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“Eu não sei se o professor está me olhando”: o olhar e a tela

A pandemia da Covid-19 assolou o mundo como um real indomável, mudando os rumos da história e interferindo de forma inédita nas formas de vida. As imagens da devastação causada por um vírus invisível foram as mais visíveis nas telas de todo o mundo no primeiro semestre de 2020.

Diante da necessidade de se fazer o confinamento social, as atividades sociais, profissionais, escolares, econômicas e de lazer, dentre outras, passaram a ser mediadas por telas. A aprendizagem escolar e a vida profissional invadiram o ambiente familiar, tornando mais tênues os limites entre o público e o privado.

Professores e alunos se depararam com uma série de dificuldades na adaptação ao ensino remoto, além de enfrentarem outros desafios impostos e, ao mesmo tempo, agravados pela pandemia e pelo confinamento.

Quais os impactos subjetivos dessa experiência de ensino a distância sobre crianças e jovens no contexto da pandemia?

Escutando crianças e jovens

Para fazer essa reflexão, entrevistamos 15 crianças e jovens com idades entre 08 e 26 anos, alunos de escolas privadas de Belo Horizonte, que adotaram o ensino a distância no primeiro semestre de 2020. Realizamos as entrevistas por celular, em respeito à necessidade de isolamento social.

Em psicanálise, a entrevista tem sido utilizada como um método clínico de pesquisa e intervenção. Consideramos que, ao ocupar o lugar de não saber, o pesquisador dirige-se ao outro como um sujeito que possui um saber. A entrevista não segue um roteiro previamente estabelecido, apenas uma questão inicial, a partir da qual é possível seguir diferentes percursos, segundo a regra fundamental da psicanálise, a associação livre. Se a demanda de saber é do pesquisador, apostamos que, ao fazer uso da palavra, o sujeito pode passar a interrogar-se e, tocado pelo seu dizer, posicionar-se de um novo modo frente a ele.

As crianças e os jovens demonstraram interesse em contribuir com a pesquisa, sendo que alguns se mostraram até mesmo ávidos para serem escutados. O tema do ensino remoto foi atravessado por outros temas, como a pandemia, as relações familiares e sociais, os usos que fazem dos ambientes virtuais e as suas invenções.

É importante salientar que a maioria das crianças e jovens pertence a um contexto social e econômico privilegiado, contando com uma boa estrutura tecnológica e um ambiente de privacidade em casa. Apenas três jovens estudaram em escolas públicas e ingressaram recentemente na escola privada, são moradores de periferia e enfrentam restrições de acesso à internet e aos dispositivos tecnológicos em suas casas.

A maioria das crianças e dos jovens considerou que o ensino remoto e o presencial são duas formas distintas de aprendizagem, havendo uma perda da qualidade do ensino na transposição das aulas presenciais para as virtuais. Eles destacaram os seguintes problemas no ambiente virtual: a maior dificuldade de concentração; a perda da espontaneidade do professor; a menor participação dos alunos; a dificuldade de compreender alguns conteúdos específicos. Foram enumerados, ainda, problemas técnicos, como: “a aula trava por causa de problema de conexão”; “o professor ou algum aluno não consegue entrar”; “o professor cancela a live”; “o professor não sabe usar o zoom”; “tem muito barulho”; “os colegas não desligam o microfone”; entre outros.

Algumas crianças demonstraram certa decepção em relação às aulas ao vivo no ambiente online. Relataram as expectativas que criaram, no primeiro momento de isolamento social, com a possibilidade de rever, mesmo à distância, colegas e professores; e as frustrações sentidas diante das dificuldades em “ver e ser visto” pelo professor e pelos colegas. Algumas crianças disseram, frustradas, que o professor não lia as suas mensagens no chat.

Como principais aspectos positivos do ensino remoto, destacaram a economia de tempo no deslocamento casa/escola/casa, e o uso desse tempo para descansar, fazer atividades escolares, usar as redes sociais, brincar, jogar, trabalhar (no caso de alguns jovens) e ter maior contato com os familiares.

Para algumas crianças e jovens, a “videoaula” deveria ser uma prática constante, pois permite que os alunos assistam às aulas de acordo com as suas disponibilidades de tempo, local e o número de vezes que quiserem. No entanto, destacaram que essa atividade não substitui o ensino presencial, pois a explicação dada pelo professor no vídeo é sempre a mesma, ou seja, não tem variação, e não há espaço para os alunos colocarem as suas dúvidas.

Paula1, de 9 anos, diz:

nesse período de pandemia, eu queria que os professores dessem aula só no zoom2 porque a gente pode perguntar, e a professora pode responder na hora. Não gosto das aulas gravadas. Acho legal quando tem dois professores juntos no zoom, de duas matérias diferentes, porque eles falam de um mesmo assunto com conteúdos diferentes. Acho legal também quando as professoras conversam um pouquinho com a gente.

Mas, acrescenta que não gosta de fazer perguntas no vídeo: “Eu não levanto a mão para fazer perguntas, mas, se a professora me pedir pra responder, eu respondo”.

Por sua vez, Felipe, de 9 anos, comenta: “eu gosto de aula de vídeo porque posso pausar, voltar, repetir, não perco nada”, e “gosto das aulas ao vivo porque posso olhar para as pessoas”. No entanto, para alguns jovens, a vantagem do ensino remoto é que ele permite a possibilidade de ver sem ser visto. Assim, disseram que preferiam assistir às aulas com o vídeo e o áudio desligados, mantendo a sua privacidade.

Felipe afirmou também estar entediado, cansado de quarentena. E acha que os professores poderiam ser mais criativos nas aulas online, usando mais recursos de imagens, vídeos e músicas. Ele dá alguns exemplos de vídeos e músicas que poderiam ser utilizados pelos professores em suas aulas. Já Fábio, também de nove anos, chamou atenção para a questão da duração das aulas síncronas que, para ele, deveriam ser mais curtas, “pois em casa é mais difícil prestar atenção”. Ainda que demonstre estar feliz por ter mais tempo para brincar com o irmão, Fábio diz sentir falta da escola, do contato com os colegas, mencionando, inclusive, a relação de cuidado que mantinha com um amigo vítima de bullying.

Jonas, 11 anos, demonstra muito entusiasmo com as possibilidades de uso dos dispositivos tecnológicos em casa. Ele diz que com a quarentena teve mais oportunidades para usar a internet e com isso aprendeu a usar os recursos tecnológicos: realizou uma live, aprendeu a fazer animes e quer fazer uma série. “Aprendi a fazer uma captura de tela que me filma”. Diz que tem o sonho de criar um canal no YouTube. Com relação às aulas online, ele diz que o que acha legal é ficar conversando com os colegas no chat na hora da aula, sem o professor ver, e observa que na escola o professor tem mais controle, sabe o que está acontecendo, passa nas carteiras, vê cada aluno, ao passo que no Zoom o professor não tem controle das conversas, pois só lê o que foi escrito no chat depois que a aula termina.

Carla, 22 anos, disse que os colegas de faculdade estão trancando a matrícula, porque “as aulas virtuais são muito ruins; você não consegue participar sempre nos horários definidos, tem problemas de conexão à internet, falta privacidade em casa, [e] as aulas têm menos interação, são mais cansativas”.
As crianças disseram sentir falta de sair de casa, de andar no espaço físico da escola e de se encontrar com os colegas e com os professores. Paula diz que está sentindo muita falta da escola e das amigas e que, para matar a saudade das amigas, criou com elas um grupo no WhatsApp.

A angústia das crianças manifestou-se especialmente através da incerteza quanto ao momento de retorno das atividades escolares presenciais, do contato com o professor, dos passeios e atividades ao ar livre, e dos encontros com os amigos. Paula diz: “O que eu estou sentindo mais falta é de brincar com as minhas amigas”.

Alguns jovens afirmaram que a pandemia trouxe uma mudança em sua visão da vida, pois passaram a perceber a sua transitoriedade. Antônia, 18 anos, descreve essa percepção:

esse é o meu último ano na escola, eu vou me formar no final do ano de 2020. Eu tinha muita expectativa com relação a esse ano de despedida da escola. Sonhava com as festas, os eventos de incentivo, os passeios com a turma. A gente tem uma série de rituais de despedida na escola. Esse é um momento muito importante na nossa vida, que está sendo perdido. Com a pandemia e o fechamento da escola, perdi o interesse pelas aulas, perdi o incentivo pelos estudos, perdi o laço com os colegas, uma convivência de onze anos! Claro que a gente conversa pelas redes sociais, mas não é a mesma coisa. Mas o que eu sinto mais falta é do contato com os professores. Eu não estou tendo a chance de me despedir deles. Tem um lado afetivo na relação com o professor. Os professores da minha escola são muito atenciosos. Estou há muito tempo na escola, então todos os professores me conhecem, brincam comigo, são carinhosos.

Foi possível perceber alguns recursos utilizados pelas crianças e jovens para lidar com a angústia diante do desconhecido. Marina, 10 anos, disse que aceitou melhor o isolamento social depois que estabeleceu um cronograma de atividades diárias. Ela disse que está “produzindo muito” no confinamento, fazendo aulas, exercícios e também brincando, jogando e inventando coisas, e não gosta de ver notícias sobre a pandemia. Estabelecer uma rotina de atividades, brincar e evitar saber notícias sobre a pandemia foram recursos encontrados por Marina para evitar a angústia.

Por sua vez, João, de 8 anos, disse que está muito triste por não poder ver a avó:

Eu ficava com ela todo dia depois da aula. Eu gosto muito dela, a gente brincava, conversava, ela fazia bolo para mim, agora eu fico só dentro de casa. É muito ruim. Também tenho medo dela morrer de Corona. Eu fico mais tranquilo quando converso com ela por telefone e ela fala que está bem. Então eu ligo para ela todo dia.

Já Maria Fernanda, 11 anos, recorre à fantasia para evitar a angústia: “Para não ficar ansiosa, eu fico pensando que estou de férias só com os meus pais e que posso aproveitar para brincar com eles e que, quando as férias acabarem, eu vou encontrar com os meus amigos”.

O ensino a distância parece oferecer certa proteção para aqueles que apresentam dificuldades de socialização na escola. Renata, 20 anos, mostrou se sentir protegida pela tela:

Eu estou confortável em casa. Não preciso me arrumar, não preciso me mostrar. Quando sinto falta de conversar com alguém, uso o WhatsApp. Com o confinamento, eu tenho uma desculpa para não sair, não arrumar estágio. Posso adiar os projetos. Estou gostando das aulas online, especialmente porque posso desligar a câmera e não ser vista. Se você liga a câmera, você fica o tempo todo visível para todos. Na faculdade eu posso ficar lá atrás, escondida, e até dormir na carteira. Eu acho que as aulas na escola são bem melhores, o contato com as pessoas e com a universidade é muito rico, mas é mais cômodo ficar em casa.

Os jovens apontaram que as redes sociais permitem encontros e distrações no período da pandemia, diminuindo a sensação de isolamento social, mas destacaram que o seu uso também pode causar angústia. O Instagram foi mencionado por uma jovem como uma rede “falsa”, que passa a ilusão de que está todo mundo feliz e produtivo na quarentena, o que causa angústia “porque você se sente diferente, improdutivo, incapaz”.

Algumas crianças e adolescentes falaram do cansaço provocado pelo excesso de tela. Maria Fernanda, 11 anos, disse que sempre ficou “colada” no celular, mas por prazer. Com o ensino remoto e o aumento do uso das redes sociais, ela disse que sentiu “um cansaço de tela”. Assim, começou a fazer atividades que até então não fazia, como ler um livro, desenhar e escrever poesias em um caderno.

As jovens que ingressaram recentemente em uma instituição de ensino privada demonstraram maior angústia em relação à pandemia e ao ensino remoto, como nos diz Gisela, 20 anos:

Não estou gostando das aulas on-line. Estudei em escola pública a vida toda e agora estou numa universidade privada. Convivo com pessoas de diferentes classes sociais em meu curso. Não é fácil acompanhar um curso superior numa universidade se você estudou a vida toda em escola pública. Eu preciso estudar mais do que todo mundo, preciso correr atrás de tudo o que não tive, e não tenho recurso para comprar todos os livros e materiais necessários. Com a pandemia parece que tudo se agravou. Eu não tenho um computador de uso pessoal, nem um espaço privado para estudar em casa. As aulas virtuais não têm a mesma qualidade das aulas presenciais. O contato próximo com o professor é muito rico, no vídeo é tudo muito impessoal, e o professor perde a espontaneidade. Não tem aquele contato olho a olho.

1 – Utilizamos nomes fictícios para preservar as identidades das crianças e dos adolescentes.
2 – Aplicativo utilizado para a realização de videoconferências.
Nádia Laguárdia de Lima nadia.laguardia@gmail.com

Professora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil. Coordena o grupo de pesquisa: Além da Tela: psicanálise e cultura digital (PPG-PSI) e o Programa de Extensão da UFMG: Brota: Juventude, Educação e Cultura. Pesquisadora associada ao GT Psicanálise e Educação da ANPEPP.