Foto: Moema Costa

O lúdico em questão: brinquedos e brincadeiras indígenas

Território(s) e contexto(s)

O conceito nativo brincadeira, usado originalmente pelos falantes da língua portuguesa na Amazônia, foi (re)apropriado por outros povos étnico-culturalmente diferenciados localizados na mesma região, ante o processo de colonização e as relações interétnicas decorrentes.

Os falantes de línguas indígenas, como os Gavião Parkatêjê11 ou os Suruí Aikewára12, usam brincadeira tanto para se referir aos jogos de flecha praticados diariamente na aldeia, como aos rituais e às festas que celebram de acordo com suas tradições. E, ao se referirem aos não indígenas, falam em brincadeira de branco para nomear as festas de branco. Muito cedo, talvez, os membros de ambos os grupos tenham aprendido que interrupção da rotina, em português, é sempre sinônimo de brincadeira. Ou empregam o termo na expectativa de diminuir a carga de desconhecimento e preconceito dos brancos em relação aos seus costumes, pois, quem sabe, com o uso do termo brincadeira, os brancos os vejam menos exóticos e mais próximos da humanidade, que, em princípio, lhes é negada, apesar da tradução intercultural produzir perdas da significação sociocultural nativa, sobretudo nos ritos de iniciação, como o ‘Pemp’13, que é realizado entre os ‘Gavião Parkatêjê’. Supõe-se que a situação não seja muito diferente nas demais sociedades indígenas, dada a situação de contato/conflito interétnico.

Não são poucos os antropólogos que fornecem informações sobre a brincadeira ou o brincar em sociedades indígenas, embora seus sujeitos não sejam necessariamente as crianças14. As referências e os cuidados para coletar dados etnográficos sobre o brincar e a brincadeira estão presentes nos manuais antropológicos desde a elaboração do ‘Notes and Queries on Anthropology’, de 1971, e os resultados são encontrados nos itens denominados festas e rituais, classes de idades, esportes e jogos, ou brinquedos, nas monografias clássicas da etnologia brasileira, como o faz Curt Nimuendajú ao falar sobre os Apinayé:

[o]s meninos Apinayé não possuem nenhuma organização como a que têm a dos Ramkôkamekra e Xerénte. Por conseguinte também não fazem corridas de toras, e nunca os vi jogar em conjunto outra coisa a não ser peteca de palha de milho. Veem-se poucos brinquedos em suas mãos, sendo o mais comum, do quinto ano em diante, o arco e a flecha. Os maiores de dez anos, se reúnem às vezes para exercitarem-se na rua da aldeia em escorregar flechas pelo chão; aquele cuja flecha escorrega mais longe, ganha todas as flechas que ficam para trás. Os demais brinquedos são quase os mesmos dos Xerénte; a roda sonante (corrupio), o brinquedo de Cão, cuja corda entre os Apinayé tem um cabo de pau, o pião sonante, um pequeno pião de noz de tucum, figuras de pássaros e outros brinquedos de tiras de palha, figuras de fio armadas entre os dedos das mãos e pequenas figuras de cera, representando animais e gente. Falta-lhes o arco sonante dos Xerénte (Nimuendaju, 1956, p. 84).

A situação descrita por Nimuendajú, além de informar sobre os Apinayé, oferece pistas sobre outras sociedades Jê. O antropólogo refere, também, as meninas Apinayé, anotando que:

… não possuem bonecas e, por conseguinte, também poucos “trens” de brinquedo. Brincam com uma pequena abóbora alongada e, são tão felizes com esse “filhinho”, como suas companheiras de idade entre os Ramkôkamekra-Canelas, com suas bonecas de talo de buriti. Não conhecem o balanço, mas havia no campo atrás da aldeia Bacaba, uma árvore fina e elástica, na qual trepavam a uma altura de três metros e depois de vergá-la com o peso do corpo, nela penduravam-se com as mãos e, dando forte impulso com os pés no chão, eram impelidas para cima com o repucho da árvore (Nimuendaju, 1956, p. 84).

As brincadeiras descritas por Nimuendajú (1956) dizem respeito ao contexto sociocultural específico, no qual, inclusive, refere o estreito laço que une as avós maternas e os netos, posto que, muitas vezes, esta mulher que, por ocasião do nascimento, foi parteira e curadora do neto transforma-se em guardiã e responsável por sua socialização, inclusive, conservando o cordão umbilical da criança num cesto, bem como os pertences que fazem parte da memória de infância do neto.

A brincadeira não aparece como um momento sem expressão, mas uma situação localizada espaço-temporalmente que compõe o cenário das relações sociais, forjando representações e sociabilidades, indicando a forma de integração e interação dos indivíduos no período inicial de vida. As informações recorrentes sobre as sociedades indígenas provocam reflexões sobre o fato de que, diferentemente da sociedade brasileira, os indígenas adultos não manifestam tanta ansiedade de transmitir, seja o que for, às crianças. A onipresença das crianças pelos quatro cantos da casa, da aldeia, entre tantos outros espaços destinados às brincadeiras, aponta a grande permissividade dos adultos aos seus comportamentos (Cohn, 2000 e Nunes, 2002b), e o ativismo das crianças no processo de apropriação e produção da significação cultura nativa por intermédio das interações nos grupos de pares e individualmente, com ou sem a presença de adultos, inseridos na construção sociocosmológica local da pessoa e do corpo, bases fundamentais para o entendimento da formação, socialização e transição geracional do universo cultural ‘sobre a e da’ infância.

Considerando que o âmago da antropologia, ou a tarefa do antropólogo, é constituído pelo trabalho de campo, por meio do qual se tenta compreender e explicar o modo de vida de um determinado grupo, aqui, busca-se entender a brincadeira a partir de brinquedos de coleções etnográficas constituídas tendo como referência os Xikrín do Cateté15.

11 – Sociedade indígena Jê que habita a Reserva Indígena Mãe Maria, no sudeste do Pará, na região do rio Tocantins, falante de língua filiada ao tronco Macro-Jê, cujo embate com os brancos data dos idos da década de 1940. Para informações atualizadas sobre o grupo, recorrer a Ricardo (2000).

12 – Sociedade indígena Tupi que habita a Área Indígena Sororó, no sudeste do Pará, na região da bacia hidrográfica do Araguaia-Tocantins, falante de língua filiada ao tronco Tupi-Guarani, cuja saga de convivência com os brancos foi traumática em função da Guerrilha do Araguaia ocorrida na década de 1970 do século XX. Para informações atualizadas sobre o grupo, recorrer a Ricardo (2000). Sobre as brincadeiras entre os Suruí Aikewára, consultar: Mastop-Lima (2002).

13 – O Pemp é um rito de passagem realizado pelos ‘Gavião Parkatejê’ e os ‘Gavião Kyikatêjê’, entre outros povos pertencentes ao macro-tronco Jê, como os ‘Kayapó’, os ‘Apinayé’ e os ‘Timbira’. O ‘Pemp’ representa o auge do processo cultural de formação do corpo e da pessoa, momento de transição do “ser criança” do sexo masculino para o “ser adulto”, marcado por regras e procedimentos rigorosos. As lideranças e os velhos costumam denominá-lo de “brincadeira séria” e fazem analogia com o quartel para designar a intensidade do rigor exigido durante o ritual. Investigações etnográficas que ressaltam o procedimento e a finalidade sociocultural do ‘Pemp’ podem ser encontradas em Nimuendaju (1956) y DaMatta (1976).

14 – Sobre a forma como as crianças foram e ainda são vistas nos estudos antropológicos, consultar: Nunes (2002b) e Cohn (2005).

15 – Um parâmetro da importância atribuída aos brinquedos indígenas foi a expedição feita por um grupo de pesquisadores sobre brinquedos indígenas. Os organizadores da expedição lançaram, em 04.05.2004, em Brasília, no Ministério da Educação, um ‘kit’ de jogos, brinquedos e brincadeiras que foi distribuído a, pelo menos, 20 mil escolas, em particular às escolas indígenas de todo o país. O ‘kit’ inclui um livro para crianças, um guia para professores e peças de alguns jogos, com explicações sobre como jogar. Além disso, 500 cópias do vídeo-documentário da expedição foram distribuídas. Conferir: Manchetes (2004).

Rita de Cássia Domingues-Lopes ritalopes31@yahoo.com.br

Antropóloga, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Tocantinópolis.

Assis da Costa Oliveira assisdco@gmail.com

Advogado, mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), professor da Faculdade de Etnodesenvolvimento da UFPA, Campus de Altamira.

Jane Felipe Beltrão janebeltrao@gmail.com

Antropóloga e Historiadora, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará (UFPA).