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Ser criança em movimento: ontologias e alteridade na pesquisa com crianças

Considerações finais

A experiência no Canaã ensina não só sobre a importância de incorporar os adultos nas pesquisas com crianças, mas a importância de pesquisar as diferentes concepções e formas de ser adulto. Adultos e crianças são produzidos um a partir do outro, como demonstram as pesquisas que incorporaram os adultos em suas investigações com crianças. Pires (2007), por exemplo, relata o atrito que teve com uma vizinha durante sua pesquisa em Catingueira. Quando as crianças a visitavam, a pesquisadora lhes permitiu fazer coisas que, em geral, um adulto não deveria assentir. Em sua casa, as crianças podiam pular no sofá, fazer barulho e brincar de uma forma em que, nas suas próprias casas, não seria permitido. A “irresponsabilidade” da pesquisadora por não colocar limites nas crianças chegou ao ponto de uma vizinha fazer reclamações (Pires, 2007).

Ao colocar que comportar-se demasiadamente como criança a inseria em uma situação de desconfiança frente aos outros por não corresponder às expectativas do comportamento adulto, Pires (2007) apresenta que existiam, em Catingueira, noções de adulto relacionadas às noções de crianças, e que refletir sobre as concepções de infância têm relação com o que é esperado dos adultos. É bem verdade que a postura dos adultos encontrada por Pires em Catingueira foi bem diferente da que encontrei no Canaã. Não é comum que compartilhem as mesmas conversas ou debatam opiniões. Em sua experiência de pesquisa, crianças e adultos formavam ontologias completamente distintas, o que lançava desafios para Pires, que não se encaixava na perspectiva corrente de ser adulta (Pires, 2007). A autora, falando somente de Catingueira, é muito cautelosa e não universaliza a forte distinção entre crianças e adultos. O fato de adultos e crianças serem concebidos de maneira distinta em Catingueira é um aspecto importante para a pesquisa com crianças naquela região. Assim como Pires, muitos adultos no Canaã não caberiam no que se espera de um adulto em Catingueira. O que é ser adulto em determinado lugar não deveria também ser uma questão? O que é igualmente obliterado nas pesquisas que tomam essa concepção de adulto como universal?

A investigação das concepções de adulto pode afetar outras pesquisas para além da antropologia da criança. Não separar os fenômenos tidos como parte do “mundo das crianças” de fenômenos do “mundo das adultas” implica não separar as pesquisas com crianças das pesquisas sobre o Estado, religião, economia ou com os movimentos sociais. Sem abandonar a atenção para as vozes das crianças nas pesquisas, a discussão sobre as influências de diferentes concepções de adulto e de criança podem ser relevantes para muitos outros contextos de pesquisa.

Em vez de conceber crianças e adultos somente em termos anatômicos ou etários, a distinção entre crianças e adultos poderia ser considerada a partir de uma atenção aos seus movimentos, ou seja, para o fato de que o ser criança seria um fluxo que se coloca e coloca em movimento a todos, não somente as crianças. Decorre disso uma convivência entre crianças e adultos no trabalho, em casa, nas atividades políticas e na vida. A criança não é o passado do adulto, aqui. Essa cinestesia não é pensada como a sinestesia na psicanálise – uma lembrança individual da criança interior de cada um. O devir criança é pulsante nas crianças e adultas do presente, como foi nas crianças e nas adultas anteriormente. Crianças e adultos são o passado. Ser criança atravessa as gerações, mantendo as brincadeiras vivas. O passado e a criança não são interiores, privados. Ambos são compartilhados. Adultos e crianças são inseparáveis em qualquer linha do tempo.

Boa parte das ciências sociais – e da antropologia, em particular – também sustenta a separação entre crianças e adultos no desenvolvimento de suas pesquisas. As crianças são simplesmente ignoradas em parte considerável das etnografias, artigos e projetos de pesquisa, sugerindo que somente adultos habitam as formações sociais estudadas. As vozes das crianças são quase restritas aos campos da antropologia da criança e sociologia da infância.

Calcada na ideia de alteridade, a organização da antropologia ocorreu a partir da concepção de que crianças constituiriam um objeto à parte. Essa separação entre objetos de pesquisa – crianças e adultos – contribuiu muito pouco para refletir sobre a diversidade de maneiras de ser adulto nas etnografias. As ênfases nas vozes dos adultos nas pesquisas não renderam maiores reflexões sobre essa categoria. Nessa divisão, coube às pesquisas com crianças fazer esse tipo de reflexão, uma vez que pesquisar crianças prescinde de uma negociação com as expectativas que envolvem ser adulto (Pires, 2007). Essas investigações abrem caminho para o rompimento epistemológico com a divisão ontológica entre crianças e adultos, questionando a própria maneira como essas divisões científicas – e antropológicas – são constituídas. Se, como Rosa, adultas podem ser crianças também, temos em mãos reflexões que podem afetar pesquisas em múltiplos lugares e contextos que vão muito além das pesquisas com crianças, pois colocam em xeque a recorrente equiparação entre ontologia e alteridade.

A rejeição a uma classificação estanque nas categorias de criança e adulto coloca um desafio para a antropologia. Torna-se incompatível levar a sério essa rejeição e, ao mesmo tempo, partir de uma pré-noção de infância no desenho da pesquisa. A própria separação de uma antropologia da criança das demais áreas perderia seu sentido. Chico Bento, na tirinha que abriu este artigo, rejeitou a proposta de Geninho de delimitar em quais terras ele teria ou não o direito de transitar e usufruir. No lugar de tentar encontrar a infância típica do campo, talvez nosso desafio seja abraçar essas rejeições classificatórias e observar concretamente por onde os fluxos e trânsitos passam.

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Resumo

 

Neste artigo, convidamos os leitores a rejeitar classificações apriorísticas do que é ser criança e ser adulto, rural e urbano. Para alguns sujeitos com quem fizemos a pesquisa, ser criança é entendido como uma substância que atravessa não só as crianças, mas também os adultos. Levando a sério essa negação de uma alteridade fundamental entre crianças e adultos, lançamos questões epistêmicas sobre pesquisar com crianças de forma a dar conta de suas múltiplas ontologias. Inspiramo-nos pela proposta epistemológica e teórica do autor sul-africano Archie Mafeje e sua crítica às taxonomizações feitas pela Antropologia.

 

Palavras chave: criança; movimento; rural; taxonomia

 

Data de recebimento: 02/02/2018

Data de aceite: 25/07/2018

Gustavo Belisário d'Araújo Couto pp.belisario@gmail.com

Doutorando em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social da Universidade de Brasília (PPGAS/UnB), Brasil. Graduado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil, em 2013. Tem experiência de pesquisa com crianças, educação, movimentos sociais, política e teoria antropológica.

Antonádia Monteiro Borges antonadia@gmail.com

Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil (2003). Atualmente, é Professora no Departamento de Antropologia da UnB. Dedica-se à pesquisa em teoria antropológica, com trabalho de campo no Brasil e África do Sul.