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As crianças e seus mil dias: articulações entre saúde e educação

A título de considerações finais

Nosso objetivo neste texto foi tentar enfrentar o desafio de articulação entre campos científico diferentes, mas que apresentam convergências para se pensar as crianças na sua integralidade física, emocional, afetiva, cognitiva, social. Trouxemos como ponto de encontro pensar os primeiros mil dias das crianças – da concepção aos dois anos de idade – e toda potência do bebê nesse período de desenvolvimento intenso, cujas pesquisas têm evidenciado uma forte inter-relação entre a dimensão biológica do desenvolvimento e as dimensões relacional, afetiva, cultural. A fragilidade e prematuridade do bebê humano ao nascer é justamente o que lhe impõe uma potência relacional que mobiliza o outro numa afetação mútua. E as respostas dos bebês às ações dos adultos são de corpo inteiro. Assim é que a importância do aleitamento materno, por exemplo, vai para além da nutrição do alimento em si, pois o bebê também se nutre pelos toques, narrativas, canções, calor e afeto. O acompanhamento desses mil dias exige de quem cuida e educa as crianças atenção, observação, escuta e resposta responsável, num processo dialógico que se dá desde a vida intrauterina. Nossa proposta foi pensar os mil dias para além do tempo cronológico, como mil aberturas e possibilidades de as crianças se colocarem no mundo. Pesquisas e estudos de diferentes áreas têm evidenciado a potência humana desde o nascimento. Há muitas conquistas na legislação brasileira no campo da infância: da Constituição Federal, passando pela da saúde, educação, assistência e chegando ao ECA e ao MLPI. Entretanto, a existência legal por si mesma não é suficiente para diminuir as desigualdades que atingem diretamente as crianças desde a gestação. E a população infantil brasileira, especialmente a da primeira infância, está concentrada nos estratos de população de baixa renda e/ou de famílias vulneráveis. Fazer cumprir as leis é uma questão de justiça social, de políticas públicas capazes de executá-las e acompanhá-las na execução. Neste momento de crise política, sanitária e social, conquistas estão o tempo todo em risco. Assim, finalizamos com proposições para políticas e práticas na perspectiva de nenhum direito a menos:

1. Políticas públicas voltadas para a primeira infância, com ênfase nos primeiros mil dias, são essenciais para o pleno desenvolvimento de indivíduos, para o aprimoramento das sociedades e diminuição de desigualdades;
2. Essas políticas devem integrar várias áreas do conhecimento, sendo essencial a integração entre a área da saúde e da educação no caso da primeira infância e nos mil primeiros dias;
3. O Brasil tem uma lei específica vigente voltada para a primeira infância, o MLPI, que define e preconiza o direcionamento dessas políticas. É preciso que cada ente federado elabore, democraticamente, o seu plano para a primeira infância, vote o plano em suas assembleias legislativas, preveja recursos orçamentários e execute o que foi definido, porque a infância não espera e os mil dias passam muito rapidamente;
4. A Educação Infantil é um direito que tem sido negado para grande parte das crianças de zero a três anos. É preciso ampliar a oferta de creches públicas, gratuitas, laicas e de qualidade socialmente referenciada;
5. A política de distribuição de “voucher” para creche, como tem que sido proposta pelo atual governo, é uma forma de desresponsabilizar o poder público de seu compromisso pela educação das crianças pequenas, privatizar as verbas públicas e agudizar as desigualdades no acesso a um serviço de qualidade. Portanto, é preciso repudiar essa política, pois as pesquisas evidenciam que é a qualidade do que é proposto às crianças que faz a diferença vida afora.

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Resumo

Este artigo se propõe a estabelecer um diálogo entre saúde e educação infantil. Toma como ponto de partida questões que dizem respeito aos primeiros mil dias das crianças. A primeira parte trata da origem dos mil dias, apresenta o olhar da saúde sobre esse período, define atenção integral e discute o marco legal da primeira infância, que se propõe a articular políticas intersetoriais. A segunda parte trata da educação como um direito que abarca outros direitos. Discute a qualidade da oferta da Educação Infantil para o desenvolvimento integral das crianças, a não dissociação entre cuidar e educar, traz questões para discutir o desenvolvimento das crianças nos primeiros anos de vida e a docência na Educação Infantil. Na terceira parte conclui com indagações para as políticas voltadas para a primeira infância, com ênfase nos primeiros mil dias, as quais são essenciais para o pleno desenvolvimento das crianças, para o aprimoramento das sociedades e diminuição de desigualdades. Políticas que devem integrar várias áreas do conhecimento, sendo essencial a integração entre a área da saúde e da educação.

Palavras-chave: primeira infância, desenvolvimento infantil, marco legal da primeira infância, atenção à saúde, Educação Infantil.

Los niños y sus mil días: articulaciones entre salud y educación

Resumen

Este artículo tiene como objetivo establecer un diálogo entre la Salud y la Educación Infantil. Toma como punto de partida para el diálogo las cuestiones relativas a los primeros mil días de los niños. La primera parte aborda el origen de los mil días, presenta la mirada de salud en este período, define la atención integral y discute el marco legal de la primera infancia que pretende articular políticas intersectoriales. La segunda parte trata de la educación como un derecho que abarca otros derechos. Se discute la calidad de la oferta para el desarrollo integral de los niños, la no disociación entre cuidar y educar. La segunda parte trata de la educación como un derecho que abarca otros derechos. Se analiza la calidad de la oferta de Educación Infantil para el desarrollo integral de los niños, la no disociación entre cuidar y educar, plantea interrogantes para debatir el desarrollo de los niños en los primeros años de vida y la docencia en Educación Infantil. La tercera parte concluye con preguntas para las políticas actuales. Las políticas de primera infancia, con énfasis en los primeros mil días, son esenciales para el pleno desarrollo de las personas, para la mejora de las sociedades y para la reducción de las desigualdades. Estas políticas deben integrar varias áreas de conocimiento, siendo esencial en el caso de la primera infancia y en los primeros mil días la integración entre el área de salud y educación.

Palabras clave: primera infancia, desarrollo infantil, marco legal de la primera infancia, atención de la salud, educación infantil.

Children and their thousand days: articulations between health and education

Abstract

This article aims to establish a dialogue between Health and Early Childhood Education. It takes as a starting point for dialogue issues concerning the first thousand days of children. The first part deals with the origin of the thousand days, presents the health look on this period, defines comprehensive care and discusses the legal framework of early childhood that aims to articulate intersectoral policies. The second part deals with education as a right that embraces other rights. It discusses the quality of the offer of Early Childhood Education for the integral development of children, the non-dissociation between caring and educating, raises questions to discuss the development of children in the first years of life and teaching in Early Childhood Education. The third part concludes with questions for current policies. Early childhood policies, with emphasis on the first thousand days, are essential for the full development of individuals, for the improvement of societies and for the reduction of inequalities. These policies should integrate several areas of knowledge, being essential in the case of early childhood and in the first thousand days the integration between the area of health and education.

Keywords: early childhood, child development, early childhood legal framework, health care, early childhood education.

Data de recebimento – 31/08/2021
Data de aprovação – 17/11/2021

Antonio José Ledo Alves da Cunha acunha@medicina.ufrj.br

Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil. Coordenador do Laboratório Multidisciplinar de Epidemiologia e Saúde – LAMPES, da Faculdade de Medicina da UFRJ. Pesquisador 1-B do CNPq. Cientista de Nosso Estado, FAPERJ. Doutor em Epidemiologia. Mestre em Saúde Pública e em Pediatria. 

Patrícia Corsino  corsinopat@gmail.com

Pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Pontífica Universidade Católica – PUC, Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutorado pela Università degli Studi di Pavia, Itália; Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Infância, Linguagem e Educação – GEPILE.