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Da cidade fragmentada à cidade como espaço de brincar: a invenção de uma metodologia lúdica de pesquisa

Alice Vignoli Reis
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7444-4729

Mônica Botelho Alvim
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3522-4154

Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras – liberdade caça jeito.
Manoel de Barros

A intensificação de processos urbanos de segregação e violência tem tornado o espaço da cidade cada vez mais hostil às crianças e adolescentes, especialmente aos que moram em favelas. As lógicas instituídas de habitação e circulação priorizam o desenvolvimento do capital, de modo que pode até parecer disparatada a afirmação de que a cidade pode ser também um espaço destinado à brincadeira. No presente artigo, pretendemos compartilhar aspectos de um processo de pesquisa desenvolvido em parceria com crianças e adolescentes, em que uma das principais descobertas foi a possibilidade de produzir desvios em relação a estas lógicas habituais e instituídas de se estar na cidade, em direção a uma lógica brincante. Em particular, pretendemos frisar como o esforço de estabelecer uma pesquisa de forma efetivamente horizontal com crianças e adolescentes culminou na invenção de uma metodologia lúdica de investigação.

Essa pesquisa (REIS, 2017) partiu de um objetivo central: investigar as possibilidades de reinvenção de um espaço urbano fragmentado, demarcado pela distinção corpóreo territorial de direitos. Esta investigação, por sua vez, partia de uma indagação sobre as corporeidades que se produzem em uma cidade segregada e sobre como essas corporeidades, a partir de suas lógicas de circulação e habitação, seguem produzindo (ou reproduzindo) os modos de configuração urbana. Esse objetivo – estabelecido de forma acadêmica pelos pesquisadores adultos – emergiu de um processo vivido em um longo período de trabalho com crianças e adolescentes de uma favela no Rio de Janeiro, Brasil. A pesquisa ocorreu no âmbito do projeto de extensão universitária Expressão e Transformação: arte e subjetivação com adolescentes em comunidades, vinculado ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e desenvolvido em parceria com a ONG Arte de Educar. Este projeto fundamentava-se na articulação entre Gestalt-terapia, fenomenologia e arte contemporânea e trabalhou, ao longo de sete anos, com experimentações artísticas multiculturais com jovens moradores da Favela da Mangueira. As oficinas eram planejadas pela equipe de extensionistas, orientadas por uma pergunta central: “Como é ser criança/adolescente na Mangueira?”, a partir da qual eram elaboradas atividades que pretendiam alargar as possibilidades de compreensão de sua situação no mundo.

Ao longo dos anos de trabalho do projeto, a temática das fronteiras urbanas foi se delineando como uma questão importante a ser trabalhada: em algumas ocasiões em que saímos do território da Mangueira para explorar outros espaços da cidade, por exemplo, foi frequente o estranhamento das crianças e adolescentes com a possibilidade de habitarem determinados espaços públicos e de lazer. Houve inclusive uma ocasião em que uma das crianças perguntou à coordenadora do projeto de extensão se tinha sido ela a conseguir uma autorização para que eles todos estivessem nos jardins do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, um espaço público e (teoricamente) de livre circulação. Foram vivenciadas, também, algumas situações de racismo e preconceito – tanto explícito quanto velado, com as crianças e adolescentes se mostrando desconfortáveis em adentrar determinados espaços.

A experiência de uma cidade fragmentada foi emergindo e ganhando contorno, de modo que, ao longo dos anos de 2015 e 2016, optamos por explorar essa temática de uma forma mais direcionada. O recorte da pesquisa que apresentamos neste artigo refere-se ao processo desenvolvido nestes dois anos, sendo que cada qual representou um ciclo diferente do trabalho e teve uma configuração distinta, tanto da equipe de extensionistas quanto de crianças e adolescentes parceiros (mantendo-se alguns elementos dos grupos entre um ano e outro): em 2015, os dispositivos utilizados para a reflexão sobre as fronteiras urbanas foram oficinas artísticas ministradas dentro do espaço da ONG; em 2016, o processo investigativo foi expandido para o espaço público, utilizando-se, como dispositivos de pesquisa, exercícios de experimentações clínico-artísticas pela cidade.

Referenciamo-nos na pesquisa-ação existencial de René Barbier (2007) que tem como ideias centrais a proposição de uma prática reflexiva em espiral – em que a ação convoca à reflexão e essa provoca uma transformação na ação, e assim por diante – e a proposição de que a investigação se desenvolva de forma coletiva, pela implicação ativa de um grupo envolvido na pesquisa, considerado como pesquisador coletivo (Ibid.). Nesse sentido, as crianças e adolescentes participantes da pesquisa são considerados nossos parceiros em um campo de estudos mais amplo, que é o da questão urbana e do direito à cidade. A partir da emergência dessa temática, propusemos aos jovens moradores da Mangueira que pesquisassem conosco as fronteiras territoriais, por meio de experimentações artísticas diversas, as quais implicavam o corpo em novas/diferentes formas de vivenciar o espaço-tempo da cidade, convidando a um trabalho de desnaturalização da percepção e invenção de novas formas de estar no mundo. Esta proposição se reveste de um caráter clínico no sentido da clínica como desvio – clinamen – que, ao nosso ver, entrelaça aspectos estético-políticos.

O material bruto produzido na pesquisa abrangeu registros escritos em diários de campo e registros audiovisuais produzidos por pesquisadores extensionistas, crianças e adolescentes. Para contemplar algumas das vozes que compuseram o campo, citaremos trechos dos diários de campo dos extensionistas, trazendo, assim, lampejos das situações vivenciadas na pesquisa1. Este trabalho compreende, portanto, uma elaboração do processo investigativo que aparece na voz singular de duas adultas, mas que trazem em seus corpos sedimentos dos encontros com as crianças e adolescentes e com os outros extensionistas envolvidos no projeto. Buscamos, sobretudo, trazer nossa perspectiva dos encontros entre corpos adultos (mas que guardam em si a memória e a possibilidade da infância) e corpos de crianças; entre corpos permeados por uma linguagem acadêmica e corpos distantes desta linguagem, entre corpos do “asfalto” e do “morro” – dos estranhamentos, das potências e das novidades que puderam de aí emergir.

O direito das crianças e adolescentes à cidade

A intensificação em torno do debate acerca do Direito à Cidade – tanto em meios acadêmicos quanto em diversos movimentos sociais e artísticos – tem colocado em relevo a necessidade premente de se repensar as formas de organização da vida coletiva. A cidade do Rio de Janeiro, em particular, é marcada por um processo intenso de fragmentação urbana e por uma histórica distinção entre o “morro” e o “asfalto”, que expressa uma distinção espacial de direitos sociais na cidade (BARBOSA, 2012b). As favelas configuram-se como territórios em disputa constante entre o poder bélico estatal e as diferentes facções do tráfico que predominam nos morros. Outras regiões da cidade, como a Zona Sul, configuram-se como territórios altamente espetacularizados e fetichizados – a “cidade maravilhosa” que é vendida para os turistas estrangeiros e que serve de morada para os setores mais abastados da sociedade. Dentro deste contexto, os conflitos são frequentes e o Estado e a classe dominante estabelecem meios de garantir que a cidade permaneça apartada, em um devaneio de que seria possível manter a violência decorrente destes processos sociais de segregação restrita aos territórios favelados – considerados no senso comum como se fossem externos à cidade.

A despeito da ilusão corrente no imaginário urbano de que a cidade seria um espaço democrático, de livre circulação, as fronteiras que demarcam o processo de fragmentação urbana se fazem presentes e expressam-se pelos poderes de polícia (RANCIÈRE, 1996) que interditam e conduzem a circulação, pelo fazer legislativo sobre os corpos operado pelo planejamento urbano e por fronteiras estéticas, corporais: fronteiras de hábitos, formas de se movimentar e circular pelos espaços. Formas que podem estar mais ou menos estáticas, mais ou menos cristalizadas. Entendemos que a produção de subjetividades anestesiadas para o contato com a diferença, as quais ratificam a fragmentação urbana, dificultando ou mesmo inviabilizando o diálogo entre diferentes segmentos da cidade, engendram-se no corpo e na sua relação com o espaço da cidade (REIS, 2017).

As fronteiras sensíveis, estético-corporais, implicadas nos modos de mover e de falar, eram as que primeiro se apresentavam no trabalho da equipe do projeto de extensão: era comum que, em um primeiro momento, os estagiários da equipe extensionista fossem identificados pelas crianças como “atores ou atrizes da Malhação2”. Nosso estrangeirismo ficava ainda mais evidente nas ocasiões em que circulávamos pela favela, quando éramos rapidamente identificados e apontados como gringos. Nossos modos de andar, falar e vestir denotavam nosso não-pertencimento àquele território. Embora nossa equipe de extensionistas não fosse tão homogênea, havendo integrantes de diferentes origens e classes sociais, compartilhávamos de determinados gestos corporais e de uma linguagem que nos situava, aos olhos dos moradores mangueirenses, como seres exóticos àquele espaço, pertencentes a outra classe social. As cartografias sociais e urbanas – de divisão de classes, cores de pele, funções sociais – vigentes em nossa sociedade estabelecem alguns estereótipos que inevitavelmente se fazem presentes em encontros extra-territoriais (Ibid.) como estes.

Há toda uma corpografia (JACQUES, 2008) comum – uma inscrição do espaço no corpo – que se estabelece ao habitar um mesmo chão, de forma que os pertencimentos ao território acabam por determinar uma divisão nós X outros, estabelecendo o que nos parece exótico e o que nos parece familiar. E então a cidade, cindida em territórios pertencentes às diferentes classes sociais, habitada por pessoas com diferentes status de cidadania, padece de uma incomunicabilidade entre os territórios que, quando muito, são apenas vias de passagem ou locais de trabalho para quem lhe é estrangeiro. Apesar de ser habitada por uma imensa massa movente, em constante circulação e estar em constante reconstrução e expansão, há uma impressão de que seu movimento é, de certa forma, estático, uma vez que segue orientado por uma lógica coreográfica (LEPECKI, 2012) que tende a se perpetuar ao longo dos anos. Segundo Lepecki (Ibid.), a circulação das pessoas pela cidade poderia ser equiparada a um fazer coreográfico e político, uma vez que o ordenamento social do espaço coreografa – traça os planos de movimento – para a massa em circulação pelas ruas.

As praias são um bom exemplo dessa lógica coreográfica que se perpetua, e de como o território urbano está em disputa, como mostra a reportagem histórica Os pobres vão à praia, de Aldir Ribeiro e Felipe Paes. Realizada para o programa jornalístico Documento Especial, essa reportagem foi ao ar em 1990 e retrata a dificuldade que moradores da Zona Norte e Oeste da cidade enfrentam para chegar às praias da Zona Sul, bem como as opiniões nada favoráveis dos moradores desta última região sobre a presença dessa população nas “suas” praias. Trinta anos depois, a presença de jovens favelados nos “cartões postais da cidade” segue incomodando, mas essa população também segue insistindo em seu direito de usufruir desse espaço público de lazer. Os jovens com quem trabalhávamos se sabiam na condição de suspeitos nesses territórios – muitos já tinham tido seu caminho para a praia interceptado algumas vezes pela polícia, que, ao longo do ano de 2015, costumava parar os ônibus que faziam o caminho da Zona Norte da cidade para as praias e fazer descer todos os rapazes que tivessem alguma estética que remetesse à favela:

Falamos também sobre a praia, já que muitos imaginaram esse lugar. Trouxemos à tona o episódio dos meninos que foram barrados no caminho para a praia. O menino que estava do meu lado falou que isso já tinha acontecido com ele várias vezes, que era normal. Respondo que eu não achava isso normal, não. Ele falou que pra quem mora na favela isso é normal. Que os policiais tratam muito mal os favelados. E falou: ‘não tem aquela música que diz – rico correndo é atleta, pobre correndo é ladrão?’. Cantou também uma outra música: ‘abre espaço, que nóis é pobre mesmo’ [Caderno de campo. Alice Reis] (REIS, 2017, p. 151).

A todo o momento, as crianças e adolescentes que moram na favela se deparam com uma cidade sitiada, em que sua presença deve ser restrita a um território específico, longe da convivência com as classes sociais mais favorecidas. A todo o momento, coloca-se para esses jovens a realidade de que a cidade – especialmente os pontos destinados ao lazer – não lhes pertence. Aliás, sua presença nas praias apenas é tolerada quando estão na condição de comerciantes ambulantes e, sendo assim, não saem do seu lugar de prestadores de serviços. São clichês de classes e funções sociais que parecem se repetir indefinidamente.

Segundo Jorge Luiz Barbosa (2012a, p. 72), as favelas são “territórios que colocam em questão o sentido da reprodução espacial da cidade em que vivemos”, que deixam patente a profunda desigualdade social estruturante da sociedade brasileira. Jailson de Souza e Silva (2012, p. 60) também coloca em questão certa naturalização da fragmentação urbana quando afirma:

(…) as favelas não cercam a cidade, nem mesmo estão nela, mas são sim seus elementos constituintes: a cidade não seria o que é sem as favelas. Por fim, como é sabido, nem as cidades nem os espaços populares estão cristalizados, pois são produções históricas. Neles desenvolve-se um conjunto de práticas orientadas pelas mais diversas referências e projetos que refletem disputas materiais e simbólicas na luta pela construção da hegemonia social.

Para repensar as formas de organização da vida coletiva, consideramos necessário produzir um estranhamento dessas formas automatizadas de habitação e circulação pela cidade, desafiando essa ficção consensual do real (REIS, 2017), na qual alguns têm o direito de usufruir da praia e outros devem estar nela apenas para servir; desafiando também um ordenamento do espaço em que a favela conta como um território externo à cidade, a que se atribui menor sentido de valor, território que conta como marginal, onde é perigoso circular e cujos habitantes são sempre passíveis de suspeita. Nossa experiência com jovens da favela da Mangueira nos colocou em contato concreto e sensível com o fenômeno da fragmentação urbana e de como ela expressa uma realidade violenta, à qual os jovens moradores da Mangueira estão especialmente vulneráveis.

Algumas das histórias que ouvimos desses jovens nos confrontavam com o abismo entre infâncias vividas em diferentes regiões da cidade. Como em uma vez que estávamos conversando sobre os personagens do desenho animado Rio e perguntamos às crianças quais seriam as personagens da cidade real do Rio de Janeiro, ao que um menino respondeu: “a polícia, a milícia, o tráfico, a mulher que é roubada e o menino que foi morto ontem no Caju” (Ibid., p. 142). Essa fala deixa explícito como a violência perpassa de maneira marcante a experiência que essas crianças têm da cidade. Embora – como estratégia de sobrevivência – essa violência apareça naturalizada em algumas falas, como quando eles dizem que é “normal” serem barrados pela polícia, ela parece impactar profundamente a compreensão que esses jovens têm de si e do mundo. Em uma outra ocasião, em que perguntamos às crianças quais os seus sonhos, uma menina nos respondeu que não sonhava mais, pois sempre que sonhava, a vida lhe dava logo “dois tapas na cara”. Como viver uma infância sabendo que você pode ser o próximo a ser atingido por uma bala perdida? Sabendo que não é bem-vindo nos espaços públicos da cidade? Como sonhar? Traçar planos de futuro?

É urgente que nos proponhamos a repensar nossas lógicas de configuração urbana, uma vez que estamos muito distantes de cumprir com o que estabelece o artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), que afirma que as crianças e adolescentes devem ter garantido o seu direito à liberdade, a qual, conforme determinado pelo Estatuto, compreende os seguintes aspectos:

I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; II – opinião e expressão; III – crença e culto religioso; IV – brincar, praticar esportes e divertir-se; V – participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação; VI – participar da vida política, na forma da lei; VII – buscar refúgio, auxílio e orientação (BRASIL, 1990).

O acesso a esse direito básico de liberdade, de poder circular livremente pelos espaços públicos e comunitários, é recorrentemente negado aos jovens moradores da favela – a distinção corpórea e territorial de direitos estabelece zonas em que os direitos básicos de cidadania são sistematicamente negligenciados. Cabe a nós, enquanto sociedade, pesquisar por meios de ampliar o acesso aos direitos dessas crianças e adolescentes.

1 – As ações da pesquisa passaram por aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto teve registro CAAE 5082481500005582, tendo sido aprovado pelo parecer de número 1.359.063. Todos os nomes das crianças e adolescentes citados nestes cadernos foram trocados, de forma a preservar suas identidades.
2 – Malhação é uma novela direcionada ao público infanto-juvenil transmitida em uma rede de televisão brasileira.
Alice Vignoli Reis alice.v.reis@gmail.com

Mestre e doutoranda em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ), Brasil. Graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil.

Mônica Botelho Alvim monica.alvim@ufrj.br

Psicóloga, doutora em psicologia pela Universidade de Brasília (UNB), Brasil, e pós-doutorado em filosofia pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, França. Docente e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.