Foto: Paul Klee

Pérolas aos poucos: o relato de uma adolescência congelada

O mal

Continuava lhe oferecendo poemas suscitados pelos filmes que a interessavam ou pelas gravuras apresentadas.

Nas entrelinhas dos desenhos: a dor, os demônios quase sempre presentes, as sombras habitando os disformes chifres de faunos, casais desencontrados, homens diabólicos, mulheres solitárias.

E eu? O verbal escapava pelos vãos dos dedos, nós nos acompanhávamos naquele jogo de trocas, mas a dúvida me assombrava. Será? Será?

Comecei a pensar em conversar mais sobre os desenhos em relação a seus aspectos ‘trash’. Pensei: se neste momento ela só se comunica desse jeito, que o seja. Vou mergulhar em seu mundo de pesadelos e sonhos e trocar com o meu de letrinhas, dando forma e possível sentido mais verbalizável. Talvez fosse necessário. Talvez não.

O verbo e o amor

Na sessão após minha conversa (com meus botões), para surpresa minha, Andréa chega sem a pasta. Está ali, estava ali, frente a frente, sem gravura, desenho, poesia – numa comunicação de outra espécie, a que sai pela boca, olhos, ouvidos, os corpos se mexendo, contrações, crispações. O espaço potencial (Winnicott, 1951/ 1971) não dispunha de um objeto que por tanto tempo fora preciso para que atravessássemos nossas mil e uma noites antes de sermos degoladas pela angústia e desencontro.

Se perguntarem o que conversamos naquela sessão, não me recordo. Sei que foi convidada pelo pai para um cruzeiro e que a mãe ajudou-a a escolher e comprar roupas (até então, o desleixo permanecia em sua apresentação e cuidado pessoais, moletons largos e largados, figura quase andrógina – estrangeira para olhos do cotidiano das vestes bonitas).

Quando volta das férias, Andréa chega arrumada – pergunto se é para mim. Não, anda mais cuidadosa agora, faz a unha, está contente porque não puxa mais o cabelo (me mostra a falha enorme, hoje sem vergonha, e eu me assusto, sem compreender o progresso apontado. Para mim, continua a mesma clareira, o oco aparecendo, oculto pelos ralos fios que o cobrem).

Alguns comentários

Pérolas aos poucos
Eu jogo pérolas aos poucos ao mar
Eu quero ver as ondas se quebrar
Eu jogo pérolas pro céu
Pra quem pra você pra ninguém
Que vão cair na lama de onde vêm…
…Grãos de areia
O sol se desfaz na concha escura
Lua cheia
O tempo se apura
Maré cheia
A doença traz a dor e a cura
E semeia
Grãos de resplender
Na loucura

Zé Miguel Wisnik e Paulo Neves

Tantas vezes me perguntei por que continuávamos juntas, o que Andréa esperava de mim. Não sei com que palavras definir o sentido da gravura e de sua produção na vida de Andréa. Objeto de ligação com a vida, de buscar ancorar-se para não submergir à angústia e às margens (à marginalidade) vazias e sem rumo. Objeto de expressão de um mundo interno que não se revelava em palavras ou na doce voz: mas na depressão, na ausência radical de se sentir vivo e capaz de viver e nos atos delinquenciais. Objeto de reconhecimento na medida em que ia construindo uma praia, a partir do olhar do professor, com as ondas se estendendo até os colegas artistas. A gravura era um objeto onde buscava ancoragem, mas sempre se equilibrando num fio de navalha, porque era preciso mergulhar num mundo de desorganização e caos para que o informe ganhasse formas, para que figuras assustadas e terríveis ganhassem mínimos contornos.

O que Andréa procurava na arte?

Existe uma dificuldade em viver o dia a dia: vive uma vida a vida ou mesmo uma morte a morte – lenta e/ou impulsiva. Está em busca de um viver em que emerjam sentidos. A miséria simbólica, as restrições que a vida onírica de pesadelos impõem levam o lidar com o trabalho do dia a dia como peso das tarefas esmagando-lhe a vontade e impossibilitando o sonhar que conduz a um fazer criativo. Às vezes devaneios. Quem sabe, nem devaneios: algo aquém do fantasiar.

O que a arte é capaz de propiciar? Não necessariamente cura – vide inúmeros artistas. Obra de arte não é sinônimo de viver criativo, já dissera Winnicott (1971).

Obra de arte, adverte Winnicott, é diferente do viver criativo próprio ao viver total. São pessoas como Andréa, em especial, que tentam encontrar-se através de suas experiências criativas – na busca de seu eu (‘self’). Entretanto, pensar na arte como único ou garantido caminho para a cura pode ser um equívoco, uma busca interminável e mal sucedida. Para alguns, a arte é fundamento como única sustentação possível para a ligação com a vida e sobrevivência psíquica. Para outros, a arte é um atalho enquanto o viver o dia a dia beira o insuportável.

O amor à vida não acontece, e o mesmo objeto de salvação pode tornar-se de perdição. Mas poderá assim mesmo constituir-se como um objeto de comunicação com outro humano? Ou delineia-se apenas como gesto esboçado que, se o outro não está ali, para partilhar e reconhecer a realidade da criação, cairá no vazio?

Lembro-me de um tempo em que Andréa ficou sem produzir, mas, simultaneamente, começou a se arrumar, viajou com o pai, ampliou horizontes para fora da arte. Conta-me, então, que evitava “mexer em gravura” naquele momento, com medo de perder a estabilidade. Foi importante o assinalamento de Andréa, que provocou em mim um estranhamento e posterior questionamento, em relação à percepção do uso terapêutico da arte.

De um lado, vemos pacientes que temem que o curar sua loucura jogue fora (o bebê junto com a água do banho) a sua parte criativa. De outro, pacientes (ou os mesmos) que jogariam fora suas possibilidades de talento pelo sentimento de normalidade e estabilidade, e de fazer parte da humanidade.

Aqui recorro novamente a Winnicott:

Na busca de eu (‘self’), a pessoa interessada pode ter produzido algo valioso em termos de arte, mas um artista bem sucedido pode ser universalmente aclamado e, no entanto, ter fracassado na tentativa de encontrar o eu (‘self’) que está procurando. O eu (‘self’) realmente não pode ser encontrado no que é construído com produtos do corpo ou da mente, por mais valiosas que essas construções possam ser em termos de beleza, perícia e impacto. Se o artista através de qualquer forma de expressão está buscando o eu (‘self’), então se pode dizer que com toda probabilidade, já existe certo fracasso para esse artista no campo do viver geral criativo. A criação acabada nunca remedia a falta subjacente do sentimento do eu (‘self’). (1971, p. 81).

É preciso uma “sensibilidade especial”, que vá além dos limites da consciência: estar frente ao outro de modo sensível e cuidadoso numa escuta sem demandas.

Por isso devemos ser cuidadosos em relação ao pré-conceito referente à arte como garantida forma de cura – cuidadosos para não comunicar a arte como única expressão do eu (‘self’) deste paciente.

Sem dúvida, a arte constitui uma poderosa âncora enquanto expressão da vida subjetiva, mas o trabalho do analista deve ser o de auxiliar na construção de um trabalho para que a arte não funcione apenas como paradeiro (lugar seguro/de parada), mas como movimento que produza novos momentos na direção de um futuro de criação para além da obra em si. A obra como abertura para criar na vida.

Sessão mais recente de Andréa

Andréa não me traz mais suas produções – aliás, as mais recentes não são gravuras, mas desenhos com outra técnica que dispensam o uso de prensas e o contato com a sujeira. Já estávamos quase finalizando a sessão, quando ela me reafirma o seu medo e quase determinação em não trabalhar com artes plásticas com a regularidade anterior. Argumenta que entra num processo em que se suja muito, a casa suja, a sujeira e desorganização do entorno ganham uma proporção “enorme”. Não se interessa mais em manter as coisas arrumadas. O mundo acaba ali. Quando começa a trabalhar vai noite adentro, perde a noção das horas e do tempo.

Angústia de entrar num estado caótico, tanto físico, quanto de alienação em relação ao que acontece fora de si. O cuidado de si mesma, da filha e do ambiente ficam impossibilitados. Dá-se um contato quase direto, sem mediação, com seus aspectos “trashes” (assim ela diz), como se não fosse possível criar a partir de outro interior, se não o mais terrorífico, louco, da dor de feridas (incuráveis).

Será possível criar a partir de um belo sereno? Será possível criar sem contar com sua loucura desorganizada? Como possível solução, Andréa está pensando em usar o ateliê do professor eventualmente, sem compromisso.

Um talento importante que vem desenvolvendo há algum tempo é cozinhar. Caprichosa, sofisticada, pesquisa pratos refinados, ingredientes diversos, “especiarias”; faz almoços e oferece às pessoas que lhe são importantes. Pretende iniciar o curso de gastronomia enquanto amigos artistas a reprovam e a incentivam a fazer curso de Artes Plásticas.

Entendo sua mudança e a acompanho, podendo entender que a arte nela segue – neste momento – por caminhos mais seguros, com contornos em que é possível lidar com a sujeira da cozinha, e as produções podem ser oferecidas aos outros com garantias, de consumo e de que estará acompanhada de pessoas reais e não de demônios, peixes mortos, esqueletos.

Escolha de um caminho mais alegre (ou menos doloroso), onde a ameaça do transbordamento da aflição e da loucura fique distante.

Pérolas aos poucos, jogadas paulatinamente para que seja possível o lidar com a lama que vem junto, lama-origem da pérola, onde o sujar-se e o limpar sejam possíveis – de modo a possibilitar a tolerância da destrutividade e o vislumbre da esperança e da possibilidade de viver criativamente.

Referências Bibliográficas

BAUDELAIRE, C. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

CARDOSO, M. R. Superego. São Paulo: Escuta, 2002.

PESSOA, F. O Livro do Desassossego por Bernardo Soares. São Paulo: Brasiliense, 1995.

PONTALIS, J. B. Perder de vista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

WINNICOTT, D. W. Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais. In: ______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971 (Original de 1951).

______. A Criatividade e suas Origens. In: Op. cit., 1971.

______. Nada no Centro. In: ______. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1989 (Original de 1959).

______. O Medo do Colapso. In: Op. cit., 1989 (Original de 1963).

______. A Psicologia da Loucura: uma contribuição da psicanálise. In: Op. cit., 1989 (Original de 1965).

Resumo

No texto que se segue é apresentado um caso clínico em que destaco, no relato, os sentimentos de tédio e vazio vivenciados pela adolescente e, ainda, o lugar da arte e de objetos culturais como forma de comunicação entre a mesma e a analista. Vem sendo constatada a chegada aos consultórios de jovens adultos com dificuldades de passagem, de transitarem para um estar-no-mundo de outro modo rumo à independência, ao ser-adulto – seguindo adiante em seu processo de maturação. Apresentam um cotidiano vazio e sem sentido, tédio, inércia psicossomática, sentimentos de não pertencimento e uso de drogas. São jovens que lutam para alcançar a vida, como se refere Winnicott – e a desesperança diante desta luta se traduz através das vivências de vazio. A referida “adolescência congelada” vivida ora com desespero, ora com apatia requer uma específica aproximação. O encontro clínico extrapola a comunicação verbal e solicita a configuração de um espaço potencial em que o uso de objetos culturais e da arte pode vir a se apresentar como instrumento terapêutico.

Palavras-chave: tédio, vazio, criatividade, adolescência, objetos culturais.

Data de Recebimento: 29/08/2015
Data de Aprovação: 15/10/2015

Fatima Florido Cesar fatacesar@gmail.com

Psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora no Curso de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). Autora dos livros "Dos que moram em móvel-mar”, “A elasticidade da técnica psicanalítica” e "Asas presas no sótão: Psicanálise dos casos intratáveis" e de artigos em diversas revistas.