Foto: Hélio Oiticica

Crianças e adolescentes indígenas e imigrantes no contexto escolar argentino.

Kelly Russo – Processo similar ocorre no Brasil, na educação intercultural e indígena. Você faz referência a outros espaços formativos que muitas vezes são ignorados porque acabamos centralizando muito a atenção na escola. Com todas estas transformações da sociedade da informação, a escola ainda se constitui em um ambiente central neste processo de desenvolvimento de crianças e adolescentes?

Gabriela Novaro – Central em nossas sociedades sim, no sentido de que é o espaço legítimo para a transmissão de conhecimento entre as gerações. Agora, central não quer dizer único. A escola tem esta legitimidade, mas esta muitas vezes foi constituída deslegitimando outras propostas formativas. Por isso me parece que um dos desafios fundamentais é atender ao conteúdo formativo de outros trajetos de crianças e jovens. E, por outro lado, é interessante perceber como as formas escolares penetram nas experiências formativas não escolares. Espaços comunitários, por exemplo, atravessados pela lógica avaliativa e certificadora das escolas… assim como a escola atravessada pela lógica de outros espaços formativos. O que acontece na escola não é tão e unicamente escolar, e o que acontece nos espaços formativos não escolares está atravessado pela forma escolar. É importante compreender estes atravessamentos que, às vezes, são tão ricos; outras vezes, tão complicados.

Kelly Russo – E na formação destas crianças e jovens com quem você trabalhou, quais seriam estes outros espaços percebidos como importantes de formação e afirmação de identidades específicas?

Gabriela Novaro – Poderia exemplificar com o bairro com o qual estou trabalhando, que é um bairro localizado a cinquenta quilômetros do centro de Buenos Aires, com um percentual muito grande de população proveniente da Bolívia. Há uma presença muito forte de certas organizações comunitárias de imigrantes que geram permanentemente propostas para as novas gerações, como praticar esportes, incluir-se em um grupo de dança ou música ou mesmo fazer parte da formação política das organizações. Isto envolve muitas crianças e jovens, e não implica que não possam frequentar a escola e desenvolver sua formação, nem que a experiência comunitária se coloque em oposição à escolaridade. A questão é que, para a escola, estas outras experiências das crianças em âmbito comunitário são praticamente desconhecidas; ou não se conhece, ou o conteúdo formativo destas experiências é negado. Assim, me parece que há uma dívida do sistema escolar em reconhecer esta formação que as crianças desenvolvem fora da escola.

E depois há uma questão muito discutível, e tenho certeza de que no Brasil também é muito discutível, quando estas famílias e organizações comunitárias convocam crianças e jovens em torno das experiências de aprendizagem vinculadas a práticas produtivas. Porque se entra em toda a discussão em torno do discurso abolicionista do trabalho infantil e ao fato de que certas famílias e organizações estão apostando na transmissão de valores vinculados, por exemplo, à produção doméstica, que dispara todo um debate se são ou não formas de trabalho; mas que, em todo caso, também contribui na identificação desta criança como uma criança indígena de tal comunidade que desenvolve tal atividade produtiva, ou de tal grupo migrante que se vincula à produção e venda, por exemplo, de hortaliças. Se espera que a partir de certa idade as crianças tenham alguma participação e acompanhem a produção dos adultos. Este debate se insere na tensão sobre se estas atividades são ou não atividades de formação quando não têm um conteúdo de exploração das crianças. Creio que é uma pergunta aberta, que suscita múltiplos debates, mas que deixa clara a diversidade de situações. E muitas vezes a escola e o discurso institucional, na Argentina, têm sido muito persecutório sobre isto e tem se distanciado das imagens de infância e de juventude e da noção de sujeito destes coletivos.

Kelly Russo – São muitos os desafios para uma política educacional voltada a uma perspectiva intercultural, tanto no Brasil quanto na Argentina. Assim, gostaria que você nos falasse quais as conquistas que você considera mais relevantes para as políticas interculturais nos últimos anos, na Argentina, e quais os desafios que você percebe hoje, diante dessa multiplicidade de situações e identidades.

Gabriela Novaro – É importante situar a conjuntura política que temos vivido, tanto no Brasil quanto na Argentina. Faço parte de um grupo de pesquisadores que, até o ano passado, tinha certa afinidade com políticas educativas que permitiam a presença da interculturalidade, mas temos advertido sobre o significado limitado destas políticas. Por exemplo, no caso da interculturalidade, na nova lei nacional educativa de 2006, a interculturalidade se limita apenas à questão da população indígena. E, sobretudo, os projetos se sustentavam em apoio a experiências de vinculação à aprendizagem da língua em contextos rurais e somente na educação primária. E havia muita discussão sobre o que se passava com a população indígena das cidades no ensino médio, por exemplo. E muita limitação para que a interculturalidade fosse um enfoque das políticas em geral. Houve avanços em certos aspectos, porém deveríamos seguir problematizando, por exemplo, o modo como se define o “comum” na Argentina, na educação comum, o que aqui se chamava Núcleos de Aprendizagem Prioritária, o que se supunha que todas as crianças têm que conhecer. A interculturalidade se legitima como uma modalidade específica; houve avanços que não terminaram de colher todo o fruto que poderiam ter colhido do fato de que a diversidade enriquece a definição do comum. Na definição de comum na Argentina, ao menos, e também digo por ter integrado as áreas de desenvolvimento curricular no Ministério da Educação, quem definiu o que deveriam aprender todas as crianças foram os especialistas das disciplinas acadêmicas. Outros níveis de consulta e de escuta de outras vozes sociais foram muito limitados. Então, todo este discurso da interculturalidade serviu como forma de legitimar outras vozes, outras presenças, mas, ressalto, com limites.

Com o novo panorama político, temos que fazer outras perguntas. Estes paradigmas ainda são muito recentes na educação e seus efeitos não são tão claros ainda. O que percebemos hoje é a instalação de um discurso da eficiência, de custo-benefício, em que parece que o principal é a lógica de mercado e a retórica empresarial vem permeando muitos espaços de definição de políticas estatais. E também, no que diz respeito ao trabalho da população de imigrantes latino-americanos, vai haver algum efeito com os reordenamentos que estão sendo feitos pelo novo governo, em suas alianças estratégicas, que muito possivelmente vai deixar de ressaltar a prioridade dos laços com os países latino-americanos para se associar a uma ideia de múltiplos laços, com o que outras redes serão priorizadas. Se isto vai ter um efeito imediato dependerá também de que os movimentos que reivindicam direitos se coloquem entre uma normativa migratória e uma normativa educativa que garante certos direitos e teremos que ver como se definem estas disputas. No Brasil, esta também é uma questão que se abre e que nos convoca, tanto os movimentos sociais como os espaços de pesquisa e de definição de políticas e os espaços educativos.

Kelly Russo – No Brasil também estamos vivendo uma onda conservadora muito forte, que ameaça seriamente as conquistas, mas há uma grande resistência por parte de movimentos sociais, universidades, que vêm atuando pela manutenção dos direitos conquistados. A minha última pergunta seria sobre como estes grupos, que apontam para o tema do reconhecimento, da diferença, do direito à identidade, estão se organizando para tentar resistir a este modelo mercantilista que tenta se constituir como hegemônico na Argentina? Como você percebe estas resistências, estas lutas?

Gabriela Novaro – No momento, a visibilidade destas resistências tem sido bastante notada no nível das universidades. Agora, com respeito aos outros grupos, no caso dos coletivos imigrantes, por exemplo, estão gerando reposicionamentos, dado que isto tem muita relação com a situação de cada localidade. Entretanto, há direitos que foram sancionados em leis, e por mais que não confiemos sempre nas leis, me parece um marco que pode ser reivindicado frente a uma questão que foi explicitada, ou seja, discursos historicamente muito discriminadores frente à população imigrante latino-americana. Bom, há uma lei que diz que a nenhuma criança pode ser negado o acesso à escola por mais que os documentos da família não tenham uma condição de regularidade. E se a reivindicação da lei não acompanha um movimento coletivo massivo, ela se torna um protesto individual por direitos. Foram produzidos laços suficientemente fortes nestes anos, em alguns espaços, tanto entre a população indígena quanto entre a imigrante, que dificultam o caminho dos movimentos contrários a todas estas leis. O que se coloca é que temos que repensar as perguntas que fazemos. Até o ano passado nos perguntávamos “como seguir avançando” e “como se superam estas limitações”? Agora a pergunta é “como se resiste a que se retirem direitos que pareciam garantidos”?

Kelly Russo – Gostaria muito de agradecer mais uma vez por esta conversa, foi um prazer conhecer mais do seu trabalho.

Gabriela Novaro – Para mim foi um prazer, sobretudo, poder trocar experiências com vocês do Brasil. Estive em São Paulo no início deste ano e já percebia situações muito complexas; agora acabei de vir da Bolívia, onde também percebi situações muito complexas; e me parece que uma das coisas que podemos fazer, frente a estes contextos que se apresentam como bastante adversos, é justamente manter os laços entre os países. E entender que os discursos de certas unidades e tendências em comum não foram somente retóricas dos governos, mas correspondem também a posições dos sujeitos. No âmbito da pesquisa, da docência e da reflexão, temos que, de alguma maneira, resistir com propostas coletivas, redes coletivas que sejam mais contundentes que a queixa individual. Espero que este tipo de atividade sirva para estas aproximações.

Palavras-chave: educação intercultural, infância, marcadores étnicos, indígenas, migrantes latino-americanos.

 

Gabriela Novaro gabriela.novaro@gmail.com
Doutora em Antropologia. Pesquisadora independente do CONICET. Professora da Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Pesquisa sobre Antropologia e Educação, interculturalidade, migração e educação. Participou de programas de Educação Intercultural e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação entre 2000 e 2008.
Kelly Russo kellyrussobr@gmail.com
Doutora em Educação Brasileira. Professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, da Universidade do Rio de Janeiro, Brasil. Integra o Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas e coordena o Programa Movimentos Sociais, Diferenças e Educação, e o Núcleo de Estudos sobre Povos Indígenas e Educação.