da prática, observação e participação na própria atividade. Além disso, vemos que grupos etários mistos fazem parte da experiência diária da infância, envolvendo brincadeiras, trabalho e aprendizado entre os membros do grupo.

Também ressaltamos que meninos e meninas levam suas variadas formas de aprender à sala de aula e as aproveitam para enfrentar o trabalho escolar: em seu trânsito de um espaço para outro, meninos e meninas usam todas as suas estratégias para desenvolver seu aprendizado, mostrando as fronteiras porosas entre os mundos da escola e da vida cotidiana. A resposta flexível de alguns professores facilita esse processo, enquanto em outros casos, a ideia de trabalho individual prevalece e essas estratégias são interrompidas. Em ambos os casos, no entanto, são as crianças que fazem uso de seus recursos, mas estes passam despercebidos pelos professores.

No entanto, a experiência anterior em faixas etárias mistas pode ser um recurso para professores e para experiências de treinamento nessas salas de aula, pois permite implementar estratégias como grupos de alunos responsáveis por um monitor (aluno mais experiente), atividades sem apoio direto do professor, estratégias de aprendizagem entre pares etc.

As crianças se revelam como fontes e agentes de aprendizagem para outras crianças e o contexto rural aparece como uma fonte de estratégias e formas de aprendizagem que podem enriquecer o trabalho escolar, quebrando assim a imagem frequente que insiste em suas deficiências. A observação mais atenta do contexto educacional extra-escolar pode fornecer mais e melhores pistas para continuar melhorando o aprendizado escolar e reconhecer o papel ativo que as crianças desempenham nele.

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Resumo

 

Com base em um estudo etnográfico na Amazônia peruana, que examina detalhadamente um grupo de famílias rurais com crianças de diferentes idades, identificam-se quatro características centrais da aprendizagem em casa: o desenvolvimento de um senso de autonomia e responsabilidade; a importância de observação; a prática como meio de desenvolver habilidades; e a natureza multi-idade do processo de aprendizagem. Em particular, a experiência de meninos e meninas rurais em grupos de idades mistas é destacada, onde elas são reveladas como fontes e agentes de aprendizagem para outras crianças. O artigo discute como essa experiência constitui um recurso para a situação escolar mais frequente em áreas rurais: a escola multisseriada, onde crianças de várias séries dividem a sala de aula a cargo de um único professor.

 

Palavras-chave: educação rural, multi-idade, multiseriado, Amazônia.

 

Data de recebimento: 06/02/2018

Data de aceite: 05/04/2018

Patrícia Ames Ramello pames@pucp.edu.pe

Doutora em Antropologia da Educação pela Universidade de Londres. Professora e Pesquisadora de Antropologia no Departamento de Ciências Sociais da Pontifica Universidad Católica del Perú (PUCP) e pesquisadora principal do Instituto de Estudios Peruanos. Coordenadora do grupo EVE – Edades de la Vida y Educación, da PUCP.