Foto: Hélio Oiticica

Crianças e adolescentes indígenas e imigrantes no contexto escolar argentino.

Kelly Russo – Esta é uma questão também muito importante no Brasil, qual seja: ser imigrante ou indígena é também lidar com estes estigmas, com estas imagens negativas. Nesses paradigmas que estão presentes no espaço escolar, existem diferentes imagens de infância construídas na própria escola a partir das políticas educativas, mas também no cotidiano escolar. Eu queria que você falasse um pouco sobre estas diferentes imagens de infância que se dão nas comunidades de imigrantes bolivianos, e dentro do espaço escolar da docência.

Gabriela Novaro – Sobre as imagens de infância, precisamos pensar nas relações não necessariamente coincidentes entre as políticas e o cotidiano escolar. Na Argentina, quanto às políticas, tem havido um esforço, nos espaços dos ministérios, de capacitação docente, de produção de material de trabalho. São políticas que têm mudado e avançado bastante, e que sustentam uma ideia de criança que não é mais a da infância tradicional, mas a de uma criança que pode criticar, refletir, participar. Agora, quanto ao cotidiano escolar, segue havendo em muitas instituições uma ideia que não problematiza um pressuposto bastante disciplinador e normatizador sobre a infância. É um tema para debate, pois, às vezes, à proposta normatizadora se opõe uma proposta absolutamente permissiva e que, por vezes, acaba por confundir autoridade com autoritarismo e que se traduz em situações onde é difícil manter dispositivos de trabalho.

A questão é que, tanto no nível das políticas quanto no nível das escolas, a imagem das crianças dos setores populares é muito pouco legitimada. Mas aí se apresenta um tema muito controverso, que é o das imagens das crianças indígenas e imigrantes nas famílias de setores populares, e temos que ter o cuidado de não construir um preconceito ao inverso, ao dizer que a imagem das crianças nestes setores sempre é mais progressiva ou mais interessante do que nas políticas educativas. Certamente nos encontramos muitas vezes em espaços de trocas com setores populares ou de coletivos imigrantes em que aparece, por exemplo, a imagem de uma criança de família boliviana como mais submissa, mais permeável às ordens adultas, em contraponto à imagem de uma criança argentina mais ativa, mas também mais indisciplinada. Por isso, em torno das imagens da infância temos que eliminar alguns preconceitos, tanto os aparentemente positivos quanto os negativos, quando pensamos nas imagens de criança que não correspondem aos setores médios que tendem a predominar nas escolas.

Kelly Russo – Esta imagem que produz discriminação e preconceito vai interferir no processo de aprendizagem.

Gabriela Novaro – Sim, com respeito à questão da aprendizagem e à vinculação da noção de aprendizagem à de saberes legítimos e formas de ensino, há uma polaridade muito instalada dentro da educação, que também foi apropriada por grupos indígenas e grupos imigrantes, que opõe os saberes escolares e os saberes dos conjuntos sociais indígenas ou imigrantes. E isso se sustenta na imagem de que os saberes escolares tendem à abstração, à descontextualização, sendo, portanto, saberes que podem se universalizar mais, não tendo muito apelo ao particular, em contraposição aos saberes destes conjuntos sociais, que seriam sempre muito concretos, locais e particulares. Esta polaridade é complexa e, ao mesmo tempo, usada para legitimar, por exemplo, os saberes de grupos indígenas, muitos dos quais reivindicados pelos movimentos sociais por sua alusão ao particular, ao concreto.

O que não podemos perder de vista é que esta alusão ao particular e ao concreto também é estereotipada. E nos contextos de transmissão de conhecimento familiares e comunitários, pode haver tanta abstração quanto na transmissão de saberes da escola. Esta polarização entre abstrato e concreto, universal e particular, na verdade, faz com que os saberes dos grupos populares sejam pouco legitimados. Em todo caso, o que acontece às vezes é que os legitimam associando-os à tradição, como saberes tradicionais. Mas, ao mesmo tempo que legitimam, estereotipam, e temos que avaliar isto, sem negar o que a tradição ou a folclorização pode acrescentar em termos de nova presença e visão nas escolas. Ou seja, é importante estar atento ao perigo de que, nesta tradicionalização ou folclorização, alguns saberes das famílias sejam também muito fortemente estereotipados, fechados, desistoricizados.

Kelly Russo – Você já criticou o que chamou de hipervisibilização dos sujeitos definidos como diversos. Essa ideia de hipervisibilização tem relação com os estereótipos que são criados sobre estes sujeitos? Como isso ocorre no cotidiano escolar?

Gabriela Novaro – Quando os saberes dos grupos imigrantes ou indígenas penetram na escola, ao fazê-los de forma folclorizada ou associados à tradição, aparece a questão da hipervisibilização. No modelo assimilacionista, que predomina na Argentina, estes outros saberes, estas outras presenças e imagens são negadas, não tendo um lugar diretamente. O que acontece nestes novos tempos, em que o Estado é atravessado pelos discursos do multiculturalismo e da interculturalidade, é que há um convite para que estes saberes tenham esta presença e estas imagens que trazem outras vozes. E são definidos apenas por seu caráter diverso. O que se perde é a compreensão de que, ao mesmo tempo que são diversos, eles são similares em muitos outros aspectos. Assim, estes grupos são definidos por sua distintividade. Certamente em sua distintividade há aspectos que atentar, mas, em muitas outras dimensões de suas vidas e de suas formas de aprendizagem e de transmissão de conhecimento, há aspectos comuns, e temos que entendê-los junto a seus aspectos diversos. Vê-los apenas como diversos, como outros, faz parecer que estejam legitimados somente por aparecer na escola em matérias especiais ou em celebrações escolares, ou quando se festeja algum dia muito especial, como, por exemplo, o dia da tradição. Nestes momentos, aparece de forma muito encenada o que foi negado nos momentos escolares cotidianos, e também nas matérias que têm uma tradição maior, como as ciências sociais, em que a referência à imigração latino-americana aparece quase como omitida.

Trata-se de uma forma muito cenográfica de presença, em que se pode dançar, pintar murais com alusões ao andino. Então, por um lado, a visibilização é muitas vezes reduzida à folclorização, e, por outro, temos uma questão mais complexa da visibilização que é o paradoxo entre visibilização e marcação. Em algumas situações de ensino e aprendizagem aparecia esta intencionalidade, por exemplo, quando as crianças falam dos costumes de seus pais, o que seria um ato docente de valorizar uma presença tradicionalmente negada dentro da escola. Em todo caso, falar deste saber indígena ou a própria referência ao boliviano aparecia associado, para outras crianças argentinas, a uma marca negativa. Assim, o que acontecia em muitos momentos é que estas crianças imigrantes não assumiam sua distintividade, pois assumi-las era assumir um estigma. Então, às vezes, a visibilização construída pelos docentes com a melhor das intenções pode ter efeitos negativos. Quero dizer que esta presença tem que ir muito além do escolher um dia para falar de referências étnicas, para trazer objetos étnicos de casa. Porque, se é apenas isto, o efeito pode ser contraproducente. Mas não se isto se insere em um processo mais longo, mais sustentável, de onde múltiplos pontos sustentem a necessidade de se revisar as valorizações estabelecidas, e não apenas as folclorizadas.

Kelly Russo – São festividades, como ocorre no Brasil, datas específicas para tratar dos temas que terminam folclorizando a questão sem discutir em profundidade sobre como inclui-las no processo pedagógico. Você fala dessa dialética entre visibilização e ocultamento, que também se dá dentro das próprias famílias. Este interesse em se reconhecer como boliviano, mas também, nestes momentos, se sentir exposto na escola. Como se dá este processo de marcar e viver o “ser estrangeiro”, por exemplo, em um bairro marcado por um forte processo de afirmação identitária?

Gabriela Novaro – Esta tensão ou alternância entre visibilizar-se e ocultar-se, em muitos casos, nos fala do que estes grupos esperam que aconteça na escola. Tanto para a população indígena quanto para a imigrante temos uma pergunta básica: se a escola é o lugar para visibilizar-se. Para estes coletivos, indígenas e imigrantes, a pergunta é se a escola é o espaço para transitar em sua distintividade, ou se a escola, tal como funciona, é o espaço para acessar alguns conhecimentos instrumentais que lhes permitam, no caso dos indígenas e dos imigrantes, o acesso à escrita, ao cálculo e à reivindicação de certos direitos. Se é possível, no contexto onde vivemos, uma escola onde ambas as coisas tenham lugar. Precisamos rever preconceitos sobre o que deveria ser a escola em termos ideais, e compreender o que a escola atual e real pode ser para estes coletivos em termos de acesso às questões que reivindicam.

Assim, a pergunta retorna: a escola é um espaço para afirmar uma marca distinta das referências de identificação hegemônica, ou estas distintividades se dão também em outros espaços afirmativos? Temos uma questão que, por vezes, não é incorporada pela docência, de que a educação é mais do que a escola, que há outros trajetos formativos para as crianças que são válidos e que não acontecem na escola. Então, a partir daí, perguntar-se sobre o que se visibiliza na escola, e para quê? Em todo caso, o que se visibilizará em outros espaços formativos das crianças, ou associados à construção e formação de suas subjetividades? Então, claramente, o feito de ocultar algo, de negá-lo, deveria ser um problema. Agora, isso não significa que necessariamente toda a formação de um sujeito tenha que ocorrer na escola. Ou que os coletivos indígenas e imigrantes tenham que reivindicar necessariamente que todos os seus saberes passem pela escola. Porque, mesmo aí, há posições muito distintas. Há coletivos, tanto imigrantes quanto indígenas, para os quais existem experiências formativas das crianças que não têm que transcorrer na escola. Há outros laços sociais válidos, outros espaços comunitários que sustentam a experiência formativa e que não são a escola. O que não implica que a escola tenha que ser negada e muito menos desvalorizada.

Sobre a questão da visibilização e do ocultamento, algumas escolas têm uma posição mais favorável a mostrar os pertencimentos, e outras não. O problema é que esta dualidade se associa muitas vezes a situações em que as escolas que tendem a mostrá-los são mais degradadas em termos de equipamento, estabilidade, corpo docente etc. Distintos investigadores advertem que, frequentemente, nas escolas que se pode definir como interculturais, a qualidade educativa é muito menos garantida do que naquelas que se definem por um projeto de equiparação. E os próprios coletivos imigrantes e indígenas tendem a buscar mais as escolas que têm um perfil de equiparação. Então o problema não é só o de visibilizar ou não visibilizar, mas muitas vezes as instituições que visibilizam são as menos cuidadas em termos de estrutura e estabilidade. Então não se sabe se são evitadas pela população indígena e imigrante porque visibilizam, ou porque são deterioradas em termos de qualidade educativa.

 

Gabriela Novaro gabriela.novaro@gmail.com
Doutora em Antropologia. Pesquisadora independente do CONICET. Professora da Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Pesquisa sobre Antropologia e Educação, interculturalidade, migração e educação. Participou de programas de Educação Intercultural e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação entre 2000 e 2008.
Kelly Russo kellyrussobr@gmail.com
Doutora em Educação Brasileira. Professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, da Universidade do Rio de Janeiro, Brasil. Integra o Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas e coordena o Programa Movimentos Sociais, Diferenças e Educação, e o Núcleo de Estudos sobre Povos Indígenas e Educação.