Foto: Roger Ballen

Conflito armado na Colômbia e suas consequências sobre as crianças e jovens

Paulo Fraga – Além das mudanças no atual governo,em comparação ao anterior,em relação à questão de tentar pôr fim ao conflito armado, também se produzem mudanças em relação às políticas para adolescentes e crianças?

Germán Muñoz – Quando falamos do governo atual,o governo Santos, estamos falando de um governo que com certeza tem continuidade como governo anterior, ou seja,o governo [Álvaro] Uribe [Vélez]. O governo Uribe foi o primeiro governo reeleito na Colômbia, que esteve um período muito longo no poder,supostamente para acabar de ‘pacificar’ o país, mas o confronto armado continuou com níveis semelhantes. No final do século passado,a violência atingiu um nível muito elevado e com o “Plan Colombia” [“Plano Colômbia”], apoiado pelos Estados Unidos, virou uma guerra com armamento muito mais pesado e tecnologia sofisticada. Santos foio Ministro de Defesa no governo Uribe, por isso, digo que existe continuidade total entre os dois governos.Não se trata de uma postura nova, senão de uma postura de continuidade na forma de enfrentar a guerra.

Apesar disso,no governo de Santos,o diferencial tem sido o tema da paz ou da negociação do conflito armado na mesa de Havana. Esta negociação começou sem a presença de todos os atores da sociedade civil.Somente alguns deles assistiram,quase em segredo. Gradualmente,a negociação foi se abrindo e tem sido um pouco mais conhecida por parte da sociedade colombiana.

O que acontece com as crianças e os jovens no meio desta situação?Ontem[22 de junho],tomou posse o novo Ministro de Defesa e, curiosamente, a partir deste momento,a Procuradoria da República trouxe à tona o tema da responsabilidade dos militares em relação aos chamados “falsos positivos”.

Quando me apresentei, no começo da entrevista,falei do juvenicídio –tema do meu interesse de pesquisa. Eu entendo o juvenicídio como crimes de Estado, práticas que têm sido socialmente aceitas e que estão associadas com numerosas e diversas formas de atentar contra a vida dos(as) jovens, formas que não são exclusivas da Colômbia. Por conseguinte, o assunto dos assassinatos sistemáticos de jovens, os atentados contra a vida digna de jovens e a forma como, através dos meios de comunicação,eles são apresentados e marcados como perigosos, sujeitos que representam um risco para a sociedade, permitiram que ocorressem cerca de 5.700 assassinatos sistemáticos cometidos pelo Exército Nacional da Colômbia durante os anos do governo Uribe, particularmente, de 2002 até 2010. Estes assassinatos foram chamados “falsos positivos”.

Recrutavam jovens,prometendo-lhes trabalho, por exemplo, ou capturavam jovens camponeses em seus pedaços de terra, em diversas regiões do país. Depois, eles eram vestidos como guerrilheiros e apresentados aos meios de comunicação como guerrilheiros mortos em combate, para assim cobrar recompensas por seus corpos. Isso foi feito por muitos batalhões ao longo do país. Em termos da “segurança democrática”, nome que recebeu o plano de governo de Uribe,tratava-se de combater organizações da guerrilha e do terrorismo, mostrando resultados e apresentando “baixas”. Na realidade, foram mais de cinco mil assassinatos, que correspondem,na maior parte, a jovens de camadas populares e camponeses, com responsabilidade política, claramente, do Estado colombiano.

Considero que estes fatos mostram uma política implícita dos governos nacionais. Política que, é claro,não aparece referida em nenhum documento,porque, no lugar disso, se fala em termos da luta contra o terrorismo, ou a guerrilha, mas, na realidade, os fatos mostram outra política, que não se enuncia abertamente e que definitivamente afeta a vida de crianças e jovens através das execuções extrajudiciais. Como podemos entender o que significa ser criança no meio da guerra, quando crianças e jovens são apresentados como guerrilheiros e assassinados em meio a situações atrozes? É preciso enfatizar que se trata de uma guerra com um nível de atrocidade desmedido, enquanto o Estado lava as mãos ante este tipo de situação.

Paulo Fraga – Você falou de uma questão fundamental, o juvenicídio. Nós, no Brasil, não temos uma guerra civil, como na Colômbia, mas temos uma situação muito grave em relação aos jovens assassinados. As principais vítimas de homicídios no Brasil são os jovens, e hoje há um litígio, uma luta muito forte no nosso país, sobre o tema da redução da maioridade penal para 16 anos. Os setores conservadores trabalham com dedicação para transformar a lei. Hoje, no Brasil, temos um Congresso muito conservador, que contribui para que a lei seja transformada. Esses setores conseguiram colocar em pauta a questão da diminuição da maioridade penal. Gostaria de saber qual é a situação da Colômbia neste sentido, assim como sua opinião sobre a redução da maioridade penal.No Brasil, dizem que os jovens com 16 anos sabem muito bem o que estão fazendo,portanto, eles devem assumir a responsabilidade pelos crimes que cometem,ainda que a maioria dos crimes violentos sejam cometidos por adultos.

Germán Muñoz – Depois de quase dez anos de vigência do Sistema de Responsabilidade Penal para Adolescentes, não existe uma política que enfrente o fenômeno da justiça juvenil, nem justiça juvenil específica e pedagógica pensada para jovens em conflito com a lei, e menos ainda, medidas preventivas para dissuadir os jovens de escolher o caminho do delito. Deveríamos contar com mais política social e menos política criminal para os jovens na Colômbia.

Na Colômbia, não é somente o Congresso, nem o governo, mas a maioria da sociedade que é conservadora demais; e esse modo de pensar, essa ideologia conservadora, expressa-se nos meios de comunicação,nas leis, em temas como, por exemplo, o matrimônio igualitário, o consumo moderado de substâncias psicoativas etc. Temas que aqui dificilmente poderão ser legislados, porque a igreja, o exército, a polícia, a sociedade em geral não aceitam sequer que sejam objeto de debate.

O tema do juvenicídio, como você expressa muito bem na sua pergunta, não é exclusivo desta sociedade colombiana nem da mexicana. A palavra juvenicídio começa a entrar em cena, através de livros, da academia e dos meios de comunicação,a partir de José Manuel Valenzuela, pesquisador do tema dos jovens e da cultura no México que, num livro seu chamado “Sed de Mal” [Sede de Mal], se refere ao tema juvenicídio associado ao tema feminicídio.

Quando falamos de juvenicídiono contexto latino-americano, não falamos de fatos isolados,não são erros, nem crimes cometidos contra jovens vinculados à delinquência, à ilegalidade. Estamos falando de que em todos os países da América Latina, nestes tempos, mas também desde tempos mais antigos, têm existido permanentemente políticas sistemáticas bem dissimuladas,através das quais pode ser rastreado o objetivo de atentar contra a vida dos jovens. Você menciona o Brasil, evidentemente; basta leras estatísticas de assassinatos de jovens no Rio de Janeiro. O mesmo acontece no México (lembremos Tlatelolco),a “Noite dos Lápis”,na Argentina;teríamos que falar dos massacres em Lima (na Universidade de San Marcos), do casarão universitário em Guayaquil, no Equador;dos 43 jovens normalistas de Ayotzinapa, no México, que recentemente têm gerado um movimento muito forte de indignação.

Quando hoje falamos de juvenicídio, para muitos pesquisadores latino-americanos,estamos falando de todas as formas de atentar contra a vida digna, contra a vida ‘decente’ de jovens, mediante atentados contra suas possibilidades de emprego,na dimensão econômica; atentados contra a participação,na dimensão política;atentados contra uma adequada representação midiática,através das formas simbólicas;e,é claro, atentados contra a vida propriamente dita.

Então,acho muito útil fazer-nos uma pergunta arrepiante e dolorosa:por que morremos jovens hoje nos países da América Latina?A resposta na Colômbia ou no México(ver trabalhos de Rossana Reguillo), ou em São Paulo (ver resultados do grupo de pesquisa de Silvia Borelli e Rita Alves) etc., revela que os jovens se matam ou os matam, ou seja, se suicidam ou são assassinados. Logo, a tendência observável em escala global evidencia que os jovens morrem fundamentalmente por causa da violência e os números são aterradores. Reguillo, a pesquisadora mexicana,diz que no México,em 2012, morreram 20.700 jovens,ou seja,mais de 20.000 filhos, irmãos, estudantes, esposos e pais jovens;mais da metade deles morreram por causa da violência direta.

No caso colombiano,considero muito significativo compreender que muitos jovens que têm sido mortos,no meio do conflito armado,têm sido mortos por causa de crimes de Estado.Eles têm sido assassinados por razões de conveniência política.O autor camaronês Achille Mbembe,no livro “Necropolítica”, fala justamente, não da “nuda” vida da que falava Agamben, mas da “nuda” morte. Estamos falando de uma forma sistemática de administrar a morte na sociedade contemporânea. Ou seja, a sociedade hoje, através de seus mecanismos de poder, decide quem merece viver ou morrer e, aparentemente, entre os que devem morrer se encontram mulheres e jovens,e isso é o que se chama necropolítica.

Considero que quando falamos dos “falsos positivos”– que constituem o juvenicídio mais significativo e atroz da recente história colombiana, em que mais de cinco mil civis, cidadãos comuns, de setores populares que não estavam implicados na guerra, que viviam em seus bairros, em suas veredas,no campo e nos povoados de todo o país, foram feitos prisioneiros, sequestrados, assassinados, disfarçados como guerrilheiros –,estamos falando de crimes de Estado,sobre os quais o Estado colombiano não vai querer falar,já que não admite ser acusado como autor desses crimes, que afetam crianças e jovens numa grande proporção.

Germán Muñoz González germancitom@yahoo.es
Doutor em Ciências Sociais, Infância e Juventude (Centro de Estudios Avanzados de la Universidad de Manizales – CINDE, Colômbia). Docente e pesquisador em Ciências Sociais com especialização em Estudos Culturais, nas áreas da Comunicação, Sociologia da Juventude, Educação e Desenvolvimento Social na Universidad de Manizales, Colômbia.


Paulo Cesar Pontes Fraga pcp_fraga@yahoo.com.br
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Brasil. Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Especialista em estudos sobre Violência, Direitos Humanos, Droga e Política Pública.