Foto: Marlene Barros

Mãe social: a construção de um paradigma de cuidado materno nos espaços de acolhimento institucional

Uma questão de proteção ou de precaução?

Sabemos que o tema infância e adolescência das camadas desfavorecidas que transitam em diversos aparelhos do Estado tem sido bastante discutido nas últimas décadas. No Brasil, a literatura sobre políticas públicas ligadas à infância, sobre abrigamento, sobre mudanças legais, sobre adolescentes em conflito com a lei e sobre colocação em famílias substitutas vem ganhando espaço no meio acadêmico (Arantes,1995; Rizzini; Rizzini, 2004; Vianna, 2002). Depois do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e em especial nos últimos anos, cresce o campo de discussão sobre o que aparece como contradição entre o que diz a letra da lei e o que o Executivo consegue implementar.

Assim, em muitos estados do Brasil, convivem abrigos de grande porte – cada vez mais escassos -, de pequeno porte, alguns com a presença de mães sociais, e o Programa Família Acolhedora, iniciativas que visam à proteção da criança que deve ser afastada da família temporariamente.

Conforme já citado, no Rio de Janeiro a instituição mais conhecida por trabalhar com mães sociais era as Aldeias SOS, ONG’s internacionais que acolhem crianças e adolescentes entre 0 a 18 anos. O trabalho da mãe social é realizado de segunda a segunda, com seis folgas mensais, em dedicação exclusiva aos cuidados dos jovens, não podendo ela se ausentar da casa sem a permissão de seus superiores.

Outro programa que também contratava mães sociais foi o Projeto Aluno Residente (PAR), desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, e visava manter 12 jovens de 6 a 14 anos, em situação de vulnerabilidade social, em residências localizadas no interior de CIEPs (Centro Integrado de Educação Pública), sob a guarda de pais sociais ou de casais residentes, durante um ano.

Nesse contexto, a mãe social precisava ter, no momento da contratação, entre 218 e 50 anos, ser funcionária do município, ter ensino fundamental completo, ser casada e/ou ter filhos dependentes. Neste projeto, diferente das Aldeias SOS, era fundamental que a mulher possuísse marido e/ou filhos e que todos residissem com ela nesses abrigos. Quando casada, o marido da mãe social passava a ser pai social, apoiando o trabalho nas residências.

Os jovens abrigados, chamados de alunos residentes, iniciavam seus estudos às 8 horas da manhã, sendo no final do dia encaminhados ao casal social, responsável por seu cuidado no restante do dia e durante a noite. Aos finais de semana, feriados e também nas férias escolares, alguns desses jovens retornavam ao convívio de suas famílias.

Os pais sociais, inicialmente, eram soldados da polícia militar e do corpo de bombeiro. Desde o ano de 2000, o convênio passou a ser estabelecido com a guarda municipal, sob os mesmos moldes. Hoje, contudo, o projeto encontra-se em reformulação e, por enquanto, tal convênio foi cancelado.

Entre bombeiros e guardas municipais, percebemos a repetição de órgãos relacionados ao controle e proteção da sociedade sendo contratados para exercerem o papel de pais sociais. Tal fato nos causa estranhamento e nos faz pensar o quanto parece ser necessário manter devidamente controlada a juventude em risco social e/ou supostamente perigosa.

Dessa forma, a questão que nos move na presente discussão é entender de que forma a tentativa de contratar profissionais ligados à proteção da sociedade – tais como policiais, bombeiros militares e guardas municipais, além de tornar as instituições de acolhimento mais próximas de uma família, a partir de uma maternidade temporária, arbitrária em princípio, remunerada e controlada por instâncias externas, como a direção do estabelecimento e o Estado, através do juizado da infância – contribui para a garantia de direitos de crianças e adolescentes, especificamente em relação ao direito à convivência familiar. O Estado preconiza que a família é o melhor espaço de convivência e educação para crianças e adolescentes, porém, somente quando esta possui determinadas características consideradas adequadas por este.

Dessa forma, a mãe social, a serviço do Estado, parece ter como objetivo promover um ambiente familiar dentro do padrão esperado, com a função de controlar e disciplinar todo e qualquer comportamento inadequado trazido de suas famílias, evitando-se assim a formação de “maus elementos” no futuro. Isso parece ficar ainda mais evidente no extinto Projeto Aluno Residente, pelo apoio que a “mãe” poderia receber de profissionais da segurança pública em sua residência. Será, então, a colocação de uma mãe em abrigos uma forma de proteção ou um dispositivo mais sofisticado de controle de jovens que carregam ainda consigo o estigma da predisposição à criminalidade?

Foucault (1987), ao tratar do controle, afirma que entre os séculos XVIII e XX desenvolveu-se uma tecnologia de poder que visava a dominar e disciplinar o comportamento dos homens. Tal perspectiva ainda se mantém e se atualiza nas políticas de assistência à infância e à adolescência no Brasil, pautada na colocação de normas que contribuíam para a normatização do comportamento, tornando-o previsível e facilitando seu manejo. A partir daí, criam-se corpos dóceis, indivíduos obedientes, devidamente treinados através da disciplina e de normas preestabelecidas, em um determinado espaço fechado.

O corpo passou a ser visto como objeto de poder, sendo submetido a processos pelos quais poderia ser manipulado e treinado com o intuito de torná-lo devidamente obediente e útil. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Foucault, 1987, p. 118).

O modo de ser padrão, instituído nas formas de os sujeitos estarem no mundo, ao instaurarem tecnologias que regulam seus corpos, acaba por individualizá-los. No âmbito das mães sociais, acredita-se ocorrer o mesmo. Portanto, cremos ser importante refletir de que forma o lugar construído pelas e para as mães sociais podem reforçar tais tecnologias.

Mancebo (2004) discute o conceito de indivíduo como uma categoria que vem sendo naturalizada ao longo dos anos, em diversos contextos, inclusive na Psicologia. Assim, ela coloca que o indivíduo é apenas uma forma hegemônica da subjetividade ao se organizar na modernidade, ou seja, o indivíduo “é apenas um dos modos de subjetividade possíveis” (p. 38).

Benevides e Josephson (2014) afirmam que o indivíduo é o produto e ao mesmo tempo o objeto a ser investido dentro do contexto burguês. A experiência subjetiva na idade moderna acaba por instaurar esse modo de ser indivíduo, que passa a se preocupar com seu corpo, de modo a retirar dele “o conhecimento necessário para melhor assegurar seu funcionamento” (p. 441). O processo seria “a construção de subjetividades disciplinadas, úteis, cada vez mais treinadas para o desempenho de papéis que lhes são delegados” (Mancebo, 2004, p. 41).

A partir da construção das “subjetividades disciplinadas”, as preocupações em relação aos abrigados passaram a estar relacionadas aos possíveis delitos que os mesmos poderiam cometer. Era preciso combater e controlar a natureza “ruim” dos indivíduos, principalmente os “’bandidos de nascença’, os que já nasceram para o crime e vão praticá-los de qualquer maneira” (Coimbra, 2001, p. 85).

8 As normativas do Programa são anteriores à mudança da maioridade civil no Novo Código Civil de 2002.

Daniela Ramos de Oliveira danirusso2003@yahoo.com.br

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil.

Anna Paula Uziel uzielap@gmail.com

Psicóloga, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil.