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Adolescência e suas marcas: o corpo em questão

Beatriz Akemi Takeiti
Faculdade de Medicina e Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2847-0787

Cristiana Carneiro
Faculdade de Educação e Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4042-1155

Simone Ouvinha Peres
Departamento de Psicologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7352-8664

DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.46046

Introdução

Este artigo nasce da preocupação central de sublinhar a importância da temática do corpo como objeto de estudo privilegiado para os campos da adolescência e juventude. Tem como objetivo, portanto, tecer uma discussão que o situa tanto como palco da existência do jovem na cidade e nas políticas, como construto teórico, chave para pensar a adolescência e a juventude em suas multidimensionalidades. O corpo se mostra e comunica sobre as formas de ser e estar no contemporâneo, mas também tece outros sentidos, expressa modos de vida, crenças e territórios. Assistimos a um verdadeiro crescimento de estudos sobre o corpo em que a preocupação com sua centralidade no âmbito da adolescência e da juventude se amplifica, tornando-o um objeto importante de reflexão sobre a condição humana, da vida social e contribui para a construção das identidades sociais (DEBERT; GOLDESTEIN, 2000; DEBERT, 2010).

Este estudo inicia trazendo uma discussão sobre a importância do corpo jovem no cenário da vida contemporânea no que tange aos aspectos mais amplos de sua participação como sujeitos de direitos e como aporte de uma pensabilidade de futuro.

É nesse bojo de discussões que aparece o corpo contemporâneo como superfície de troca e reconhecimento, um corpo imagem, um corpo designer, que se desenha e marca o espaço e tempo do agora, mas que também projeta um futuro. Marcar a pele nessa lógica de visibilidade passa a ser, em nossos tempos, um fenômeno que radicaliza a participação adolescente no cenário dos debates sobre o corpo. Marcas identitárias e de pertencimento, marcas de sofrimento psíquico e social, marcas como alvo das políticas públicas.

O texto prossegue debatendo como a compreensão biológica de desenvolvimento para o crescimento orientou os estudos pioneiros sobre corpo e adolescência numa espécie de paralelismo entre o orgânico e o psicológico. Esse último aspecto foi subsumido aos ritmos autônomos e invisíveis do primeiro. A crítica, posteriormente efetuada sobre essa matriz de pensamento que esquadrinhou o corpo em partes não comunicantes, inseriu os aspectos sociais e históricos como chaves de leitura importantes para a compreensão desse objeto.

Se, por um lado, o estudo do corpo se enraizou nos saberes disciplinares, por outro, é inequívoca a relação existente entre os diferentes saberes para o entendimento dos problemas hoje a serem enfrentados por adolescentes e jovens (BOZON, 2004; MALYSSE, 1998; RISCADO, 2009; RISCADO; PERES 2010).

O corpo jovem na pólis, possibilidades de futuro?

Takeiti e Vicentin (2017), ao refletirem sobre os modos de existência juvenil na periferia urbana da cidade de São Paulo, Brasil, tomaram um caso em particular – o de Jorge – para evidenciar os acessórios da presença no cotidiano de um jovem – morador do distrito da Brasilândia e produtor cultural de saraus. Jorge, um jovem negro de pele clara, cisgênero, pobre, filho de trabalhadores – a mãe, baiana e diarista, o pai, mineiro e ajudante geral – nasceu e cresceu no distrito da zona norte da cidade de São Paulo, a Brasilândia, “berço da sua vida”, mais especificamente num bairro chamado Jardim Icaraí.

Para Jorge, o território da Brasilândia, narrado em muitas linhas, vai se constituindo e se revelando num longo processo vivido, atravessado por muitas histórias – a história do seu bairro, as histórias de violência e subalternizações, de racismo, de amizades e a história do sarau da Brasa. Tal territorialização é inscrita na pele de Jorge, como se seu corpo comportasse a extensão de todas essas histórias e do espaço geográfico em que vivia. “Brasa”, com letra cursiva, foi tatuado na região posterior do braço direito como uma marca que o revela e o evidencia como sujeito desse lugar. O nome Brasa também se constitui como uma política narrativa coletiva que produz outras inscrições – dos estigmas de ser da periferia, da atividade estética literária de inventar outros modos de estar no mundo. Afinal, Jorge foi um dos idealizadores do coletivo cultural Sarau Poesia na Brasa, um grupo cultural que produz e promove fruição estética literária, chamada literatura marginal na Brasilândia. Essa tatuagem, enquanto marca do lugar e dos empreendimentos coletivos, enquanto signo do território em que habita, produz estética e politicamente uma arte periférica que permite o uso de outras linguagens comunicantes.

Segundo Cavenacci (19901 apud DIÓGENES, 2008), o corpo se constitui como um mapa cultural que narra não apenas as histórias individuais, mas, sobretudo, uma dimensão cultural mais ampla. Corpo, palavra e, aqui, território se fundem em uma imagem visual, em signos de comunicação. Nessa direção, Diógenes (2008, p. 186) afirma que “exibir-se é uma forma de enunciar a existência e marcar sua presença no mundo”. Jorge, ao tatuar “Brasa” no braço direito, não apenas chama atenção para o território geográfico ao qual pertence, mas também enuncia seu pertencimento cultural ao grupo do sarau e conjuga uma política narrativa coletiva que se singulariza através da marca em sua própria pele.

Diógenes (2008), ao estudar as gangues juvenis de Fortaleza, se refere às tatuagens como uma marca que as diferencia de outros jovens e constitui uma identidade em exposição, quase um sinal obrigatório. Para o autor, “o corpo marcado é também um corpo iniciado, um corpo entendido” (DIÓGENES, 2008, p. 189).

Jorge nos exorta a pensar no lugar do adolescente na cultura, na importância de seu próprio corpo, não apenas fazendo parte da cidade e seus territórios, mas de todo um projeto de nação juvenil: o corpo jovem como substrato da força de trabalho que irá construir o mundo que há de vir e que, para tanto, é palco de cuidados e investimentos; um corpo que cabe ao Estado educar e garantir sua integridade. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), educar abordando transversalmente “o corpo em sua dimensão erótica e reprodutiva e como fonte e matriz da sexualidade” (SANTOS, 2011, p. 52) tem sido tema de debates calorosos e de afirmações ideológicas quando se trata de corpos infantojuvenis (BRASIL, 1990).

O ideário do corpo jovem como território a ser resguardado, bem como aprimorado no contínuo temporal, parece razoavelmente tácito na atualidade, consolidado com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, e com o posterior Estatuto da Juventude, em 2013.

Objetivamente, nos marcos legais, o momento da adolescência e da juventude corresponde a idades cronológicas distintas para fins estatutários (a adolescência se inicia aos 12 anos e termina aos 18, e a juventude começa aos 15 e termina aos 29 anos). Neste artigo, não pretendemos aprofundar nas discussões teóricas sobre adolescência e juventude, embora saibamos de suas diferenças e especificidades.

No entanto, somente tomar a adolescência e a juventude a partir da questão etária não é suficiente. Sabemos que um longo e trabalhoso percurso foi trilhado para a consideração cidadã desses sujeitos, ainda coexistindo práticas e pensamentos contraditórios em relação aos seus direitos e à sua participação. Nessa ótica, quando pensamos nos adolescentes e jovens de hoje, compreendemo-los tanto como parte integrante e importante daquilo que se passa no agora da pólis quanto como emblemas de investimento para o futuro da nação. As crianças, os adolescentes e os jovens são, na atualidade, não apenas considerados sujeitos de direitos, mas aportes de investimento para a construção de um futuro que se articula àquilo que definimos por civilização. O ideário de prevenção, por exemplo, projeta um futuro no qual a ideia de saúde engloba mais do que condições físicas ou simplesmente etárias e que dependerá do nosso contingente de jovens e crianças. As noções de cuidado e risco também denotam uma preocupação alicerçada em um depois.

Nesse campo de discussões, o corpo, na juventude e adolescência, também será considerado como eixo promotor e sustentáculo da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro.

Retomando Jorge e suas marcas na pele como forma de presença no território, podemos apontar que essa superfície – pele –, além de suporte identitário, pode nos falar de tantas outras presenças juvenis que extrapolam o próprio território de origem. Retomando a ideia de risco como uma política voltada para o futuro, torna-se patente a preocupação em saúde mental com os cortes na pele relacionados à autolesão na juventude. Como podemos ler a partir do Sistema Único de Saúde (SUS):

As práticas de prevenção, a partir da instituição do SUS, estão vinculadas à concepção de que as condicionantes da saúde extrapolam os limites do corpo orgânico e se realizam na articulação do indivíduo com sua experiência no território, no contexto social onde vive. Em saúde mental, prevenção está articulada à ideia de saúde como resultante também das condições de vida (e não como antecipação de risco de doença) e, nesse sentido, sua reescrita pela noção de promoção de saúde mental tem sido a via mais promissora para construção de trajetórias efetivas na oferta de atenção (BRASIL, 2017, p. 5).

A palavra risco se insere em uma forma de se relacionar com o futuro relançando uma questão do agora no depois. Envolve, assim, toda uma probabilística e uma articulação com a noção de perigo, norteando ações de cuidado e atenção no agora com vistas ao futuro. Para Giddens (1992), a noção de risco se articula ao tempo e ao espaço exprimindo modos de colonização do futuro. Ainda que, como nos dizem Pereira e Souza (2007), seja um termo ambíguo e foco de grandes debates, a ideia de prevenção em saúde mental, por exemplo, extrapola e alarga uma visão de risco como apenas antecipação de uma possível doença, uma vez que pretende envolver a multifatorialidade das condições do viver.

O risco como construtor das condutas adolescentes é uma preocupação dos estudos atuais. O termo “condutas de risco” aplicado às jovens gerações reúne uma série de comportamentos que colocam os jovens simbólica ou realmente em perigo (LE BRETON, 2017). Para Le Breton (2017), as condutas de risco entre adolescentes e jovens, “dos jogos de morte ao jogo de vida”, são mais do que um traço da adolescência, referem-se a uma individualização de comportamentos e normas de forma paralela a outras transformações da sociedade. A literatura mostra que essas condutas de risco remetem a diferentes motivações e podem estar associadas à dificuldade conhecida dos adolescentes de pensar nos riscos, fazendo com que o corpo tome a dianteira como uma forma de reação por uma conduta imediata que mais se parece um grito, uma marcação, um pedido de ajuda, uma forma de simbolizar ou uma passagem ao ato, como diriam os psicanalistas (LE BRETON, 2009).

No entanto, o próprio ideário de risco e a promoção de saúde coexistem no cenário das políticas e ensejam um debate acalorado entre os estudiosos, já que ensejam visões diferentes de desenvolvimento. Para além desse debate, que não é nosso mote central, cabe salientar que o corpo articulado às perspectivas de dignidade humana não poderá ser restringido a suas matrizes biológicas. Assim, para além do organismo, o corpo passou a ser indubitavelmente objeto concreto de investimento social e coletivo, suporte de ações e de significações, motivo de reunião e de distinção através de práticas e discursos abundantemente exaltados (LE BRETON, 2011).

Se, a partir do que introduzimos até aqui, parece evidente que o corpo na adolescência e juventude conseguiu certa visibilidade na pólis como objeto de atenção, cuidados, preocupações e direitos, ainda há grande dificuldade em abordar o corpo em sua multidimensionalidade, tanto nas políticas como nas práticas. Assim, esse grande campo de debates nos convoca a pensar na importância de questionar as formas acadêmicas de abordar o corpo adolescente na atualidade. Como pensar nas marcas na pele que se produzem hoje, como tatuagens, piercings e cutting, sem levar em conta a multidimensionalidade do corpo, que é carne, pele, secreções, mas também aporte identitário, sustentáculo da vida afetiva e social? Se as condicionantes da cidadania extrapolam os limites do corpo orgânico – ainda que o incluam – como pensar a adolescência e juventude sem levar em consideração a centralidade do corpo nessa reflexão?

1 – CAVENACCI, M. A antropologia da comunicação visual. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
Beatriz Akemi Takeiti biatakeiti@medicina.ufrj.br

Terapeuta Ocupacional, docente do Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil.

Cristiana Carneiro cristianacarneiro13@gmail.com

Psicanalista. Pós-doutora, Paris VII. Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Coordenadora do NIPIAC e do Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) – Psicanálise e Educação.

Simone Ouvinha Peres simoneoperes@gmail.com

Professora Associada do Departamento de Psicologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestre em Psicossociologia e Doutora em Saúde Coletiva.