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Educação democrática, sem medo e sem mordaça

Jane Santos da Silva – Se a gente não contar os períodos dentro da Primeira República.

Gaudêncio Frigotto – Sem dúvida. E o caráter autoritário também se expressa de outra forma, pelo campo jurídico. O jurista Fábio Konder Comparato diz que, desde o Império, nós tivemos sempre duas constituições. Uma que incorpora na letra da lei sempre aspectos progressistas, aspectos das demandas populares. Mas, em seguida, existe uma constituição subliminar, que é manipulada pelas oligarquias e é essa que vale. Ele dá exemplos que estão na Constituição de 88: 1) o Marco Regulatório da Mídia; 2) o imposto de grandes fortunas; e 3) o uso do plebiscito e do referendo. Os parlamentares e mesmo setores do poder judiciário nunca moveram nada para que a mídia empresarial fosse regulada e nem sobre o imposto das grandes fortunas, reforma tributária, jurídica, política. Não é do interesse porque direta ou indiretamente eles estão implicados nisto que deveria ser regulado. Então, essa marca – você tem razão: há uma reiteração.

Entretanto, como afirmou o sociólogo Roberto Dutra3, tão logo houve a eleição: pela primeira vez, nós temos forças de extrema direita legalizadas pelo voto. E eu diria o seguinte: o fundamentalismo religioso cresce com aquilo que o próprio Raymond Williams fala num outro livro4: ele analisa que toda vez que existe um momento de pouca visibilidade, de insegurança em relação ao futuro, surgem os mais diferentes novos profetas, novas seitas etc. E, se você perceber, as igrejas neo-pentecostais, essas que não têm corpo teológico, são vendilhões do templo, são – como dizia o ex-governador Leonel de Moura Brizola – adoradores de bezerros de ouro que querem uma rádio ou uma televisão para poder ganhar dinheiro. Então, isso – lembrando os teólogos da morte de Deus, os protestantes da morte de Deus dos anos 70, 80 – são seitas contra o cristianismo, contra exatamente quem tem uma fé de fato. Manipulam sobre as categorias de exorcismo, prosperidade e milagre a boa fé do povo. A chamada teologia da prosperidade, que não tem nada de teologia, é “mercado da prosperidade”. Isto nós não conhecíamos e está relacionado às próprias crises, cada vez mais agudas, às crises do próprio sistema capitalista, as quais se resolvem hoje pela violência: violência simbólica, violência de guerras, violência de genocídios, como nós vivemos aqui no Brasil, especialmente contra os jovens pobres e negros.

Jane Santos da Silva – Professor, do ponto de vista internacional – para a gente pensar o fora do Brasil –, nesse tempo histórico que a gente está, estamos vendo também situações iguais ou semelhantes? E como elas estão se dando?

Gaudêncio Frigotto – Sim, do ponto de vista daquilo que Boaventura de Sousa Santos denomina de um clima de fascismo societal. Trata-se de um fenômeno que se alastra no mundo com o crescimento de forças sociais e partidos de extrema direita. A hipótese que desenvolvo dentro das leituras que faço é a de que isso está relacionado a formas cada vez menos viáveis, dentro da democracia real, de resolver a crise do capitalismo. Isso é abordado na minha própria tese de doutorado, que trabalha a ideia do capital humano. Os economistas, que começaram a pensar a educação como capital, como uma galinha dos ovos de ouro, para resolver o problema dos países subdesenvolvidos e da pobreza pela mobilidade social, não eram maquiavélicos, eles acreditavam que, pela educação, você incluía a todos. Como eles não analisam as relações sociais, entendem que os escravos, dias depois da abolição da escravidão, tinham igualdade de condições em relação aos seus senhores. Evidentemente que a educação não vai funcionar, não porque ela não seja importante, mas porque as pessoas não conseguem uma boa educação.

Jane Santos da Silva – O acesso.

Gaudêncio Frigotto – É, também, mas não apenas o acesso. Há determinações mais profundas. A partir do fim do socialismo real e com a apropriação privada de um salto tecnológico que muda a forma de se relacionar com a matéria, enfim, o capitalismo já não acredita que seja possível integrar a todos. Então, existem partes do mundo que o capitalismo já abandonou: parte da África, por exemplo. Mas também abandonou à própria sorte milhões de refugiados e os que vivem abaixo do nível de pobreza absoluta. Por isso, o vocabulário pedagógico mudou. A gente queria uma educação de qualidade, agora, quer qualidade total. A gente queria gente qualificada, agora, quer um indivíduo competente. A gente discutia emprego, agora, falamos em empregabilidade. Nesse contexto, com a crise dos povos imigrantes, da pobreza – não só da África, mas do Oriente Médio etc. –, há um oportunismo de forças de extrema direita dizendo que o problema são os pobres. E, portanto, na Alemanha, agora, há poucos dias, teve uma grande manifestação antinazista. Mas a questão do criacionismo não está posta nesses países, embora a Igreja Universal, que é marca brasileira, esteja em vários países do mundo, exatamente junto aos pobres, ou dominantemente junto aos pobres. Entendo que o fenômeno é mundial e que a forma de enfrentar a crise do capital e do capitalismo é cada vez mais violenta e cada vez mais excludente e, portanto, as teses de extrema direita ganham força. No Brasil, estas teses se manifestaram de forma crescente a partir de 2013.

Jane Santos da Silva – E essa força atinge também a educação?

Gaudêncio Frigotto – Absolutamente. E essa questão do capital humano foi aplicada, sobretudo, nos países pobres, mas não só. Ela nasceu nos países centrais, Estados Unidos, Inglaterra etc., mas com vistas aos países da periferia. Com a própria crise do capitalismo, elas ressurgem. Há um grupo de pesquisadores de uma universidade alemã que elege a cada ano uma não-palavra para dizer algo que degrada o ser humano. É a criação de uma palavra que tenha as características de degradar a vida humana. Em 2004, se eu não me engano, foi eleita a palavra capital humano. Existe então um componente de mercantilização da educação. Aqui no Brasil, agora com as contrarreformas do golpe de estado de 2016, a mercantilização é total.

Na Constituição [brasileira] de 1988, o ideário iluminista de escola pública, universal, gratuita e laica foi incorporado. Isso vale dizer que a educação básica se constitui num direito social e subjetivo. Isto significa que povos originários (indígenas, quilombolas) têm direito não apenas de serem incluídos, mas de reconhecer o seu idioma, seus deuses, sua cultura. Do mesmo modo, para os portadores de necessidades especiais, que têm o direito à escola pública de igual qualidade. Portanto, ali ainda há uma perspectiva de direito universal a uma escola de qualidade para todos, mesmo que estejamos numa sociedade de classes. As oligarquias puseram em prática, e de forma crescente, seus interesses privatistas. Agora, não há lugar para todos para uma educação de qualidade. Aquilo que na década de 40 se dizia da formação para o SENAI, depois do Sistema S5, que tinha que ser uma educação que serve ao industrial, portanto ao mundo privado, hoje as contrarreformas na educação generalizam para o que serve ao mercado. Os maiores grupos empresariais do mundo estão aqui. E é também um controle privado, portanto ideológico, do conteúdo e da forma de educar. Aí que entra a junção do Escola sem Partido com a privataria na educação. O controle ideológico da escola é um movimento que tem suas raízes nas relações sociais. Na disputa, portanto, do projeto de sociedade e de educação.

Andréa Martello – Eu estou pensando aqui nesse movimento de mercantilização do saber, que é algo da nossa era tecnológica. O senhor está falando de uma forma como se a educação tivesse antes um propósito emancipador, de criar sujeitos de direito, cidadãos e a educação passa a ser algo de um saber reduzido, um saber que vai ser somente operacional.

Gaudêncio Frigotto – Sim, é um saber pragmático, um saber trabalhado de forma diversa de acordo com os grupos sociais. Ou seja, nós voltamos a uma espécie de visão malthusiana da sociedade. Malthus6 dizia que era necessário controlar a natalidade dos pobres ou então estimular as pragas para facilitar o aumento de sua mortalidade, e assim os filhos da classe dele poderiam casar cedo e ter filhos e, mesmo assim, poucos morreriam de fome. Ou como dizia Desttut de Tracy7, no final do século XVIII, que todo sistema educacional bem administrado deveria ter dois sistemas: um restrito, prático e rápido, para aqueles que deveriam aprender logo o duro ofício do trabalho e que estavam destinados à dureza do trabalho. E outro amplo e demorado, para quem tinha tempo de estudar e que estava destinado a ser dirigente.

Vemos, então, que a estrutura dual da educação é inerente à sociedade de classes, sob o capitalismo. Mesmo a França, que foi a mais republicana da modernidade, foi lá que começaram os estudos da dualidade, com Jean-Claude Passeron, Pierre Bourdieu etc. Mas, hoje, nós temos uma diferenciação dentro da dualidade. No fundo, os organismos internacionais sugerem que os sistemas educacionais devem oferecer modalidades tão diferentes quanto são os diferentes grupos sociais. Há muitos anos pesquiso o ensino médio. Mas a pergunta pertinente é: que ensino médio? O Ensino Médio das escolas particulares, mas dentro das escolas particulares, as escolas que de fato estão no top; o Ensino Médio da Escola Alemã ou Americana, o Ensino Médio dos Institutos Federais, do Colégio Pedro II, o Ensino Médio, enfim, estadual, Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio (Proeja), concomitante, subsequente, enfim, é uma infinidade. A mensagem que os organismos que representam o capital e o mercado passam é: não há lugar para todos. No fundo, essa também é uma estratégia política. Que é dizer: “bom, você teve chance, agora o problema é seu”. No fundo, é uma coisa realmente cínica.

3 – Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/584206-a-maior-vitoria-da-direita-na-historia-politica-brasileira-entrevista-especial-com-roberto-dutra>. Acesso em: 30 out. 2018
4 – WILLIAMS, Raymond. Towards 2000. London: Chatto & Windus, 1983.
5 – Conjunto de nove instituições de ensino profissionalizante, ou seja, de interesse de categorias profissionais, estabelecidas pela Constituição brasileira: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR); Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC); Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP); Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); Serviço Social da Indústria (SESI); Serviço Social do Transporte (SEST); Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT); e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).
6 – MALTHUS, Thomas Robert. Essay on the Principle of Population. Vol. 2. Nova York, 1961, p. 179-80. In: HUNT & SHERMAN. História do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
7 – DESTUTT de TRACY, Antoine. Èlementes d’ideologie. Paris: Coutecier Imprimeurs Librarie.

Gaudêncio Frigotto gfrigotto@globo.com
Graduado e Bacharel em Filosofia e graduado em Pedagogia pela UNIJUI, Brasil, mestre em Administração de Sistemas Educacionais pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Brasil, e doutor em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil, e professor Titular (aposentado) em Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.
Jane Santos da Silva jane64santos@gmail.com
Bacharel e licenciada em História e em Ciências Sociais. Mestre em Política Social e Trabalho e doutora em Serviço Social.
Atualmente é docente da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Brasil, no Departamento de Fundamentos da Educação da Escola de Educação. Sua pesquisa concentra-se na área de história das políticas educacionais.
Andréa Martello deamartello@gmail.com
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora Adjunta do Departamento de Fundamentos da Educação, na Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil. Realiza pesquisa e extensão na área da infância, juventude e formação de professores.