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Belo Horizonte, uma cidade educadora(?): uma análise das ações e políticas públicas voltadas para a infância

O Programa Escola Integrada

Belo Horizonte desenvolveu o Programa Escola Integrada, que representou uma política pública norteadora e consolidadora da vocação de Belo Horizonte como cidade educadora. De acordo com o defendido em um de seus princípios:

O projecto educador explícito e implícito na estrutura e no governo da cidade, os valores que esta encoraja, a qualidade de vida que oferece, as manifestações que organiza, as campanhas e os projectos de todos os tipos que prepara, deverão ser objecto de reflexão e de participação, graças à utilização dos instrumentos necessários que permitam ajudar os indivíduos a crescer pessoal e colectivamente (Carta das Cidades Educadoras – Princípio 2 – O Compromisso da Cidade – Artigo 12º, 2004) (ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DAS CIDADES EDUCADORAS, 2004).

Esse modelo se pautou na ressignificação de territórios educativos, resultando no redimensionamento da prática educativa, orientada para o direito à memória e ao usufruto da cultura. Aliada à concepção de territorialidade, somou-se a dimensão da corporeidade, expressa no protagonismo dos corpos/sujeitos que, ao transitarem pela cidade, constroem identidades e subjetividades, visando à apropriação cultural e ao sentido de pertencimento.

O Programa Escola Integrada, implantado em 2006, inicialmente denominado Escola Integral, teve como referência as experiências de dentro e fora do Brasil. Tornou-se referência nacional e internacional como uma política pública que articula a instituição escolar aos diversos espaços contidos na cidade. Adaptada à realidade local, a Escola Integrada conectada à cultura da cidade transformou o município numa grande sala de aula, criando possibilidades para que as crianças tivessem acesso aos espaços culturais nos próprios bairros, bem como nos mais distantes. O entendimento dos gestores era voltado a uma política cultural para a infância, um dos elementos principais na construção de uma educação integrada.

O Programa Escola Integrada buscou articular os seguintes setores: Núcleo de Atendimento à Família; Prodabel (empresa de informática do Município); BHTrans (empresa de transporte e trânsito de Belo Horizonte); SLU (Superintendência de Limpeza Urbana); Conselho Municipal de Direitos das Crianças e Adolescentes; Fundação Municipal de Cultura; Fundação de Parques Municipais; Associação Municipal de Assistência Social e Associação de Moradores. Além disso, foram estabelecidas também algumas parcerias: Instituto Itaú Social; Centro de Estudos e Pesquisas em Educação; Ação Comunitária (Cenpec) e diversas faculdades e universidades públicas e privadas7.

Ao apresentar o Programa Escola Integrada, podemos pensá-lo em diálogo com Moll (2008, p. 221-222), que compreende os conceitos de cidade educadora e cidade como pedagogia, permitindo novos olhares para a educação e reinvenção da escola, que busca repensar a cidade:

Os conceitos de cidade educadora ou de cidade como pedagogia podem alargar nossa compreensão de educação, permitindo-nos reinventar a escola no mesmo movimento que busca reinventar a cidade e, nela, a comunidade como lugares de convivência, de diálogo, de aprendizagens permanentes, na perspectiva do aprofundamento da democracia e da afirmação das liberdades.

Os estudos etnográficos de Carvalho (2013) e Freitas (2015), que acompanharam o cotidiano de práticas no contexto de escolas em tempo integral em Belo Horizonte (em uma perspectiva de apropriação de diferentes lugares da cidade como espaços educativos), apontam potencialidades no diálogo entre a escola e a cidade. Carvalho (2013) ressalta que, ao proporcionar a mobilidade das crianças em diferentes espaços sociais da comunidade e da cidade, novas formas de se apropriar dos espaços ampliam o repertório educativo-cultural, possibilitando, nesse sentido, a formação do sujeito interativo e autônomo. Além disso, destaca que essa presença e mobilidade surge como possibilidade de demarcar lugares nesses territórios que, não raro, apresentam-se hostis à presença das crianças. Em suma, são práticas que buscam demarcar a cidade como um direito de todos.

Esse mesmo argumento foi apresentado por Freitas (2015, p. 88), que destaca as ricas interações das crianças “com o espaço, com os objetos e com as pessoas”. Nesse sentido, aponta:

As expressões das crianças na interação com os diferentes espaços da cidade nos provocam a constatar que a maior parte dos lugares não foi pensada e muito menos projetada para receber crianças. Entretanto, o Programa Escola Integrada tem possibilitado que as crianças experimentem esses espaços e, em contrapartida, provoquem esses espaços a repensar seus objetos, ampliando formas de participação social.

No que diz respeito ao estreitamento das relações entre a escola e a cidade, Gadotti (2008) afirma a necessidade de relacionar-se o aprendizado da cidade com a proposta curricular da escola, em uma perspectiva de “empoderamento” de todos os equipamentos culturais da cidade. Nesse sentido, “a cidade é o espaço da cultura e da educação” (Ibid., p. 47).

Ações da sociedade civil

A partir da década de 1990, verificou-se um crescente aumento da participação, por parte da sociedade, nos assuntos políticos, o que fez com que os gestores públicos procurassem mecanismos de transparências na aplicação de recursos públicos (SILVA; PEREIRA; ARAÚJO, 2014). Tal fato não pode ser desvinculado do processo de redemocratização do país, logo após o fim da ditadura civil-militar, que culminou na Constituição Federal Brasileira de 1988. Desde então, verifica-se o surgimento de uma rede de movimentos sociais com o objetivo claro de fortalecer o papel da sociedade na esfera pública e na defesa dos valores democráticos, gestando um processo de maior participação social no Brasil. Esse aumento está associado à capacidade que esses movimentos tiveram de explicitar suas demandas relacionadas à distribuição de bens públicos e, em menor escala, à formulação de políticas públicas, fortalecendo os mecanismos democráticos e imprimindo força à sociedade civil.

Merece destaque, nesse cenário, o estabelecimento dos conselhos gestores de políticas públicas, como um importante lugar de atuação e representação da sociedade civil. Como ressalta Gohn (2006, p. 7):

Numa sociedade marcada por inúmeros processos de exclusão social e de baixos níveis de participação política do conjunto da população, os conselhos assinalam para possibilidades concretas de desenvolvimento de um espaço público que não se resume e não se confunde com o espaço governamental/estatal.

Nas cidades educadoras, especialmente em Belo Horizonte, as experiências da criação dos conselhos gestores, da implantação do orçamento participativo e das audiências públicas apresentaram-se como elementos facilitadores na construção de canais legítimos de participação nas cidades. Tais ações constituem promotoras da educação pública, visto que impactam a vida dos cidadãos, a administração e a política em geral. Apesar disso, é importante lembrar que ainda existem avanços e melhorias nesse processo a serem feitos. Em Belo Horizonte, existe uma articulação reduzida entre as várias regiões do município no sentido de poderem fazer intervenções de um montante financeiro maior. Este aspecto tem a ver com as regras do orçamento participativo, em que cada regional tem aprovadas cerca de 14 obras, não podendo juntar as verbas para fazer menos obras, mas com valores mais elevados (GRANADO, 2010).

A concepção e a consolidação do modelo cidade educadora contribuíram expressivamente para o redimensionamento do conceito de cidade e, consequentemente, para o de educação. Morigi (2016, p. 27) refere-se às cidades educadoras como “modelos organizativos, baseados na descentralização política, administrativa, apresentando um quadro legal de transferência de competências para os municípios que adotam tais modelos”. Assim, o diálogo entre sociedade civil e estruturas públicas é um pressuposto básico para sua existência.

A cooperação público-privada e a participação dos cidadãos, juntamente com o sistema de formação integrada, são elementos essenciais na sua constituição. A análise de Morigi se sustenta nas obras de Ladislau Dowbor e Moacir Gadotti. Dowbor (1987) lançou o livro Introdução ao planejamento municipal, no qual debate a descentralização política e o fortalecimento dos municípios a partir de uma experiência de planejamento educacional. Em Escola Cidadã, Gadotti (2008) sugere a possibilidade de um movimento educativo baseado na aproximação entre a escola e a comunidade.

Nesse mesmo sentido, Almeida (2008, p. 8) conclui:

De fato, as últimas décadas do século XX gestaram uma nova sociedade, culminando com um novo modelo de cidade, onde ficaram evidentes duas tendências: a formação das organizações não governamentais, fruto da associação dos cidadãos no enfrentamento dos problemas sociais; a adesão dos municípios a esses referidos movimentos da sociedade civil, gerando uma consciência de sua função educadora.

A participação da sociedade civil, portanto, é fundamental na construção dos municípios como cidades educadoras. Em relação a Belo Horizonte, identificou-se uma política intersetorial, a criação de conselhos gestores e algumas práticas, tais como conferências e audiências públicas, no sentido de ressignificar a participação da sociedade civil no processo de discussão e formulação de políticas públicas. O Município formalizou, em consonância com a Lei Federal n.º 13.019/2014 (BRASIL, 2014), que estabelece o regime jurídico das parcerias, uma política de cooperação da sociedade civil com as áreas da Educação, Assistência Social, Esporte e Lazer.

Entre os movimentos oriundos da sociedade civil, pode-se destacar BH pela Infância8, Voluntários Brincantes9, Na Pracinha10, Núcleo BH da Aliança pela Infância11 e Semente Maker12. Sintonizados com a temática do direito à cidade, esses movimentos incentivam a reflexão acerca da relação entre a cidade e a criança, agregando também temas relativos à educação, cultura, alimentação saudável, sustentabilidade e, principalmente, a discussão sobre a importância do brincar livre como direito. Nesse sentido, diversas atividades vêm sendo desenvolvidas em locais pontuais da cidade, por exemplo: brinquedoteca itinerante; oficinas de confecção de brinquedos recicláveis; de jogos; O Brincaço (brincadeiras livres e/ou mediadas por atores ligados à cultura da infância); passeios em locais públicos sugeridos pelo guia Beagá para Brincar; entre outros.

Desirée Ruas, líder do movimento BH pela Infância, criado em 2017, argumenta:

Inserir as crianças no debate sobre a cidade é uma forma de dar visibilidade para as necessidades da infância no espaço urbano. Como as ruas e outros espaços públicos são e como poderiam ser são perguntas a que precisamos responder com a ajuda das crianças. Para entender como as crianças enxergam os processos vividos nas cidades, relacionados à ocupação, ao deslocamento, à cultura, ao contato com a natureza, ao brincar e ao lazer, é preciso que a infância seja ouvida e sua experiência seja levada em consideração (BH PELA INFÂNCIA, 2018, n.p.).

O movimento BH pela Infância tem protagonizado o debate sobre a participação da criança, organizando seminários, eventos em escolas públicas e privadas, projetos com universidades, discussões com organizações do terceiro setor e órgãos públicos e privados, tendo como principal objetivo a defesa dos direitos da infância.

Compreende-se, então, que a participação da sociedade civil na realização de ações e projetos, no sentido de inserir a criança e o adolescente nos espaços públicos na cidade de Belo Horizonte, apresenta avanços e conquistas, mas ainda é pouco expressiva, principalmente entre as ações que não estão atreladas a projetos capitaneados pelo Poder Público.

7 – Participaram dessa iniciativa a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), PUC Minas (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais), UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais), Faminas (Faculdade de Minas), Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica), UNA (Cento Universitário Una), UNI-BH (Centro Universitário de Belo Horizonte), Instituto Newton Paiva, Pitágoras BH e Instituto Isabela Hendrix.
8 – BH pela Infância é um movimento social que incentiva a reflexão sobre a cidade e a criança, integrando o debate sobre educação, cultura, alimentação, saúde e sustentabilidade.
9 – Voluntários Brincantes é um projeto desenvolvido por um grupo composto de arte-educadores, por meio de ações como brinquedotecas itinerantes, oficinas de vivências lúdicas, oficinas de confecção de brinquedos e jogos em espaços públicos.
10 – Na Pracinha é um movimento criado em 2004, desenvolvido por um grupo de mães, na promoção de eventos brincantes gratuitos, passeios e reflexões nas praças da cidade.
11 – Núcleo BH da Aliança pela Infância é um movimento de caráter político, com o objetivo de trazer um olhar sobre a importância do brincar para a infância e de ocupar a rua, além de chamar a atenção do Poder Público para espaços destinados à brincadeira pela cidade.
12 – Semente Maker é um projeto que visa a desenvolver conteúdo acerca da aprendizagem criativa nas temáticas culturais e folclóricas, por meio de divulgação em plataformas digitais.
Luciano Silveira Coelho luciano.coelho@uemg.br

Mestre em Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Professor do Departamento de Ciências do Movimento Humano (DCMH) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Brasil, e líder do grupo de pesquisa Ciranda.

Túlio Campos tulio.camposcp@gmail.com

Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil, e professor do Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional da UFMG.

Sheylazarth Presciliana Ribeiro sheylazarth.ribeiro@uemg.br

Doutora em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Professora do Departamento de Ciências do Movimento Humano (DCMH) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Brasil, e vice-líder do grupo de pesquisa Ciranda.

Éder Fernando Souza Cruz edercruz73@gmail.com

Licenciado em Educação Física pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Brasil, e integrante do grupo de pesquisa Ciranda.