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As principais violações de direitos de crianças e adolescentes em Heliópolis¹ – São Paulo/Brasil.

Principais agentes violadores

Das 168.690 denúncias feitas à Secretaria de Direitos Humanos, em 2012, por meio do “Disque 100”, cerca de 77,1% (130.029) são relacionadas às violações de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Segundo o ECA (Brasil, 1990), existem quatro tipos de violadores: os pais ou responsável (familiares e pessoas que convivem com a família do sujeito que sofreu a violação); Estado; sociedade; e a própria criança ou adolescente.

Nas entrevistas efetuadas, percebeu-se que ainda prevalece uma responsabilização da família pela situação da criança. Embora o ECA tenha realizado uma mudança no paradigma legislativo de família, ainda não está garantida totalmente a modificação da ideologia que perpassa a família pobre, dando a ela uma nova categorização: família negligente (Cruz; Guareschi, 2008). Essa ideia está presente na seguinte fala:

A raiz do problema, na verdade, eu acho que ‘tá na falta de estrutura familiar dessas pessoas, porque família é quem a gente ama, né? Mas muitas vezes, eles não têm esse amor. Cria o filho de qualquer jeito, também são mães e pais que também foram criados de qualquer jeito, então valoriza muito bem material. Mora num barraco caindo aos pedaços, mas tem um iPad, um iPhone (UBS).

A partir da intervenção do Estado, a família é responsabilizada por ser considerada “fonte privada de bem-estar social” e, não sendo capaz de cumprir com esse modelo idealizado, é colocada na condição de “desestruturada”, “desintegrada” ou “desorganizada” (Cruz; Guareschi, 2008).

Esses estereótipos também emergem das entrevistas realizadas: “Porém, a maioria dos problemas que o conselho tutelar pega é com mães. Acredito que seja porque a mãe acaba ficando mais tempo com a criança ou geralmente ela é separada do pai (Conselho Tutelar)”; “Aqui tem muita EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil), muita ONG (Organização Não-Governamental), CCA (Centro para Criança e Adolescente), tem muito, mas não dá conta, porque a raiz do problema ‘tá lá no núcleo familiar, na minha opinião, entendeu? (UBS)”.

A reflexão proposta não busca eximir a família da responsabilidade pela violação dos direitos da criança e do adolescente, pois ela é o principal agente de socialização, desempenha um papel decisivo na educação e é no seu espaço que os valores também são transmitidos. O perigo da culpabilização da família é o fato de tal culpabilização poder omitir o desrespeito aos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, uma vez que uma família sem recursos, isto é, enquadrada numa categoria de risco social, não consegue suprir as necessidades de seus membros, visto que possui os próprios direitos violados (Melo, 2012). Pode-se afirmar que existe, por parte do Estado, um excesso de valorização moral em relação à família, favorecendo a construção histórica da ideia de família como local de realização e felicidade (Sequeira, 2007). É importante uma reflexão ética em que se coloque, no âmbito da discussão, a influência da sociedade e das políticas públicas no espaço familiar.

Neste sentido, deve-se também considerar o Estado como sendo um agente violador dos direitos sociais, já que cabe a ele assegurar os direitos à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade. Em relação aos menores de 18 anos, as reivindicações deram-se no sentido de impedir os abusos da intervenção do Estado, os quais eram notórios durante o período em que a proteção do menor era feita pelo trabalho da FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) e FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor). Sierra e Mesquita (2006) destacam, como risco à promoção do bem-estar e dos direitos sociais, aqueles relacionados à forma de repressão policial, às atividades do tráfico de drogas e à violência urbana. De acordo com o profissional da MSE, o Estado, por meio da Polícia Militar, ainda é um grande violador, pois é frequente o abuso de poder dos policiais na comunidade.

O abuso do poder policial se torna mais evidente ao falarmos dos jovens negros que moram nas periferias. No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2013, ressalta-se que “a preocupação com a criminalidade infanto-juvenil funciona, na realidade, mais como um instrumento de marginalização da população pobre do que uma ampliação e um reconhecimento dos direitos civis dos jovens” (Lima; Bueno, 2013, s/d).

Rede de proteção social

O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) foi concebido pelo ECA e formalizado em 2006. Consiste em uma rede de ações organizadas, articuladas e interligadas de profissionais e instituições que visam à garantia dos direitos da criança e do adolescente. Para construí-lo, foi necessário articular ações conjuntas envolvendo Estado, comunidade e família.

O funcionamento dessa rede de proteção na região de Heliópolis foi descrito pelo funcionário do Conselho Tutelar como burocrático, exigindo grande esforço da equipe para que a criança seja atendida por outros equipamentos o mais breve possível. A psicóloga da MSE classifica a rede como mal articulada, muito embora os profissionais tentem fazê-la funcionar “da melhor forma possível”. Ela se queixa de que os funcionários cultivam a concepção de que trabalhar em rede resume-se ao ato de realizar o encaminhamento para outra equipe, sendo que o mais eficaz, segundo ela, seria manter uma discussão coletiva sobre o caso. O canal de serviço mais utilizado pelo NPJ, pelo qual chegam crianças e adolescentes encaminhados, é o conselho tutelar, porém, geralmente não se sabe as medidas que já foram tomadas por este serviço.

As características apontadas pelos funcionários da MSE, NPJ e conselho tutelar refletem uma rede que não consegue romper as barreiras burocráticas para promover o diálogo entre seus serviços. Tal dinâmica suscita o isolamento do equipamento, o que contrapõe os objetivos de uma rede comunitária que conta, entre outros fatores, com a interação constante entre seus membros e a multidimensionalidade da intervenção (Montero, 2003). É importante assinalar que a demanda de crianças e adolescentes por profissionais da rede de proteção social é muito alta, fato que justifica a saturação de certos equipamentos que não conseguem dar continuidade ao atendimento da família.

A busca por políticas sociais de estruturas menos verticalizadas pode assegurar que crianças e adolescentes recebam atendimento integral, conforme previsto no ECA. O Sistema de Garantias de Direitos da Criança e Adolescente preza pelo trabalho progressivo e em rede, facilitando a articulação entre os conselhos de saúde, tutelares, assistência social, saúde e educação, criando e fortalecendo as relações democráticas, éticas e horizontais (CONANDA, 2006).

A UBS que atua na região, segundo o profissional entrevistado deste local, mantém relação com vários outros serviços públicos e realiza parceria com instituições da comunidade local, como igrejas, escolas e ONGs. Trata-se de um trabalho que ocorre de forma multilateral.

Outro exemplo similar é o fórum mensal, que reúne profissionais dos serviços de educação, saúde e assistência social de Heliópolis e região com a finalidade de discutir a situação das crianças e adolescentes que são atendidos nesses equipamentos. Os pesquisadores tiveram a oportunidade de participar de um encontro deste fórum, cujo tema discutido, na ocasião, foi “educação infantil”. Ainda que estejam em um contexto institucional, essas características correspondem a um tipo misto de rede que Montero (2003) classifica como “estruturada”, mas ao mesmo tempo “espontânea”, pois sua organização possui uma estrutura formal e flexível, contando com dispositivos oficiais, mas também com comunicações informais, fora do círculo do serviço público. Essa dinâmica favorece o processo de socialização e de informação e garante o aproveitamento de recursos materiais e humanos disponíveis dentro e fora da rede de proteção.

Apesar da boa articulação entre os equipamentos da rede descrita pelo profissional da UBS, a falta de serviços para alguns encaminhamentos específicos na região do Heliópolis é destacada como um dos problemas enfrentados. A função da rede é articular pessoas e grupos e ajudar atores e agentes sociais a potencializar iniciativas que desenvolvam a criança, o adolescente e as famílias nas políticas de proteção. Além disso, a presença de organizações sociais como as igrejas (mencionadas na entrevista) e escolas aumenta a confiança e a sensação de proteção social. A proteção integral prevista no ECA propõe uma ação pública que garanta a eficácia desta através de relações, conexões e articulações entre os vários serviços socioassistenciais.

Adriana rodrigues domingues adriana.domingues@mackenzie.br

Graduada em Psicologia pela Unesp e doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é docente no curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.

Adriana Fernandes Lellis Pereira adriana.lellis@outlook.com

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente, atua no Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), em Jacareí, e realiza oficinas de redução de danos nas cenas de uso de drogas em São Paulo, Brasil.

Ana Carolina de Oliveira anacaa.oliveira@gmail.com

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Psicologia Hospitalar e da Saúde pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil.

Cristina Gonçalves De Abrantes cristinadeabrantes@gmail.com

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.. Atua como psicoterapeuta e neuroeducadora, com pesquisas voltadas à clínica contemporânea e psicologia social.

Tiago Henrique Cardoso cardosotiagohenrique@gmail.com

Graduado em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.

Vanessa Alice De Moura vanessa.alice.moura@outlook.com

Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil..