O primeiro capítulo desenvolve o tema enunciado no título do livro, O futuro da infância: os impasses nas relações intergeracionais e das crianças com seus pares. Com referenciais históricos, são abordadas situações vividas pelas crianças durante o período do Brasil Colônia e no Império, mostrando que a infância cumpriu um papel importante na emergência do Brasil Moderno ao se colocar como principal protagonista do novo laço, que ungiu homens e mulheres adultos das novas elites do país ao Estado Nação. Atrelando o passado ao presente e refletindo sobre o futuro, a autora se vale da filmografia para articular produções, dando um tom visual e emocional ao estudo. Com os filmes descritos, nos posicionamos frente a complexidade das relações inter e intrageracionais. É assinalada a importância do adulto na vida da criança e das crianças entre si, destacando o valor da experiência como troca para a compreensão do mundo. É possível pensar as diferentes infâncias, como também o era no período escravocrata. Pensa-se na infância como não universalizada, pois, dependendo do modo como vivem, crianças podem não parecer crianças. Tal situação nos conduz a pensar o futuro da infância. Trata-se de um texto contagiante.
No texto seguinte, As crianças e a política: o que a infância tem a ver com a democracia?, a proposta é explorar possíveis conexões entre o campo da política e o dos estudos da infância. Nele se discute como as ideias convencionais relativas à comunidade política moderna carregam uma relação intrínseca com teorias da subjetividade. Contrapondo-se à perspectiva teórica desenvolvimentista, é analisado como algumas concepções mais generosas em relação à infância têm podido rever a posição marginal dada às crianças na sociedade. São apresentados dados empíricos de um recente projeto de pesquisa sobre a participação de crianças na escola, com o objetivo de discutir como as crianças lidam com as diferentes situações de modo a conseguir falar por si próprias e construir um ponto de vista singular, diferente daquele dos adultos, acerca de sua experiência nessa instituição, na qual se observa a dificuldade de participação democrática, política. E nos perguntamos: a democracia poderia vir a ganhar se ela incluísse as crianças, até agora marginalizadas das práticas políticas atuais?
Reconhecendo que a escola é uma das experiências mais marcantes da vida das crianças, o capítulo seguinte focaliza, a partir de dados de pesquisa, esta instituição. Em A criança e a escola: ao encalço da “longa revolução”, ficam registradas as dificuldades de acolhimento e de vivacidade do contexto escolar. Muitas questões evocam a forma como a escola hoje se apresenta e como as crianças entendem suas práticas, que tendem a uma formação regulada tão somente pelas oportunidades do mercado de trabalho em uma economia capitalista, pautada no individualismo e na competividade. Não haveria outras formas de realizar as ações de mestre? Como crianças e adultos podem ser protagonistas na escola e nela instituir práticas que os instrumentalizem para a vida em sociedade?
No capítulo A aventura da ação e a participação das crianças na cidade, ao situar a experiência urbana como uma aventura, o texto expressa a convicção de que, na vida urbana, também estão o incompreensível e o invisível a nos desafiar através dos problemas, sustos e perigos. As crianças têm realizado esta aventura na cidade e isso pode servir de caminho para com elas entendermos o como e o por quê se age desta ou daquela forma, num espaço público. O território coletivizado da vida na cidade pode ser o lugar para, com a criança, entender as relações sociais e culturalmente determinadas frente aos desafios da participação cotidiana.
No capítulo A infância e seus direitos: são eles a única via de emancipação das crianças?, discute-se a emergência de garantias para as crianças, adquiridas recentemente, e como tal progresso está crivado de dificuldades, conduzindo, algumas vezes, a retrocessos em lugar dos avanços que se esperam. Quanto à concretude da garantia dos direitos das crianças, duas dificuldades são levantadas. A primeira é o aparente ordenamento que a inteligibilidade jurídica empresta às tensões oriundas das práticas sociais de convivência entre crianças e adultos. Outra dificuldade diz respeito à problematização da verdade jurídica, materializada na forma da lei, como referência última da ética de convivência social entre adultos e crianças. Analisando os direitos de crianças e adolescentes hoje no Brasil, entre outras questões, interroga-se: afinal, como afirmar a posição da criança como sendo sujeito de direitos e, ao mesmo tempo, mantê-la tutelada? Em que sentidos a condição de igualdade da criança pode viabilizar contextos reais de interlocução e ação para a mesma? Como compatibilizar os cuidados devidos à criança e, simultaneamente, impedir que a proteção se torne uma forma de dominação? Como equacionar os direitos das crianças e os dos pais, e dos adultos de forma geral? Estas inquietações mobilizam o pensamento. Aqui, mais uma vez, a participação e a ação da criança são tomadas para respaldar sua condição de sujeito de direito.
Para finalizar, temos um conto literário: Infância. Para falar da condição humana é usada a interdisciplinaridade, trazendo a literatura para figurar entre artigos científicos. A narrativa traz uma forma outra de texto, rompendo com os ditames da produção acadêmica na psicologia, área de referência para os trabalhos da autora. No conto, as memórias da infância trazem aquilo que ficou marcado, interiorizado no adulto. Com os registros aparecem muitos significados e sentidos produzidos ao longo dos outros escritos do livro. Trata-se de uma outra forma de dizer – com arte. Escrito com emoção, no bom estilo graciliano, as imagens retratadas dão ao leitor a ideia das cenas vividas pela criança com adultos e com outras crianças. Aqui, aparecem a astúcia e a criatividade da criança para conhecer o mundo, para o enfrentamento do imprevisível, embora submetida ao poder do adulto que a humilha, agride, desconsidera, usurpa seus direitos. Crianças se mostram capazes de compartilhar ações para subverter a ordem que as priva de ser. A narrativa emocionante indica que nada do que um dia aconteceu, como um encontro na infância, fica fora da vida adulta. No conto estão as marcas trazidas como propósito de ressignificação da concepção de infância e a perspectiva de futuro que a ela se associa.
Com a intensidade do mergulho, provocada pela reunião de escritos produzidos ao longo do tempo, considero que este livro é uma obra de referência sobre a temática da infância, e nela o lugar da criança na sociedade. Podemos dizer que o livro subverte a ordem das teorias que veem as crianças sob medida. Trata-se de uma proposta para todos que lidam com a tarefa incomensurável de compreender a infância. Mais que respostas, o leitor encontrará nele uma proposta de diálogo, inquietante, com as relações históricas, sociais e culturais e, a partir disso, poderá pensar como é constituída a infância hoje e imaginar o futuro. Quanto a novos tempos, aprendemos que a esperança nos faz acreditar que é possível mudar o que está posto.
Referência
CASTRO, Lucia Rabello de. O futuro da infância e outros escritos. Rio de Janeiro, 7letras, 2013.