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Maternidade adolescente no contexto das ruas

Desafios para o acolhimento institucional de mães e bebês

De modo geral, os estudos aqui analisados questionam a escassez de políticas específicas voltadas para o atendimento de adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua. A construção de abrigos especializados voltados para esse grupo é considerada indispensável para que se possa promover a interação e se estimule o vínculo afetivo entre as jovens mães e seus filhos. Parte significativa desses estudos foi realizada em instituições de acolhimento, consideradas espaços de cuidado fundamentais, com potencial de reinserção social e a consolidação de uma rede de apoio social e afetivo indispensáveis para as mães adolescentes, muito embora esses locais contem com rotinas e regras muitas vezes difíceis de seguir pelas jovens acostumadas com a “liberdade” das ruas (Gontijo; Medeiros, 2008; Fernandes, 2012; Penna et al, 2012a e 2012b; Santos; Mota, 2014).

Na pesquisa realizada por Fernandes (2012) em uma instituição de referência para jovens que se encontram em situação de risco ou nas ruas, as jovens entrevistadas destacaram como aspectos negativos da maternidade no abrigo a falta de autonomia diante das constantes interferências dos profissionais que orientam e ditam regras “excessivas”. Outro aspecto negativo mencionado diz respeito ao fato de que essas jovens consideram difícil criar seus filhos no ambiente do abrigo devido aos conflitos que vivenciam diariamente, seja pela interferência que sofrem dos profissionais, seja pela nem sempre amistosa convivência com as demais mães acolhidas. Por outro lado, parte das jovens relatou ter ótima relação com os funcionários do abrigo e atribuiu a eles um papel importante em suas vidas, sobretudo, no que diz respeito à reinserção social.

Em Penna et al (2012a), o suporte oferecido pelos funcionários do abrigo também é valorizado. As entrevistadas revelaram ser positivo, na maternidade acolhida, o relacionamento que desenvolvem com seus filhos, o apoio que recebem dos profissionais e as regras que estabelecem que é proibido bater ou gritar com os filhos. Por outro lado, mais uma vez, as normas institucionais são apontadas como aspectos desfavoráveis, pois as adolescentes sentem-se ameaçadas pela perda da guarda dos filhos, caso descumpram as regras estabelecidas, e isso ameaça a construção dos vínculos entre mães e filhos. Preocupações relativas à falta de estrutura dos abrigos e à precariedade dos serviços oferecidos também são sinalizadas.

Costa et al (2015), em seu artigo, não se restringem às crianças e aos adolescentes ao analisar o cotidiano de gestantes em situação de rua e sua relação com as políticas públicas. Porém, cabe destacar que, assim como nos demais estudos analisados, neste caso, foi constatado que as mulheres passaram a desejar um futuro melhor a partir da possibilidade de ter um filho, embora suas condições sociais precárias e, em alguns casos, a dependência química dificultem o planejamento e a realização de estratégias capazes de alterar seus cursos e projetos de vida. Os autores relatam que, na maioria das vezes, essas mulheres acabam perdendo seus filhos, o que materializa os medos das jovens mães relatados em estudos como o de Fernandes (2012) e Penna (2012a) e reafirma a importância de se oferecer o suporte necessário para que elas tenham condição de exercer a maternidade de modo adequado.

Dessa forma, embora consideremos importante desmistificar a questão da gravidez na adolescência apenas como um problema, é importante não subestimar os contextos socioeconômicos precários, a ausência de oportunidades e as experiências dolorosas por que passam as adolescentes em situação de rua. Experiências essas que, como elas próprias destacam em seus depoimentos, muito se intensificam com a vinda de um filho. Além do sofrimento resultante de trajetórias de vida marcadas por experiências traumáticas que, com frequência, vêm desde a primeira infância, elas sofrem constante discriminação e toda sorte de violações de direitos. Elas são, frequentemente, alvos de várias formas de violência, criminalização e práticas higienistas, como as de recolhimento compulsório e institucionalização em estabelecimentos que não as protegem de fato (Coimbra, 2001; Coimbra; Nascimento, 2008).

Práticas e desafios do atendimento às mães adolescentes em situação de rua

Uma das questões relacionadas à experiência de vida nas ruas que vem se apresentando como um imenso desafio no campo da saúde pública é o uso abusivo de drogas. Ainda pouco compreendido, esse fenômeno acaba sendo usado como justificativa para a realização de ações de limpeza social com práticas desumanas, arbitrárias e violentas, sem que sejam apresentadas efetivas alternativas de prevenção, cuidado e promoção de direitos para os sujeitos comprometidos com essa realidade social (Lima; Tavares, 2013; Rodrigues, 2013).

Relacionado a esse fenômeno, nos últimos anos, despontaram em várias partes do país denúncias sobre práticas violadoras de direitos em relação à população de rua, como a institucionalização de bebês logo após o parto, sem o consentimento dos pais. O assunto provocou indignação e discussões em diversos espaços, sobretudo a partir das polêmicas recomendações do Ministério Público do Espírito Santo, publicadas em 2012, e de Minas Gerais, publicadas em 2014, sobre o fluxo de atendimento e os procedimentos adotados para garantir os direitos dos nascituros e recém-nascidos, especialmente nos casos que envolvem mães usuárias de drogas e nos casos de abandono.

Essas recomendações informam que os profissionais envolvidos deveriam comunicar imediatamente ao Poder Judiciário o nascimento de crianças de mulheres em situação de rua e/ou usuária de crack/outras drogas ou que se recusarem a realizar o pré-natal, ocasionando, por vezes, decisões para o afastamento das crianças recém-nascidas de suas mães, logo após o nascimento. Essas recomendações sofreram duras críticas dos profissionais da saúde e dos defensores dos direitos das crianças de forma geral, por serem consideradas estratégias que opunham os direitos de mães e filhos, provocando a punição das mães, a separação forçada de seus filhos e a institucionalização precoce de bebês. Essas práticas foram consideradas reflexos de uma violência sistêmica contra aquelas mulheres que exercem a maternidade fora dos modelos sociais pré-estabelecidos (CRP/MG, 2015).

Adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua vêm sendo profundamente impactadas por essas recomendações, pois passaram a ter seu direito de escolha e de convivência familiar e comunitária ameaçados. Quando implementadas práticas como as acima descritas, de maneira arbitrária e homogênea, são renunciados os princípios de construção de propostas individuais de atendimento, segundo orientação explícita das políticas públicas nacionais. Práticas efetivas de cuidado às mães e seus filhos são direitos que precisam ser reafirmados, assim como deve ser oferecido apoio estatal para seu exercício.

Embora esteja prevista em uma série de planos governamentais, dentre os quais podemos citar o Plano Plurianual 2016-2019, Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, a atenção especial aos grupos que vivem em contextos de vulnerabilidade extrema ainda enfrenta desafios relacionados, por exemplo, à falta de documentação necessária para acessar os serviços e programas sociais. O desconhecimento sobre essa população, desde sua localização até aspectos singulares do seu viver e o reconhecimento de suas necessidades, acaba limitando as possibilidades do fazer estatal.

As unidades de acolhimento institucional, que poderiam tornar-se espaço prioritário de proteção e reinserção social e comunitária para as adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua, encontram desafios para se alinhar às prerrogativas do Estatuto da Criança e do Adolescente e das diretrizes, normativas e orientações técnicas que entraram em vigor na última década, como o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (CONANDA e CNAS, 2006); as Orientações Técnicas para Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (CONANDA e CNAS, 2009) e a Lei Nº 12010/2009. É possível identificar uma série de problemas relacionados a estes espaços, dentre eles: as dificuldades de integração com a rede de atendimento; as constantes mudanças nas propostas de trabalho e a intensa rotatividade de educadores sociais; as regras que parecem arbitrárias e inadequadas para parte dos adolescentes; o afastamento dos amigos e da família; a ociosidade, que descumpre um requisito básico das crianças em idade escolar; e a ausência de um atendimento personalizado e afetuoso (Ribeiro; Ciampone, 2002; Moura; Silva; Noto, 2009).

As vagas em equipamentos especializados que acolhem mulheres e adolescentes com seus filhos recém-nascidos são escassas e os fluxos de atendimento a essa população carecem de orientação humanizada. Depoimentos por parte dessas mães, referindo-se a abusos e formas desrespeitosas de atendimento em equipamentos da assistência e da saúde, são comuns (Passos, 2016). Quanto às demais iniciativas da gestão pública destinadas às pessoas em situação de rua, tais como os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centros Especializados de Atendimento à População em Situação de Rua (CentroPop), os Consultórios na Rua e os Centros de Atenção Psicossocial, essas ainda são muito limitadas, sobretudo no que se refere à especificidade do atendimento às adolescentes e jovens grávidas e/ou mães.

Irene Rizzini irizzini.pucrio.ciespi@gmail.com

Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e diretora do Centro Internacional de Estudos sobre a Infância (CIESPI/PUC-Rio), Brasil.

Renata Mena Brasil do Couto renatabrasilciespi@gmail.com

Pesquisadora do Centro Internacional de Estudos sobre a Infância (CIESPI/PUC-Rio) e doutora em serviço social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.