Racismo na Infância, de Márcia Campos Eurico

“Sai daqui, seu negrinho!”: as expressões do racismo na infância

Resenha por Rachel Gouveia Passos
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-2267-0200

Mulher, negra, militante, nascida e criada na periferia da zona leste da cidade de São Paulo, Márcia Campos Eurico experienciou em sua vida a violência da ideologia racista que atravessa as múltiplas famílias negras brasileiras. Como toda existência negra, nossa autora também carrega no corpo e na subjetividade as feridas provocadas pelas estratégias de dilaceração do narcisismo branco (FANON, 2008; KILOMBA, 2019). Contudo, busca combater a realidade destrutiva por meio de uma produção teórica e política antirracista, anticolonialista e anticapitalista.

Em sua trajetória profissional como assistente social e pesquisadora, objetiva capturar as expressões do racismo na infância e na adolescência. Foi durante a pesquisa de doutoramento realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que suas inquietações acerca da persistente realidade de crianças e adolescentes negras(os) nos Serviços de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes (SAICAS) foram sistematizadas e analisadas teoricamente, sendo publicada a tese em formato de livro pela Editora Cortez.

A autora identifica como, no atual cenário, ocorre incessantemente a segregação e desqualificação da população negra, tendo como um dos efeitos o alto índice de acolhimento institucional de crianças e adolescentes. Negar o direito à convivência familiar é uma ação assertiva das raízes do racismo à brasileira, o que faz desse público alvo majoritário de políticas de controle e acolhimento institucional. Nesse sentido, o Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes se torna um dos mecanismos de reprodução da violência étnico-racial, acometida pelo próprio Estado, diluído nas normas e práticas cotidianas efetivadas no interior das unidades de acolhimento.

É importante sinalizar que a relação entre raça e classe é crucial para compreendermos a operacionalização jurídica do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para a autora, quando a condição de miséria é componente da infância, identifica-se a perpetuação de práticas que criminalizam os pobres e ocupam seus espaços privados de maneira autoritária. Como o racismo é base componente da ordem capitalista, a pobreza da população negra precisa ser manejada e, para isso, criam-se formas legitimadas de controle dos corpos e subjetividades, operadas desde o período da escravidão. Assim sendo, a institucionalização da população negra é constituinte da realidade brasileira e também se encontra expressa nas prisões (BORGES, 2018), nos manicômios (PASSOS, 2018) e nas instituições de medida socioeducativa (ARRUDA, 2017), ganhando contornos próprios na cena contemporânea.

Com uma escrita fluída e didática, apesar do livro apresentar situações de violações de direitos e negação de afetos, a nossa autora consegue deixar sua marca com inquietações e provocações de uma realidade que não está distante de nenhum de nós. Mesmo com relatos de sofrimento e dor ocasionados pela naturalização do racismo institucional, encontramos uma enorme riqueza na discussão a partir do confronto com aquilo que está naturalizado e enraizado na realidade brasileira: o mito da democracia racial.

Na primeira parte do livro, que concentra o capítulo I, o leitor encontra elementos para a apreensão dos mecanismos que compõem as relações raciais no Brasil e a reprodução da desigualdade étnico-racial, camuflada pela falsa noção de democracia racial. Ao nos lançarmos no início do capítulo, percebemos que a autora recupera aspectos relevantes do processo de escravidão no país, já que é preciso compreender na contemporaneidade o porquê das influências africanas e da presença negra ainda serem fortemente desqualificadas e destituídas pelas concepções eurocêntricas.

Ao discorrer sobre a composição particular do racismo na formação social brasileira, a autora aponta que a estratégia para a constituição do processo civilizatório do país ocorreu pela ideologia de branqueamento justificada pela miscigenação, tendo o propósito de aperfeiçoar a identidade nacional. Logo, “o processo de branqueamento oferecia o passaporte necessário para o acesso à vida civilizada e naturalmente democrática” (EURICO, 2020, p. 56). Nesse sentido, a eliminação da população negra se daria de forma gradual, tendo o mestiço como um mal necessário, para o desenvolvimento civilizatório.

A mestiçagem tornou-se uma estratégia de salvação do povo brasileiro, já que por meio dela múltiplas determinações conformaram o discurso da democracia racial. Com a ascensão de uma minoria da população negra, temos, em alguma medida, o compartilhamento dessa ideologia. Contudo, essa “mobilidade social depende da autorização da classe dominante” (Ibid., p. 62) que, de certa forma, vai camuflar o racismo e “tolerar” a presença dos raros negros que ascenderam economicamente.

Outra característica importante na composição do racismo à brasileira e a relação intrínseca entre raça e classe diz respeito à divisão social do trabalho entre homens e mulheres negras, principalmente os que compõem as camadas mais subalternas da classe trabalhadora. Majoritariamente, nas zonas urbanas, ambos ocupam funções sem direitos e com salários inferiores, sem falar das péssimas condições de trabalho. No caso das mulheres negras, há uma naturalização da presença servil, em destaque realizando tarefas vinculadas ao trabalho doméstico e de cuidados.

No caso das famílias negras, é preciso compreender como o lugar da mulher negra e os diversos estereótipos que a atravessam implicam na viabilização dos cuidados na esfera reprodutiva. A manutenção da subalternização da existência negra forja as possibilidades de proteção social que são responsabilidade do modelo familiar estabelecido, o que gera as situações mais adversas para a população negra, já que são os mais empobrecidos. Nesse sentido, o racismo estrutural atravessa a promoção dos cuidados familiares, implicando diretamente nas consequências que ocasionam o acolhimento das crianças e adolescentes negras(os), culpabilizando na maioria das vezes as mulheres.

Navegando para as páginas que apresentam a segunda parte, que concentra o capítulo II, Márcia Eurico resgata elementos que estruturam o racismo institucional no país, principalmente no pós-escravidão, com a libertação que deixou a população negra sem acesso às políticas sociais protetivas. Nesse sentido, as expressões do racismo institucional podem ser identificadas “no acesso à escola, no mercado de trabalho, na criação e implantação de políticas púbicas que desconsideram as especificidades raciais e na reprodução de práticas arraigadas nas instituições” (Ibid., p. 85).

Com o crescimento do acolhimento institucional de crianças e adolescentes negras(os), é fundamental questionarmos como vivem nesses dispositivos, a materialização do racismo institucional nesses espaços e quais os recursos disponíveis para o enfrentamento dessa questão. Na abordagem apresentada pela autora, o racismo sempre marcou sistematicamente a trajetória das famílias pobres, sendo que o Estado retira o poder familiar e as marcam como incapazes e negligentes de prover o bem-estar e o cuidado de seus membros. Portanto, há um ciclo punitivo que atravessa a vida das famílias negras, sendo o acolhimento institucional uma forma de afirmar essa destituição e inaptidão.

O acolhimento institucional é uma medida prevista pelo ECA que deveria ser aplicada excepcionalmente, entretanto, é quase sempre a primeira ação a ser realizada. Essa medida pode intensificar o esgarçamento de relações familiares frágeis, implicando diretamente no processo de subjetivação das crianças e adolescentes. Dessa maneira, reconhecer os efeitos do racismo e a estratégia de segregação como componente de controle dos corpos e subjetividades negros é fundamental para o seu combate e ruptura. Além disso, a negação do afeto também pode ser localizada como componente das expressões do racismo, expressa pelo afastamento da família ou pelo silêncio do encobrimento do racismo institucional.

Nesse caminho, a pesquisa realizada pela autora demonstrou os limites das equipes e o baixo investimento em capacitação continuada para combater o racismo institucional. Em todos os grupos realizados, foram encontrados elementos comuns: “a dificuldade de conceituar o racismo; o uso de linguagem que, […] reforça estereótipos em relação à população negra; a dificuldade de acolher as crianças que sofrem os impactos do racismo cotidianamente e de denunciar práticas racistas que, […], se configuram crime” (Ibid., p. 124). Infelizmente, as raízes do racismo, ainda que colocadas explicitamente no atual cenário, continuam a forjar as relações institucionais e seguem sendo perpetuadas pelo silêncio que é cumplice da violência étnico-racial.

Ao desnudar a realidade com situações racistas relatadas pelos profissionais entrevistados, a autora expõe as contradições presentes nos equipamentos e a ausência do debate sobre o pertencimento étnico-racial. Não nomear o racismo e silenciar suas expressões apenas afirma a continuidade da legitimação da eliminação da população negra e, nesse caso, pela contenção dos corpos e subjetividades das crianças e adolescentes. As marcas do racismo são visíveis e não se limitam ao passado colonial. Portanto, se faz necessário afirmar cotidianamente a luta antirracista para avançarmos na defesa da pluralidade do existir. Seguimos (re)existindo!

Referências Bibliográficas

ARRUDA, J. Medicalização e controle dos corpos femininos na execução da medida socioeducativa de internação. In: PEREIRA, M. O.; PASSOS, R. G. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2017.

BORGES, J. O que é encarceramento em massa? Belo Horizonte: Editora Letramento/Justificando, 2018.

EURICO, M. C. Racismo na Infância. 1. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2020.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora UFBA, 2008.

KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Coboró, 2019.

PASSOS, R. G. “Holocausto ou Navio Negreiro?” Inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Revista Argumentum, Vitória, vol. 10, n. 3, p. 24-34, set./dez. 2018.

Palavras-chave: racismo, infância, acolhimento institucional, violência ético-racial.

Data de recebimento: 30/06/2021
Data de aprovação: 07/07/2021

Rachel Gouveia Passos rachel.gouveia@gmail.com
Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ), Brasil. Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense (PPGPS/UFF), Brasil. Coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão Encruzilhadas: diálogos antirracistas.