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Educação democrática, sem medo e sem mordaça

Andréa Martello– Eu ia perguntar isso, professor. Até que ponto esses professores se veem, não digo seduzidos, mas compactuando com essa visão que vem da mercantilização do saber? Isso às vezes me preocupa mais do que o professor que sabe o que está acontecendo e está acuado, mas vai procurar formas de resistir, de se defender. Mas têm aqueles que às vezes agem de outra forma, como se estivessem defendendo outro lado, defendendo posturas da eliminação da filosofia e da sociologia, por exemplo.

Gaudêncio Frigotto – É, acho que isso diferencia muito de região para região e eu diria que tem a ver com uma sociedade ultraconservadora. A questão da religião pesa muito. Determinada forma de religião, não a religião em si. Religião é uma escolha privada e legítima, assim como o fato de ser agnóstico ou ateu. Mas percebo, por um lado, o conservadorismo e, de outro, pouca cultura política. Não no sentido de partido, mas no sentido sociológico. Como diz Rancière, política é a luta, é a consciência de que você está sendo lesado em um direito e, portanto, você se organiza para pôr na agenda a conquista desse direito. Creio que nós deveríamos fazer uma profunda revisão, nas universidades, na forma como estamos formando esse professor. Talvez a gente tenha dado pouca base, seja ainda uma formação em que falta aquilo que o Florestan Fernandes diz, sobre dar os instrumentos para que esse professor analise a realidade onde ele está. Talvez, o nosso discurso seja progressista, mas os instrumentos para ler a realidade ainda não. A questão coletiva que talvez tenhamos que ter presente é: o que o professor tem que dominar do ponto de vista de sua formação, para ter uma  leitura crítica da realidade? Entendo que os sindicatos também devem ter um papel importante em relação ao professor. Por exemplo, não por acaso, o Paraná é um dos estados que mais avançou e onde também as ocupações das escolas foram extensivas. Por quê? Porque lá o sindicato tem um importante papel político por todo o estado, eles têm amplo material de formação política.

O professor está desprotegido das ferramentas de análise e sob um forte peso conservador, exatamente por falta dessa análise política. Tenho uma percepção a partir de uma pesquisa nos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia. São mais de seiscentos campi e, destes, a maioria no interior. Uma política de interiorização do ensino público de nível médio e superior sem precedentes. Os professores são jovens preparados nas universidades em todas as áreas de conhecimento e a maior parte com mestrado ou doutorado, ganhando um salário digno. A visão de sociedade e a cultura política são sofríveis. Irão pagar um preço alto no futuro próximo por esta alienação política. O mesmo se pode falar de grande parte dos professores universitários. Nossa frágil democracia e cultura autoritária sabotam a cultura política não só das massas, mas dos grupos sociais cultos. A visão política e social mais medíocre é da classe média, sobretudo em seus segmentos mais ricos. Papagaios de telejornal.

Andréa Martello – Mesmo tendo todos os recursos disponíveis.

Gaudêncio Frigotto – Recentemente, fui ao Mato Grosso dar uma conferência pós-eleição. O tema era sobre ensino médio integrado, mas, de imediato, mostrei que as contrarreformas na educação e o que sinalizam as forças sociais eleitas para governar o país a partir de 2019 têm dois focos fundamentais: acabar com o integrado e acabar com essa brincadeira de muita gente pesquisando nas universidades e nos Institutos Federais. A tese conservadora em voga é: os institutos vão ter que fazer a formação profissional e ponto! Vai atingi-los na medula! E muitos apoiaram abertamente essas forças sociais.

Acabo de divulgar a publicação do livro por mim organizado a partir de uma pesquisa ao longo de cinco anos – Os institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento. O livro mostra, como assinalei acima, que se trata da mais ampla política pública que houve no Brasil de interiorização do ensino médio para cima. O que significa acabar com isso, do ponto de vista do direito de milhares de pessoas? Lá em Roraima, existem 20 comunidades de povos originários dentro do Instituto Federal, falando dialetos diferentes. Você vai acabar com isso? Querem acabar, e vão acabar se deixarmos! Então, o estrago está feito, porque é a pedagogia da exclusão e do medo que querem impor. Mas não será sem embate, sem luta, sem resistência.

O Noam Chomsky, numa conferência em Havana, em 2006, disse que o mundo hoje é governado pela violência e o medo. E o Antônio Cândido tem um texto, de 19728, “O caráter da repressão”, que foi reeditado agora no contexto do golpe, onde ele cita ao final o pensador Alfred de Vigny que, na prisão, dizia: “Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo”. É interessante que o Mia Couto escreve um pequeno texto, “Murar o medo”, onde cita Eduardo Galeano ao final, que diz: “os civis  têm medo dos militares, os militares dos civis, os militares têm medo que faltem armas, as armas têm medo da falta de guerras, quem tem emprego tem medo de perder o emprego. E se calhar, em bom português, há aqueles que têm medo que o medo acabe”9. Em minhas conferências, sempre lembro que individualmente a gente tem medo e, por isso, nós temos que reforçar o coletivo, as instituições. Isso que a filósofa Marilena Chauí disse na USP recentemente: “nós não podemos cair na cilada de agora ir para rua gritar. Não é a hora! É hora de nos recolhermos e de nos protegermos na institucionalidade”10. Sindicatos têm que ter força jurídica, as instituições têm que ter força jurídica.

Andréa Martello – Professor, eu fico sempre me perguntando: que efeitos isso vai ter para a infância e para a juventude? Dado que virá esse novo governo, haverá um apoio político mais forte a essas ideias. Como o senhor vê essa cultura do medo? É uma cultura do medo que vai se propagar? Que efeitos em termos psíquicos ou subjetivos isso tem para infância e para juventude?

Gaudêncio Frigotto – Esse é um tema que temos que levar a sério. Vejo duas, em especial para a juventude, mas que já atingem a infância. A cultura da prepotência tem surgido mais do que o medo entre os jovens, na minha visão. E isso é um crime!  Tenho alguns relatos sobre isso. Uma professora de um CAP (Colégio de Aplicação Pedagógica) me contou sobre um grupo de seis ou sete alunos, do quinto ano do ensino fundamental, que, no dia seguinte (às eleições presidenciais), apareceram com bottons e  uma agressividade com os outros alunos. Até uma aluna dizer: “gente, nós somos colegas! O que é isso?!” Então, essa professora fantástica disse para esses meninos o seguinte: “o que vocês sabem sobre comunismo? O que é a suástica?”. E foi explicando. Esses meninos ficaram em silêncio e se deram conta de algo que errado estava acontecendo com eles. Ou então, no caso em que um jovem entra num Instituto Federal, no dia seguinte, com a bandeira do Brasil, com as medalhas. E, no final da aula, ele pergunta para o professor de história: “professor, mas por que o senhor não falou do presidente eleito? O senhor é marxista, é comunista…”. E o professor perguntou: “vem cá: o que é comunismo para você? E porque eu deveria falar do presidente se a matéria é outra?” Mas ele não sabia nada! Então, é uma mutilação de juventude e de infância naquilo que é mais fundamental. Cria-se um sentimento de ódio, um sentimento de eliminar, de não debater, não aceitar a pluralidade, que é sadia. Criou-se o ódio ao outro, ao diferente. E começa-se a eliminar pessoas pelo fato de serem diferentes.

Nas vésperas da eleição presidencial de 2018, o clima de rua estava complicadíssimo. Ao ponto de um cara chegar para um gay e dizer: “os seus dias estão contados!”. Ou o caso de uma menina que num dia estava aqui na universidade tremendo, pois havia sido ameaçada na rua pelo tipo de cabelo e pela cor da pele. É impressionante, pois isso não acabou. Não acabou inclusive por autoridades recém eleitas. Valeria à pena ver as falas que estão no YouTube do evento organizado por psicólogos e artistas: “Precisamos falar sobre o fascismo!”. Neste debate, fiz uma pequena análise sobre este tema. O perverso é que se está formando atitudes neofascistas na infância e juventude.

Jane Santos da Silva – Isso lembra muito o modelo do Hitler!

Gaudêncio Frigotto – Isso são ovos de serpente. Mark Bray11, historiador americano, escreveu cinco lições para os antifascistas. Acho até que ele pesquisa na área de educação. Ele disse que é preciso ver, nos sinais menos evidentes, o fascismo. O racismo nosso que está presente já é um elemento estrutural! Mas também o desprezo e ódio aos grupos LGBT, aos pobres e às opções políticas de comunistas, socialistas ou ao pensamento crítico em geral.

Jane Santos da Silva – Nós teríamos  três elementos que são muito fortes no fascismo: primeiro o racismo, o segundo é a questão do machismo e da perseguição à mulher, e o terceiro é a homofobia. Esses três parecem que viraram três pilares para o fascismo.

Gaudêncio Frigotto – Um elemento, que também estava em Hitler, era o ódio ao imigrante. Começou por ali. Podemos pensar, no caso do Brasil, que isso se apresenta em relação ao nordestino, em relação aos venezuelanos e aos cubanos. A “expulsão” ou retirada forçada dos médicos cubanos e agora o não convite aos governos da Venezuela e de Cuba para a posse presidencial são signos preocupantes.

8 – CÂNDIDO, Antônio. O caráter da repressão. Disponível em <http://www.outraspalavras.net/Brasil>. Acesso em: 13 abr. 2017. Texto originariamente publicado em 1972, no Jornal Opinião.
9 – Disponível em <https://papodehomem.com.br>. Acesso em: 07 fev. 2017.
10 – Disponível em <https://www.fflch.usp.br/1034>. Acesso em: 20 out. 2018.
11 – BRAY, Mark. Cinco lições para antifascistas. Disponível em <https://revistaserrote.com.br/2018/03/cinco-licoes-de-historia-para-antifascistas-por-mark-bray>. Acesso em: 20 out. 2018

Gaudêncio Frigotto gfrigotto@globo.com
Graduado e Bacharel em Filosofia e graduado em Pedagogia pela UNIJUI, Brasil, mestre em Administração de Sistemas Educacionais pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Brasil, e doutor em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil, e professor Titular (aposentado) em Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.
Jane Santos da Silva jane64santos@gmail.com
Bacharel e licenciada em História e em Ciências Sociais. Mestre em Política Social e Trabalho e doutora em Serviço Social.
Atualmente é docente da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Brasil, no Departamento de Fundamentos da Educação da Escola de Educação. Sua pesquisa concentra-se na área de história das políticas educacionais.
Andréa Martello deamartello@gmail.com
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora Adjunta do Departamento de Fundamentos da Educação, na Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil. Realiza pesquisa e extensão na área da infância, juventude e formação de professores.