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O habitar das infâncias na cidade: territórios educativos como uma forma de resistência

Considerações finais

Em tempos de crise humanitária, como esses em que estamos vivendo durante a pandemia do COVID-19, as vulnerabilidades e precariedades são escancaradas, afinal, o vírus só realçou aquilo que há muito conhecemos: a desigualdade social. Os diversos contextos existentes e a precarização das condições de vida vêm demarcando as condições de vivência desse isolamento. Os mais atingidos certamente são as famílias em situação de risco e vulnerabilidade, que vivem em lugares em que não há saneamento básico e convivem em seu cotidiano com o lixo, a falta de infra-estrutura urbana, aonde a água, condição essencial de salubridade neste momento, não chega todos os dias para lavarem as mãos.

As deficiências por que passam os setores públicos no sentido da viabilidade de debater e propor, de forma participativa e inclusiva, problemas e soluções relacionadas ao controle do uso e ocupação do solo urbano e à oferta equânime de serviços públicos e infraestrutura urbana de qualidade compromete o espaço público, a paisagem urbana, a cidade e seus moradores. Principalmente em regiões e bairros periféricos quanto à localização, gestão e investimento, as populações convivem nas cidades brasileiras com condições de moradia e vida que não respondem às características de fragilidade ambiental e de vulnerabilidade social.

Nesse contexto de desigualdade aprofundado pela pandemia, estamos confinados em nossas casas, ansiando por viver um tempo outro. Desejamos fortemente que a pandemia acabe e a proliferação do vírus seja controlada, mas também que esse momento de crise seja uma oportunidade para repensarmos que cidade desejamos habitar pós-pandemia. De nossas janelas, é o momento de refletir sobre os modos de vida contemporâneos e as possibilidades de reverter as sequelas que já se interpõem.

Assim, em tempos de mudança, o retorno ao “novo normal” que tanto esperamos, mais do que nunca, vai exigir para a qualidade da educação a redescoberta de uma escola que acima de tudo se conecte aos diferentes contextos urbanos em que se inserem, que reconheça as diferentes infâncias e as diferentes possibilidades do usufruto dos espaços livres. Sim, porque em tempos outros, após a quarentena e ainda convivendo com o vírus, e também pós-pandemia, precisaremos de ar, de Sol, de vento, de verde, de perambular e descortinar as oportunidades educativas que espaços outros na cidade poderão oferecer.

E que a educação possa ser reiventada a partir de políticas públicas efetivadas em ações concretas, pensadas para e com as crianças, ampliando o contexto da educação além dos muros da escola e das telas do celular e do computador. A falta da escola tem impactado bastante as famílias e os estudantes, seja pela falta da rotina, pelo receio da defasagem no aprendizado, pela sobrecarga das atividades das quais agora a família precisa dar conta para auxiliar as crianças, seja ainda pela assistência de aspectos básicos como a alimentação ou por ser muitas vezes a rara oportunidade de socializar e de vivenciar a cultura, o esporte e as atividades de lazer.

E assim, nesses tempos outros, pensar também em políticas públicas de educação e sobre o habitar das infâncias na cidade, que não foi só prejudicado pela pandemia, mas agravado por uma situação já existente – embora naturalizada, afinal estar invisibilizada sempre foi condição inerente à infância pobre. As restrições impostas pela pandemia reforçaram uma situação que muitas vezes já acontece no cotidiano dessas crianças, quando são impedidas de irem à escola por causa dos tiroteios ou quando estão expostas a condições graves de alagamentos ou outros incidentes causados pela falta de manutenção de espaços públicos que interferem em seus percursos diários.

Enquanto essa pandemia discriminatória estiver presente, as crianças continuam, através da brincadeira, da interação com os outros, de aprendizagens outros, desfrutando e construindo suas infâncias. Com o reconhecimento das infâncias nas discussões sobre o território, revelam-se possibilidades de compreender, com maior sensibilidade, um imaginário repleto de soluções para os desafios que virão, as brechas a serem diminuídas e os equívocos por consertar nessa nova perspectiva de cidade. Os territórios educativos procuram, na sua essência, contribuições pedagógicas e lúdicas para a constituição de uma cidade mais inclusiva para crianças e jovens se apropriarem do espaço, potencializando seus desejos.

A partir dos resultados e do processamento das informações geradas e compartilhadas pelos participantes da atividade do Mapeamento Afetivo, pretende-se materializar coletivamente ideias e propostas, a serem integradas às estratégias previstas para o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Município do Rio de Janeiro (PDS-RJ), em curso.

Como estratégia micropolítica de fortalecimento de novas centralidades, esperamos que os territórios educativos, construídos coletivamente, constituam-se de fato e de direito, dando visibilidade às fragilidades, reconhecendo as potencialidades locais e apoiando-se nas condições de capilaridade, sistematicidade e interescalaridade representadas pelas relações entre os locais de moradia e os espaços educativos vivenciados por uma população que cotidianamente se desloca entre esses lugares e neles exerce relações afetivas.

Com essa experiência pioneira, pela universidade, esperamos que estudantes e profissionais graduados em arquitetura e urbanismo possam exercer de forma mais consistente o papel de mediação entre os interesses defendidos pela população e os condicionantes espaciais e de gestão pública. Pretende-se ainda contribuir com a atividade formativa das crianças e jovens participantes em temas como cidade e comunidades sustentáveis, conceitos de arquitetura e urbanismo, construção de cidadania crítica, dentre outros.

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Resumo

Este artigo propõe uma discussão acerca da criança como sujeito de direitos a partir de suas experiências espaciais e seu habitar na cidade. Ao pensar a criança como co-construtora desses territórios educativos, dá visibilidade a sujeitos que geralmente não têm oportunidades de opinião e participação em políticas públicas, em uma concepção das infâncias como cidadania crítica. Pretende-se valorizar a participação social como ação de enfrentamento para a retomada saudável das aulas e do espaço público, em espaços de aprendizagem outros que reconheçam a potência educativa da cidade. Com o Mapeamento Afetivo da cidade do Rio de Janeiro, os estudantes das escolas municipais descreveram os seus percursos casa-escola em diferentes contextos urbanos, além dos seus desejos para a cidade e o seu futuro. Pretende-se contribuir para a construção coletiva e compartilhada de subsídios ao Plano de Desenvolvimento Sustentável – PDS conduzido pela Casa Civil – Prefeitura do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: território educativo, mapeamento afetivo, cidade, infância

Data de recebimento: 29/04/2020
Data de aprovação: 01/10/2020

Resumen

El habitar de las infancias en la ciudad: territorios educativos como forma de resistencia

Este articulo propone una discusión sobre los niños como sujeto de derechos a partir de sus experiencias espaciales y su habitar en la ciudad. Si pensamos al niño como co-constructora de territorios educativos se está dando visibilidad a sujetos que generalmente no tienen oportunidades de opinión y participación en políticas publicas, dentro de una concepción de infancias con ciudanía crítica. Se pretende valorizar la participación social como acción de enfrentamiento para reanudar saludablemente las clases y volver a los espacios públicos, en espacios de aprendizaje otros que reconozcan la potencia educativa de la ciudad. Con el Mapeamiento Afectivo de la ciudad de Rio de Janeiro, los estudiantes de las escuelas municipales describieron sus caminos entre casa-escuela en diferentes contextos urbanos, además de sus deseos para la ciudad y su futuro. Se pretende contribuir para la construcción colectiva y compartida de subsidios al Plan de Desarrollo Sostenible del municipio de Rio de Janeiro (PDS-RJ) conducido por la Casa Civil – Municipalidad de Rio de Janeiro.

Palabras-clave: territorio educativo, mapeamiento afectivo, ciudad, infancia.

Abstract

Children’s experience in the city: educational territories as a form of resistance

This article discusses the child as a subject of rights based on his spatial experiences and experience in the city. In a conception of childhood as critical citizenship, to think the child as a co-builder of educational territories, it gives visibility to subjects who generally do not have opportunities for opinion and participation in public policies. In other learning spaces that recognize the city’s educational power, it is intended to value social participation as an coping action for the healthy resumption of classes and public space. Through the Affective Mapping of the city of Rio de Janeiro, students from municipal schools described their home-school paths in different urban contexts, in addition to their desires for the city and its future. This work contributes to collective and shared construction of subsidies to the Sustainable Development Plan – PDS conducted by the Casa Civil – Rio de Janeiro City Hall.

Key-words: educational territory, affective mapping, city, childhood

Giselle Arteiro Nielsen Azevedo gisellearteiro15@gmail.com

Arquiteta, Profa. Associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ e PROARQ/FAU/UFRJ) - Brasil; Coordenadora Adjunta de Ensino do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (PROARQ-FAU/UFRJ); Coordenadora do Grupo Ambiente-Educação - GAE

Vera Regina Tângari vtangari@uol.com.br

Arquiteta, Profa. Associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ e PROARQ/FAU/UFRJ) - Brasil; Coordenadora Adjunta de Ensino do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (PROARQ-FAU/UFRJ); Coordenadora do Grupo Sistema de Espaços Livres - Rio de Janeiro - SEL-RJ.

Alain Flandes alflandes@gmail.com

Arquiteto e Urbanista, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro - PROARQ/UFRJ - Brasil; Pesquisador colaborador do Grupo Ambiente Educação (GAE) e do Sistema de Espaços Livres - Rio de Janeiro - SEL-RJ. Email: alflandes@gmail.com