Infancia / Dictadura. Testigos y actores (1973-1990), de Patricia Castillo- Gallardo

Resenha por Camilo Bácares Jara

“Como alguém pode fazer isso?” Lembranças da infância na ditadura cívico-militar no Chile.

Quanto sabemos sobre a configuração das infâncias durante as ditaduras militares que devastaram América Latina na segunda metade do século XX? O que conhecemos dos seus efeitos específicos nas crianças e adolescentes? Como eles percebiam essas épocas e como as encararam? O que pensavam da violência que se fazia cotidiana, permanente, estrutural? Através de que a capturaram, a registraram, a imprimiram para a posteridade?

Certamente, o conhecimento e as pesquisas interessadas em dar luz sobre esses interrogantes são escassas, quase nulas e quando existem, são repetitivas da postura da vitimização das crianças e adolescentes. Por exemplo, para a comissão da verdade do Paraguai se conhece que os torturadores do regime de Stroessner recorriam à tortura de filhos, frente aos pais, que eram acusados de serem inimigos da institucionalidade para quebrá-los (Comisión Verdad y Justicia, 2008). De fato, a reflexão e os estudos da memória sobre as infâncias surgidas nas ditaduras, das formas e expressões que adotaram nesses contextos, são pouco conhecidas na América Latina. Naturalmente, no continente já existem alguns antecedentes e o que poderia ser um caminho aberto por um número reduzido de pesquisadores que recorrendo à retrospeção oral deram pistas, entre muitas coisas, sobre a cotidianidade da infância nos anos da ditadura argentina (Llobet, 2015a, 2015b, 2016), sobre a vivência da violência política na Colômbia dos anos cinquenta e sessenta (Cárdenas, 2018; Pachón Castrillón, 2016; Uribe Alarcón, 2015), ou sobre as vicissitudes que passaram as crianças e adolescentes filhos de guerrilheiros no Uruguai (Vescovi, 1997).

Mesmo assim, as pesquisas centradas em reconhecer a presença e a experiência das crianças e adolescentes nos totalitarismos, sem o recurso metodológico de rememorar a partir da idade adulta, teriam poucas manifestações. Os jornais e cartas resgatados por Casal (2017) e Sosenski (2015) acerca de crianças e adolescentes que registraram suas impressões em referência à guerra civil espanhola e à ditadura militar argentina são um insumo importante nesta perspectiva, pouco frequente em termos históricos. Acontece que, numa espécie de síntese das produções sobre as memórias vinculadas às ditaduras – o que, por sua vez, pode se fazer o relativo às guerras- , o comum num primeiro momento foi que se publicaram os textos relatados pelos perpetradores para serem vistos como heróis ou para limpar sua imagem por seus crimes (Noel Moral, 1989; Pinochet Ugarte, 1990; Somoza Debayle, 1980), depois a das vítimas que viveram na própria carne essas violências como provam Levi (1989, 2005), Semprún (1995), Améry (1999), Gavilán (2017, 2019), Suljagic (2007); até que nos últimos anos foram aparecendo as reflexões e anotações que as próprias crianças e adolescentes escreveram nos seus diários para permitirmos conhecer suas posturas, emoções, interpretações e resistências perante à violência vivida (Filipović, 1994; Filipović, Z. e Challenger, 2007).

Justamente, é nesta última linha -produto de um longo percurso histórico-, com suas particularidades e amplitudes, onde se inscreve o livro de Patricia Castillo Infância/Ditadura. Testemunhas e atores (1973-1990). Um livro, que como os bons livros não é definitivo, senão pelo contrário um insumo, uma chamada de atenção e uma inspiração para outros trabalhos, assim como, uma interpelação direta para recuperar o passado mediante as produções das crianças e adolescentes e para repensar a memória, a violência política, o autoritarismo e os enclaves ditatoriais por fora das noções hegemônicas que determinam as definições sobre as infâncias.

Podemos iniciar dizendo que este livro -que contem e problematiza diários, cartas, anotações, postais, desenhos e fotos de crianças e adolescentes exilados e presentes durante a ditadura cívico-militar de Pinochet que foram expostas no Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Santiago de Chile em 2016- enfrenta várias resistências muito instaladas. Daí sua importância e sua necessária revisão, leitura e continuidade epistêmica, política, curatorial e prática.

Para começar, Castillo refuta o posicionamento de que as vozes e depoimentos que as crianças portam sejam irrelevantes e desnecessários para compreender a realidade social constituída pela violência castrense e estatal. Recorde-se que a as correntes que trabalham para universalizar as teses de que todas as crianças e adolescentes são egocêntricos, tergiversadores e fabuladores têm ganhado terreno, pelo que, suas narrativas são chamadas de imprecisas e geralmente são rejeitadas para falar de uma violência particular. O que tem acontecido quase sempre em cenários de justiça transicional diz muito ao respeito (Bácares, 2019). Mas, Castillo com empenho demonstra que as crianças e adolescentes habitam, criam e recriam as coerções e notícias que se apresentaram na ditadura, que têm uma leitura única do acontecido. Aliás, “na sua condição de testemunhas, iluminam questões particulares da experiência com a violência do Estado, assuntos aos quais não é possível chegar a partir dos relatos do mundo adulto” (Castillo Gallardo, 2019, p.23).

Por outro lado, no livro também há uma valiosa crítica à enraizada ideia de que as crianças e adolescentes são vulneráveis e vítimas sem poder sem ser mais nada, especialmente, quando devêm de famílias atingidas diretamente pela violência do estabelecimento. Geralmente, as categorias de estresse pós-traumático e a da transmissão intergeracional do trauma abandonaram essa presunção, que ignora seu funcionamento singular e como as gerações posteriores têm o arbítrio de reinterpretar, militar e viver à sua vontade a história dos seus seres queridos. De qualquer maneira, a noção de segunda geração das ditaduras tem apoiado, sem querer, esta padronização, que se for lida em forma antinômica dá como efeito a negação da presença histórica das crianças e adolescentes e das suas produções nos anos da ditadura. Portanto, no livro são tão importantes como contraprovas do anterior os depoimentos contextuais das crianças e adolescentes que naquela época viveram em primeira pessoa o regime e que anotaram em diários suas percepções, os horários do toque de recolher, as proibições que os incluíam, os conflitos cotidianos, a morte de Allende, ou suas impressões sobre um acontecimento como o bombardeio ao palácio de governo; sobre este último, Francisca Márquez, uma menina de 12 anos, nos deixa como legado a seguinte lembrança derivada do seu entorno: “Parece que o incêndio em La Moneda é imenso. Por que da minha janela dá para ver a fumaça. Papai acredita que Allende e seus ministros iniciaram o incêndio. E assim podem sair por algum túnel secreto” (Castillo Gallardo, 2019, p.41).

Outro grande logro do livro de Castillo tem a ver com a desconstrução da dicotomia dependência independência que nos textos oficiais mapeiam à infância e a vida adulta. Curiosamente, tanto na guerra como na ditadura, esse marco tende a se quebrar e a se se desconstruir. No que diz respeito do militarismo que imperou no Chile, Castillo propõe que a violência do Estado infantilizou os adultos, tirando eles muitas vezes do seu papel protetor ao estar impossibilitados de controlar o que acontecia, e que, ao mesmo tempo, as crianças e adolescentes emergiram nas relações filiais como seus cuidadores, fosse mantendo sua “ingenuidade”, calando o que se sabia, estudando, ou perguntando pouco.
A isso tudo é preciso adicionar o grande sucesso e a aposta metodológica que dá origem ao livro. Basicamente, depois de buscar nos arquivos o que pudesse estar relacionado à experiência das crianças e adolescentes na ditadura chilena e depois de fazer uma chamada pública endereçada a todos aqueles que tivessem guardado as enunciações infantis depositadas em cartões, desenhos, áudios e diários de vida, Castillo e seus colaboradores, souberam superar com imaginação vários dilemas substanciais: o que fazer com o achado? Qual é o público ao qual destinar esses achados? Qual o valor do colhido? Qual abordagem outorgar ao material todo? Assim, o desenlace foi desacademizar a pesquisa -sem querer dizer que se desprendesse do seu rigor conceitual- no sentido de evadir a típica formatação de livro para especialistas. No final, a opção escolhida foi a de realizar uma curadoria ou uma exposição com uma vocação de “falar ao outro” (Castillo Gallardo, 2019, p.5), e nesse compromisso incorporar as produções infantis que estiveram resguardadas nos arquivos privados, a um relato histórico nacional que habilita “as palavras íntimas e anônimas em públicas e patrimoniais” (Castillo Gallardo, 2019, p.16). Além disso, como bônus, neste resgate se reafirmou recusar o relato vitimizante para que as pessoas não fossem só a se compadecer com os horrores sofridos pelas crianças e adolescentes, ao se dar a conhecer que nos 17 anos da ditadura chilena as mesmas crianças e adolescentes construíram dimensões afetivas de cuidado e integridade perante a violência estatal através de aniversários, viagens, amizades, militâncias, amores, etc.

Finalmente, este livro é recomendável porque é um texto íntimo, pessoal, sincero, um descenso e um ascenso, um peso que traz sua própria libertação. De fato, quem tem trabalhado com a violência política e infância, sabe bem que depois de percorrer esses dois fenômenos sociais a vida se torna diferente, dura, dolorosa, que num pedaço de nós como pesquisadores fica uma reivindicação por ser feita. Castillo sabe disso, e somos gratos a ela por ter evitado ocultá-lo.

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Palavras-chave: Infância, ditadura, memória, autobiografia, protagonismo.

Data de recebimento: 01/12/2019
Data de aprovação: 10/12/2019

Camilo Bácares Jara comalarulfo@hotmail.com
Doutorando em educação pela Universidad del País Vasco. Mestre em Política Social com Menção en Promoção da Infância pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Califórnia - Estados Unidos. Sociólogo da Universidad Externado de Colombia.