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Invertendo a ordem geracional: a relação das crianças da zona rural de Orobó (PE) com as novas TIC’s

Invertendo a ordem geracional: as crianças ensinam aos adultos como usar as TIC’s

Aquilo que outrora afirmou Prensky (2001) em relação ao uso da internet por crianças e adultos, referindo-se respectivamente a esses grupos como “nativos digitais” e “imigrantes digitais”, destacando a aptidão do primeiro grupo em relação à inabilidade do segundo, ainda que seja questionável, calha com nossas observações de campo. Também concordamos com Almeida, Alves e Delicado (2011) quando afirmam que “crianças e jovens ocupam, de fato, lugares de destaque no processo de inovação tecnológica” (p. 09). São elas que, nesse contexto de pesquisa, ensinam a seus pais e avós como fazer uso da internet através das conversas pelo whatsapp, acessando o facebook, compartilhando e enviando arquivos, realizando chamadas de vídeos, enviando mensagens, ensinam como salvar um número no aparelho celular ou ainda como utilizar os termos comuns às redes sociais (salvar, postar, acessar).

Quando perguntamos a alguma pessoa adulta, em geral acima dos cinquenta anos de idade, como ela aprendeu a usar seu aparelho smartphone e a internet, recebemos como resposta “meu filho(a)”, “meu neto(a)”, ou ainda outra criança com a qual se tem uma relação mais próxima, como um afilhado.

São as crianças que comumente iniciam os adultos no uso das novas TIC’s. Elas, por sua vez, afirmaram quase sempre terem aprendido sozinhas. “A entrada massiva de equipamento tecnológico em casa veio reavivar na família um estatuto de lugar de produção e transmissão de saberes entre gerações – digitais, neste caso” (Almeida et al., 2013, p. 354). De fato, as crianças possuem uma relação muito próxima com a internet. Na verdade, uma das pesquisadoras foi ensinada por uma delas a como encontrar os chamados GIF que existem no aplicativo do whatsapp e, mesmo depois de ensinada, quando tentou encontrar sozinha, não teve a mesma facilidade que a criança.

Pensamos que essa relação denote uma das várias formas de manifestação da criança no meio social no qual se encontra inserida, pois “as crianças constituem, justamente, coortes que permanentemente entram e reciclam a vida social” (Almeida et al., 2013, p. 343). Acreditamos na capacidade de agência das crianças, que elas atuam tanto como criadoras de culturas próprias, quanto como coprodutoras do seu processo de socialização. Não podemos negar que em uma relação geracional como a de crianças e adultos exista sempre um teor de domínio das crianças pelos adultos, considerando a relação tutelada da criança por suas limitações.

Contudo, o que temos observado é que são elas quem mais detêm conhecimento e manejo sobre as novas TIC’s, ensinando aos adultos e também inserindo-os nesse mundo mais tecnológico. Isso se apresenta como uma mudança importante no meio rural, dada a relação tradicional de transmissão do conhecimento que é passada do adulto às crianças. Nesse sentido, há uma clara inversão geracional de transmissão de conhecimento e também de poder, uma vez que são as crianças que detêm o maior domínio em relação às novas TIC’s.

Almeida et al. (2013, p.342), ao pesquisarem entre as crianças de Portugal, nos mostram que são elas que:

lideram na apropriação e uso competentes de novas tecnologias de informação e comunicação, revelando intensidades de utilização e níveis de proficiência superiores aos adultos e exibindo notáveis capacidades de navegação e comunicação no ciberespaço.

Apesar de encontrarmos semelhanças, não temos a intenção de generalizar essa relação para as crianças de outros contextos sociais. Seriam necessárias novas pesquisas para averiguar essa relação, mas é possível que, em contextos sociais onde haja um maior nível socioeconômico e educacional, os adultos já estejam inseridos nesse meio e, provavelmente, sejam os pais que iniciem as crianças nesse mundo tecnológico. Talvez, nesses contextos, os adultos já possuam um domínio adequado sobre o uso das novas TIC’s e as crianças tenham acesso mais cedo a diferentes tipos de aparelhos.

Enfatizamos essa relação no nosso contexto de pesquisa porque acreditamos que “trazer o contexto para a análise, admitir que ele conta, pode justamente fornecer novos contributos para a discussão teórica da relação geracional na contemporaneidade, a partir do impacto das novas tic” (Almeida et al., 2013, p. 348).

Na zona rural de Orobó, o uso mais comum é dos smartphones e, em alguns poucos casos, de aparelhos notebooks e tablets. Quase sempre o smartphone é do pai, da mãe ou de outra pessoa adulta próxima à criança. Raramente encontramos crianças que são detentoras desse tipo de aparelhos, embora tenhamos visto uns poucos casos, mas isso não é empecilho para que elas tenham relação com o aparelho. Geralmente, o uso é negociado, as crianças pedem para utilizar o celular e os adultos consentem. Essa relação também é compartilhada entre pares, as crianças compartilham o conteúdo consumido entre elas.

Um fato interessante é que mesmo aquela criança que faz parte de uma família cuja situação econômica não permite ainda a aquisição de tais aparelhos não fica sem consumir aquilo que a internet fornece. Foi assim que vimos duas crianças na calçada assistindo pelo celular um vídeo do comediante Tirulipa pelo canal do youtube. Sabíamos que uma delas não possuía acesso ao aparelho smartphone, por já conhecermos as condições socioeconômicas de sua família. Mas, mesmo em casos como esse, as crianças não deixam de ter acesso ao conteúdo disponível na internet, elas o detêm através da relação de generosidade que há entre seus pares. Por isso, acreditamos que:

A internet funciona também como um veículo de comunicação entre indivíduos e as novas tecnologias constituem atualmente um dos instrumentos estruturantes da cultura de pares entre crianças, por isso é determinante ter-se acesso a elas na construção do sentimento de pertença e de identidade (Buckingham, 2008 apud Almeida; Alves; Delicado, 2011, p. 21).

Outro fato interessante nessa cena onde uma criança compartilhava o vídeo com outra, é que elas o assistiam na calçada, porque estavam utilizando o wifi de uma terceira pessoa. Essa relação de generosidade nos parece interessante, pois esse compartilhamento permite o acesso à internet sem que a senha seja fornecida diretamente. Isso ocorre da seguinte maneira: a proprietária da rede coloca, ela mesma, a senha no aparelho da pessoa que pediu para usar seu wifi. De qualquer modo, compartilha-se o acesso à internet, mas a senha que permite o acesso a ela, não. Essa é mantida no mais absoluto sigilo.

Apesar disso, as novas TIC’s são compartilhadas e consumidas entre as pessoas, que as usam nas calçadas, na praça, na rua ou mesmo em casa. Isso nos mostra que a internet é para a criança da zona rural um meio de sociabilidade, não ocorrendo nesse contexto o que Cardoso (2012) chamou de “cultura de quarto”, onde as crianças se enclausuram em seus quartos, vivendo cada vez mais conectadas e isoladas devido ao uso excessivo da internet.

No meio rural, compartilha-se mais do que o acesso à internet, compartilha-se a vida. O rural nunca é singular. Parafraseando Guimarães Rosa, dizemos que, no mundo rural, “viver é plural”. As crianças, desde muito cedo, aprendem isso.

Patrícia Oliveira S. dos Santos patriciaoss1288@yahoo.com.br

Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Brasil. Mestre em Antropologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. É integrante do grupo Crias: criança, sociedade e cultura da UFPB e trabalha com temas relacionados à criança e à infância, com destaque atualmente para a infância rural.

Maria de Assunção Lima de Paulo assuncaolp@yahoo.com.br

Doutora em Sociologia. Professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Brasil. Desenvolve pesquisas no campo da sociologia rural com ênfase em cultura, identidades, juventude rural e educação.