Radamés Ajna

Controle e medicalização da infância

Controlar é preciso

Ao longo da história do mundo ocidental, as pessoas que não se submetem aos padrões aceitos como comportamentos normais, apresentando comportamentos distintos ou questionando tais padrões, sempre incomodaram a maioria, docilmente submetida, sendo alvo de perseguições.  Por que alguém que exibe comportamentos “acima de qualquer suspeita” é  afetado por um outro alguém diferente, a ponto de precisar retirá-lo de seu campo de visão, e mesmo eliminá-lo? Talvez porque ver uma pessoa que não se enquadra nas normas escancare que é possível ser diferente, isto é, que os padrões não são naturais, não foram e não serão sempre os mesmos.
O comportamento humano não é biologicamente determinado, mas tramado no tempo e nos espaços geográficos e sociais –, histórico enfim. O ser humano é essencialmente um ser cultural; entretecido em um substrato biológico, sim, porém datado e situado.  A naturalização dos padrões de comportamento, levando à crença generalizada de que se deve agir segundo determinados moldes, é um dos elementos fundantes da submissão, do não questionamento, da docilização de corpos e mentes, tão cara e necessária à manutenção da ordem vigente, em todos os tempos.
Está pronto o terreno para afastar e eliminar os que perturbam a ordem. Só faltam os critérios, os rótulos e, mais importante, o grupo a ser investido de poder para julgar e definir punições. Até o século XVI, o poder advinha da religião; autoridades eclesiásticas torturavam e condenavam à morte ateus, hereges, bruxas… Com o advento da ciência moderna, esta passa a ocupar os espaços discursivos do saber e do poder, tornando-se a autoridade investida de poder para exercer as mesmas ações, agora renomeadas: identificar, avaliar, tratar, isolar.
A medicina será o campo científico a ocupar, privilegiadamente, esse espaço, passando mais e mais a legislar sobre a normalidade e a anormalidade, a definir o que é saúde e o que é doença, o que é saudável e o que não é, o que é bom e o que é ruim para a vida. E a definição do comportamento desviante, ou anormal, será feita em oposição ao modelo de homem saudável, ou homem médio, estatisticamente definido. A normalidade estatística, definida por frequências e um raciocínio probabilístico, não por acaso coincidente com a norma socialmente estabelecida, é transformada em critério de saúde e doença.  Através dessa atuação normatizadora da vida, a medicina assume, na nova ordem social que surge, um antigo papel. O controle social dos questionamentos.
E os critérios anteriores começam a ser substituídos por outros.
De início, loucos e criminosos… Trancafiados, isolados, para seu próprio bem e para o bem dos normais. Castrados para evitar que se reproduzam e se propaguem pela Terra. Mortos, por condenação formal ou por “acidente”, nos interrogatórios de avaliação, nas prisões, nas enfermarias…
O desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo em que possibilita seu próprio avanço, exige complexificação e sofisticação. O campo médico se especializa. A psiquiatria e a neurologia tomarão por seu objeto de saber/poder o comportamento. A psicologia se descola da psiquiatria, porém sem romper com sua filiação paradigmática. Surgem os especialistas, agora com poder ainda maior para definir os limites da normalidade.
Surgem novos critérios, novos nomes, novas formas de avaliação, novas formas de punição. A vigilância se sofistica.
Cérebros disfuncionais são a causa da violência. Cérebros disléxicos e baixo QI justificam o fracasso na escola. Alterações genéticas explicam os medos de viver em meio à violência. Frustrações na infância provocam instabilidade emocional.
A normatização da vida tem por corolário a transformação dos problemas da vida em doenças, em distúrbios. O que escapa às normas, o que não vai bem, o que não funciona como deveria… tudo é transformado em doença, em problema individual. Afasta-se a vida, para sobre ela legislar, muitas vezes destruindo-a violenta e irreversivelmente.
E os profissionais, com sua formação acrítica e a-histórica, exercem, a maioria sem se dar conta, seu papel de vigilantes da ordem. Crentes nas promessas de neutralidade e objetividade da ciência moderna, não sabem lidar com a vida, quando se defrontam com ela. Sem disponibilidade para olhar o outro, protegem-se ancorando-se em instrumentos padronizados de avaliação.
Sem preocupação com as consequências de seu laudo para a vida do outro, o profissional nem mesmo se permite perceber que a classificação não decorre do diagnóstico, e este de uma avaliação adequada, como lhe ensinaram. Os rótulos se urdem já nas primeiras impressões, no olhar preconceituoso; rótulos que classificam e embasam diagnósticos que os confirmam…

Maria Aparecida Affonso Moysés

Professora Titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Aprendizagem, Desenvolvimento e Direitos, no CIPED (Centro de Investigações em Pediatria) da UNICAMP. Autora do livro “A institucionalização invisível: crianças que não aprendem na escola”. É membro fundador do Forum de Estudos sobre Medicalização de Crianças e Adolescentes, que tem articulado discussões, eventos e ações sobre a medicalização da vida e da educação.

Maria Aparecida Affonso Moysés
Cecília Azevedo Lima Collares

Livre-docente em Psicologia Educacional. Docente da Faculdade de Educação da UNICAMP, no Departamento de Psicologia Educacional, atualmente aposentada. Publicou inúmeros artigos em periódicos científicos nas áreas de Educação e Psicologia. É autora do livro “Preconceitos no Cotidiano Escolar. Ensino e Medicalização”. É membro fundador do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, que tem articulado reflexões críticas e ações que buscam enfrentar e superar os processos medicalizantes da vida de crianças e adolescentes.

Cecília Azevedo Lima Collares