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Contribuições da literatura internacional para o cuidado em saúde mental de adolescentes em conflito com a lei no Brasil

Resultados

A seguir, os achados serão apresentados através de três categorias. A primeira delas compreende os estudos sobre a prevalência de indicadores de saúde mental, adolescentes em conflito com a lei e variáveis associadas. A segunda, pesquisas com enfoque na relação (unidirecional ou bidirecional) entre os problemas de saúde mental e cometimento de delitos. Por fim, a terceira categoria é composta por estudos que buscaram identificar a prevalência de comportamentos de autolesão, ideação suicida, tentativa de suicídio ou suicídio e variáveis associadas a estes comportamentos.

Prevalência de transtornos de saúde mental e variáveis associadas

Os estudos alocados nesta categoria investigaram a prevalência de alguns transtornos de saúde mental e seus possíveis correlatos em amostras de meninos judicializados (Degenhardt et al., 2015; Mcardle; Lambie, 2018; Lyu et al., 2015; Poyraz Findik et al., 2019; Gaete et al., 2018; Hirschtritt et al., 2018; Valentine; Restivo; Wright, 2019), primários e/ou com baixo risco de reincidência (Burke; Mulvey; Schubert, 2015; Kang et al., 2018), com condutas graves (Baskin; Sommers, 2015) e meninas judicializadas (Lansing et al., 2018). Somente dois deles fizeram uso de dados longitudinais (Baskin; Sommers, 2015; Gaete et al., 2018).

Dentre os transtornos comumente investigados, os diagnósticos mais prevalentes foram: o de transtorno de uso de substâncias (Mcardle; Lambie, 2018; Gaete et al., 2018; Kang et al., 2018), transtorno de atenção e hiperatividade (Burke; Mulvey; Schubert, 2015; Poyraz Findik et al., 2019), transtornos de humor deprimido (Lyu et al., 2015; Mcardle; Lambie, 2018; Poyraz Findik et al., 2019; Gaete et al., 2018; Burke; Mulvey; Schubert, 2015), ansiedade (Lyu et al., 2015; Mcardle; Lambie, 2018; Burke; Mulvey; Schubert, 2015; Kang et al., 2018; Poyraz Findik et al., 2019), transtornos de conduta e transtorno opositivo desafiador (Burke; Mulvey; Schubert, 2015; Kang et al., 2018). Na sequência, estão os distúrbios do sono (Lyu et al., 2015), transtornos psicóticos, desordens afetivas (Kang et al., 2018) e outros indicadores que remetem a problemas de saúde mental, como raiva/irritabilidade, queixas somáticas (Mcardle; Lambie, 2018), sofrimento psicológico, hostilidade e inferioridade (Lyu et al., 2015).

Uma investigação sobre a prevalência de sintomas psicóticos em adolescentes infratores obteve um índice de 13% da amostra, pontuando clinicamente para os sintomas psicóticos (Degenhardt et al., 2015). Esses meninos tinham maior probabilidade de ter experiências adversas na família (lares instáveis, problemas de saúde mental e/ou uso de substâncias na família, eventos estressantes), expulsão escolar, sintomas depressivos e dependência de anfetamina, sedativos e maconha (Degenhardt et al., 2015). Em Lansing et al. (2018), os sintomas mais frequentes foram alucinações auditivas (39,9%) e a crença de que outras pessoas estão tentando machucá-lo ou envenená-lo (38%). Essa sintomatologia esteve muito associada a experiências adversas na família. Gaete et al. (2018), focalizando as experiências na infância e psicopatologias em adolescentes infratores, encontraram associação entre maus-tratos infantis e Transtornos Depressivos Maiores, entre morte da mãe e transtornos de ansiedade e entre maior escolaridade e menor frequência de ansiedade e depressão.

Em adolescentes infratores graves, com diferentes trajetórias de exposição à violência, os grupos com histórico de maior exposição tinham mais chances de ter sintomas de depressão e ansiedade do que os com baixa exposição à violência. Contudo, identificou-se que maturidade psicossocial e suporte social moderam essa relação: em altos níveis, diminuem depressão e ansiedade, em especial para jovens com trajetória baixa e estável de exposição à delinquência (Baskin; Sommers, 2015).

Ainda, têm-se apontamentos de que minorias sexuais – identificadas pelos critérios de: pertencer a um gênero não binário; ter se relacionado com alguém do mesmo sexo; sentir-se atraído por uma pessoa do mesmo sexo; orientação sexual não heterossexual; vítimas devido à sua condição não normativa no que diz respeito ao gênero e/ou sexualidade (Hirschtritt et al., 2018) tinham maior probabilidade de apresentar questões de saúde mental severas, de se engajar em comportamentos de autolesão, de ter mais sintomas pós-traumáticos e maior consumo de substâncias do que adolescentes que não se identificam como minorias sexuais (Hirschtritt et al., 2018). Valentine, Restivo e Wright (2019) identificaram uma relação positiva entre o tempo de confinamento e o número de diagnósticos do adolescente.

Associação entre prática de delitos e problemas de saúde mental

Investigações acerca dos efeitos dos problemas de saúde mental no cometimento de delitos, o contrário ou a relação recíproca entre eles foram realizadas por meio de estudos longitudinais com amostras da população (à exceção de Hein et al., 2017; Bacak; Karim, 2019), que foram conduzidos com amostras de infratores. Alguns estudos identificaram associações positivas e bidirecionais entre depressão e delinquência (Chen; Lien, 2018; Fanti; Colins; Andershed, 2019), e há evidências de que talvez esses comportamentos não estejam associados (Heerde et al., 2019).

O cometimento de delitos, para parte dos estudos revisados, seria preditor de aumento em problemas relacionados à depressão (Bacak; Karim, 2019; Jolliffe et al., 2019), especificamente o cometimento anterior de delitos graves com violência (Jolliffe et al., 2019). Em contraponto, há evidência que indica que o cometimento de delitos não prediz sintomas depressivos, e que estes estariam mais relacionados ao contexto escolar, sintomas depressivos anteriores, uso de álcool e eventos sociais (Huesmann et al., 2019). Para desfechos de ansiedade, o cometimento de delitos foi identificado como preditor (Huesmann et al., 2019), mais especificamente os delitos de furto (Jolliffe et al., 2019). Walker et al. (2019), por sua vez, identificam ainda que a associação entre trajetórias de cometimento de delitos na adolescência e problemas de saúde mental pode se estender até o início da vida adulta, mas defendem que essa associação se deve à influência de outros fatores.

Em Jennings et al. (2019), os resultados indicam que adolescentes com alta taxa de cometimento de delitos apresentam mais sintomas de depressão do que o restante da amostra, composta por adolescentes com diferentes trajetórias de conduta delituosa. No contexto escolar, por exemplo, a correlação entre sintomas depressivos e porte de armas na escola é parcialmente moldada pelo apego escolar (apego escolar se associa a sintomas depressivos e ambos têm efeito no porte de arma na escola) (Watts; Province; Toohy, 2019). Em Hein et al. (2017), trajetórias com pico de cometimento de delitos violentos estavam associadas ao uso de álcool e drogas, e aquelas com baixo pico de cometimento de violência associavam-se a mais sintomas depressivos, queixas somáticas e ideação suicida. Altos níveis de raiva/irritabilidade aumentam as chances de reincidência violenta.

Os resultados de Lemos e Faísca (2015) com adolescentes infratores sugerem que o aumento da gravidade dos delitos cometidos, associado à privação de liberdade, relaciona-se com níveis mais altos de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão. Para meninas, Azad e Ginner Hau (2018) apresentam que aquelas cumprindo MSE em centros de internação estão mais suscetíveis a um maior engajamento infracional e a problemas de saúde mental do que aquelas inseridas em programas comunitários ou que compõem a população geral. A investigação de Kopak e Kulick (2017) sinalizou que jovens detidos por delitos graves (incluindo os violentos) tinham mais problemas de saúde mental quando comparados a jovens detidos por descumprimento de medida ou outros delitos.

Haney-Caron et al. (2019), em estudo com infratores em tratamento de saúde mental, identificaram que problemas internalizantes são igualmente altos entre adolescentes que cometem delitos menores, moderados e graves. Adolescentes que cometem delitos violentos graves, contudo, são mais propensos a ter problemas externalizantes. Segundo o DSM-5, os comportamentos internalizantes são caracterizados pelo humor depressivo, ansiedade e sintomas fisiológicos e cognitivos. Já os externalizantes incluem transtornos do controle de impulso, conduta disruptiva e adições (American Psychiatric Association, 2013). Estresse psicológico (Zhang et al., 2016) e transtorno de estresse pós-traumático – especificamente a excitação disfórica, um sintoma de TEPT (Aebi et al., 2017; em estudo transversal com adolescentes da população) – associam-se ao cometimento de delitos violentos.

Nesta linha, a associação de raiva com depressão foi identificada como preditora de delitos violentos e não violentos. Altos níveis de depressão e baixos níveis de raiva diminuem a probabilidade de reincidência (violenta ou não). Baixos níveis de depressão, apesar dos níveis de raiva, estão associados com um nível moderado de cometimento de delitos (Kelly; Novaco; Cauffman, 2019). Adolescentes com transtorno explosivo intermitente (TEI) têm maiores níveis de raiva e menores níveis de controle da raiva do que adolescentes sem essa psicopatologia. A maioria dos adolescentes com TEI faz parte do grupo de reincidentes e tinha maior probabilidade de cometer delitos violentos, como estupro ou roubo (Shao et al., 2019). Os transtornos mentais graves (esquizofrenia, transtorno bipolar e esquizoafetivo, por exemplo), em seu turno, foram preditores significativos de reincidência (não necessariamente violenta) a curto prazo para adolescentes infratores (Kasinathan, 2015).

Em alguns dos estudos transversais revisados, as variáveis que remetem ao histórico de traumas e/ou experiências adversas durante a infância foram focalizadas para compreensão dos problemas de saúde mental em adolescentes judicializados. O estudo de Aebi et al. (2015) identificou que grupos de adolescentes infratores com acúmulo de experiências de trauma (emocional, físico e sexual) possuíam mais desordens psiquiátricas e maiores níveis de reincidências do que adolescentes de grupos que tinham menos ou nenhum relato de experiência de trauma. Hoeve (2015), em seu turno, identificou que trauma na infância predizia problemas de saúde mental em grupos de adolescentes com precocidade ou sem precocidade no início de cometimento de delitos. Contudo, o grupo com precocidade na trajetória possuía uma maior prevalência de desordens de saúde mental.

Os resultados apresentam o uso de substâncias e depressão como mediadores parciais da relação entre exposição à violência familiar e envolvimento em lesão corporal (Fix; Alexander; Burkhart, 2018), os sintomas de transtorno de estresse pós-traumático como mediadores da relação entre trauma e condutas violentas (Aebi et al., 2017), problemas de saúde mental como mediadores da relação entre experiências adversas na infância e cometimento de delitos (Basto-Pereira; Maia, 2019), o abuso de drogas e problemas de saúde mental (e a coocorrência destes problemas) atuam como mediadores da relação entre experiências adversas e reincidência (Craig et al., 2019).

Prevalência de comportamentos suicidas e variáveis associadas

Em alguns dos estudos já citados, também se investigaram questões referentes ao suicídio, em específico, à ideação suicida, com prevalências em torno de 17 a 20% (Lemos; Faísca, 2015; Mcardle; Lambie, 2018). As pesquisas que tiveram como alvo específico adolescentes infratores alcançaram índices semelhantes. Em Moore, Gaskin e Indig (2015), 16% dos adolescentes do estudo reportou ter ideação suicida e 10% já realizou tentativa de suicídio; em Kemp et al. (2016), 14% da amostra relatou ter histórico de ideação ou tentativa suicida, e em Laporte et al. (2017), 23% já teria se engajado em autolesão.

Os fatores identificados como associados a esses comportamentos foram: experiências adversas na infância – exposição repetida à violência na família, abuso sexual e histórico de traumas (Moore; Gaskin; Indig, 2015; Kemp et al., 2016; Laporte et al., 2017; Shepherd et al., 2018), problemas de adaptação escolar – relacionados a baixo desempenho ou a relações interpessoais (Laporte et al., 2017; Shepherd et al., 2018), histórico de uso de substâncias, reincidência infracional (Kemp et al., 2016) e transtornos de saúde mental (Moore; Gaskin; Indig, 2015; Shepherd et al., 2018).

Richmond-Rakerd et al. (2019), em um estudo longitudinal com adolescentes da população, buscaram identificar diferenças entre adolescentes que cometem autolesão e adolescentes que cometem autolesão e violência heterodirigida (denominados “dual harmers”). Em comparação com o grupo que comete autolesão, os dual-harmers possuem um histórico de mais vitimização, de comportamentos de autolesão e sintomas de depressão na infância. Apresentam maiores índices de sintomas psicóticos, dependência de substâncias, menor autocontrole, bem como QI e aspectos de personalidade característicos como resistência a mudança, labilidade emocional e interpessoal.

Por último, Ruch et al. (2019) avaliaram retrospectivamente o histórico de saúde mental e eventos de vida de adolescentes (judicializados ou não) que haviam cometido suicídio. Considerando os fatores de risco para o suicídio – histórico de tentativas, incidência de psicopatologias e uso de álcool e drogas –, os grupos de adolescentes não apresentaram diferenças entre si. Sugere-se, portanto, que aspectos da privação de liberdade poderiam estar associados ao aumento do risco de suicídio – dado que as taxas de suicídio de adolescentes em centros de internação são consideravelmente mais altas do que aquelas observadas na população geral.

Referente à divulgação de intenção de suicídio, os adolescentes judicializados tinham menos probabilidade de divulgar intenção de suicídio a outra pessoa antes de cometer o ato (menos de 20%) e de exibir sintomas depressivos (ou de ter sintomas diagnosticados) que levariam ao suicídio. Entre os adolescentes da amostra que tinham algum problema de saúde mental, a depressão/distimia era o mais comum, com as taxas mais altas entre os adolescentes não judicializados (68,9%) em comparação aos judicializados (48,7%). Ainda, os resultados mostraram que mais de 90% dos suicídios de adolescentes judicializados, em centros de privação de liberdade, aconteceu nos primeiros 30 dias.

Rafaelle C. S. Costa rafaelle.costa@usp.br

Psicóloga e Mestre em Ciências pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), Brasil.

Fernanda Papa Buoso fernanda.buoso@usp.br

Psicóloga e Mestranda vinculada ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), Brasil.

Thales Vinícius Mozaner Romano thales.romano@usp.br

Psicólogo e Mestrando vinculado ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), Brasil.

Marina Rezende Bazon mbazon@ffclrp.usp.br

Doutora em Psicologia e Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), Brasil.