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Intergeracionalidades em análise: (re)composições ético-estético-políticas em pesquisas-inter(in)venções com crianças e adultos

A possibilidade de levantar alguns questionamentos à temática da intergeracionalidade parece oportuna em tempos pandêmicos1. Encruzilhadas não tão novas, impetradas ou recrudescidas por racionalidades neoliberais que engendram crianças-futuro (sempre algumas e todas idealmente) e crianças-sem-futuro (uma das expressões do outro racializado por matrizes coloniais de poder-saber-subjetivação), apartadas do sentimento de estar no presente, embora sob seus efeitos excludentes e de silenciamento. O que temos a dizer às crianças? A que crianças temos buscado dizer algo? O que as crianças, em suas diferentes realidades, têm nos dito? (Deleuze, 2011; Castro, 2013; Tavares, 2014).

Os pactos geracionais em prol de um mundo mais justo e plural são desafios políticos que precisam de oxigênio. Não dá para respirar. Agudizam-se e cronificam-se as desigualdades brasileiras, o que faz com que o direito fundamental à respiração, isto é, à possibilidade de permanecer vivo, ainda mais em tempos de pandemia (Mbembe, 2020), seja restrito aos segmentos favorecidos por históricas hierarquizações raciais, de classe e gênero. Precisa-se de esforços na direção de uma ética que contemple “[…] novos desejos de comunidade emergentes, novas formas de associar-se e dissociar-se que estão surgindo, nos contextos mais auspiciosos ou desesperadores” (Pelbart, 2003, p. 41).

As pesquisas recebem os pedidos esperançosos de reviravolta no desassossego que a pandemia gerou ou agravou em parte da população do mundo. Alguns insistem em respirar, apesar dos desalentos do presente, sem tramar futuro no presente. Crianças e adultos, figuras de subjetividade particularizadas por regimes de verdade e saber-poder (Foucault,1996) que, a partir de binarizações, normatizam, hierarquizam e (in)viabilizam vidas na modernidade ocidental e colonial – à qual ainda nos encontramos submetidos, não sem resistência. Regimes, estes, que não promoveram uma ética de co-responsabilização (Nandy,2015). Esta tarefa está por ser feita em toda a sua complexidade e com urgências macropolíticas e micropolíticas em jogo (Deleuze; Guattari, 1999; Deleuze; Parnet,1998; Guattari,1987).

Neste texto, apresentam-se recomposições que se colocam como possibilidade para tramar horizontes e políticas de pesquisa, tendo em vista o desafio ético do (re)posicionamento subjetivo e acadêmico, tal como possa se atualizar nas experiências de cada tempo – não apenas de cada idade – como ações políticas que esculpem a vida como obra de arte (Deleuze, 2000; Rolnik, 1993).

Múltiplas cenas de pesquisa-inter(in)venção e transversalização de saberes

As múltiplas cenas que são evocadas neste texto referem-se, ao mesmo tempo, às trajetórias de pesquisa e aos campos de forças que as agenciam e as tornam possíveis. Estão diretamente relacionadas à perspectiva da pesquisa-intervenção e ao ethos por ela definido, considerando seus distintos modos de se materializar.

Nos arranjos teórico-metodológicos analisados a seguir, a transversalização da Psicologia Social e Política e do campo múltiplo e divergente dos estudos da infância é uma aposta para desterritorializar modos de subjetivação hegemônicos e empreender co-extensivamente planos de criação e potência das vidas (Barros et al.,2017; Barros et al, 2020; Costa; Costa; Rocha, 2015; Costa; Moura Junior; Barros, 2020). A Intergeracionalidade, como problema, produz rizoma em que várias entradas são possíveis e válidas, em que se cruzam questões como a da escuta das crianças e seus efeitos, a das práticas institucionais que se ocupam das crianças e que se passam nas fronteiras entre Educação, Psicologia, Políticas Públicas e Assistência Social, a dos modos de participação das crianças em contextos periféricos urbanos e a do plano formativo que se dá nos encontros entre as crianças e entre crianças e adultos.

Consideram-se modos de subjetivação hegemônicos aqueles que, como expressão das forças coloniais-capitalísticas (Rolnik, 2018), enquadram e conformam limites enrijecidos para as relações entre adultos e crianças. Ações e imaginários que se materializam no “para crianças” e “sobre crianças”. E que nesta cartografia, pretende-se torcê-los na direção do “entre”, do encontro, sem definição do complemento (entre quem?). Com efeito, apostamos na cartografia como método ad-hoc de pesquisa-inter(in)venção com e entre crianças e adultos. Ao pesquisar-intervir com e entre crianças e adultos, pensamos ser necessário afirmar/ocupar/mapear um território existencial intergeracional, acompanhando processos de subjetivação que nele se engendram, a partir de um plano coletivo de forças heterogêneas: “A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação, de semiotização – ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica – não são centrados em agentes individuais, nem em agentes grupais” (Guattari; Rolnik,1999, p. 31)

Importam, além dos sujeitos-formas (crianças e seus outros) sobrecodificadas pelas máquinas binárias e abstratas, forças, movimentos, linhas, mapas que aparecem como outra figuração para os modos de subjetivação (Deleuze; Parnet,1998; Liberato; Costa.; Barros, 2019).

O “para” e o “sobre” constituem-se cotidianamente como processos instituídos que resultam em políticas representacionais e que favorecem o binarismo adulto/criança (Kastrup, 2000). São signos do regime de saber-poder moderno e colonial e da produção correlata da adultez modelar branca, da criança burguesa, dos especialismos e das instituições de formação e cuidado (Nascimento, 2002), que apagam ou estigmatizam outras existências em um país em que o adultocentrismo se agencia à sua forte tradição escravagista e autoritária.

Apostamos em uma inter(in)venção articulada à pesquisa cartográfica, de modo a enfatizar seu caráter participativo e seus efeitos na prática micropolítica de invenção de mundos outros. Afinal, intervenção na pesquisa-intervenção cartográfica relaciona-se a intervir nas composições de mundo pelo plano de criação em que o exercício da pesquisa habita (Passos; Barros, 2009):

[…] não corresponde a uma ação unilateral por parte do(a) pesquisador(a), nos contextos e sujeitos pesquisados, mas sim uma intercessão que, como tal, incide nos/nas participantes, no/na pesquisador/a, no problema de pesquisa e no campo-tema estudado ao mesmo tempo, transformando ambos/as. Logo, trata-se de uma ação conjunta e recíproca, uma in(ter)venção ou uma inter-invenção (Costa; Moura Junior; Barros, 2020, p. 22)

Realçar a condição de pesquisa inter(in)venção da cartografia tem sido sustentado em trabalhos como Costa, Moura Jr e Barros (2020) para afirmar a potência do mergulho no plano das experiências que produzem modos de subjetivação, particularmente em contextos periferizados. Assim, atentando para a análise de nossas implicações nesse processo e também criando dispositivos de análise coletiva das condições psicossociais que engendram redes e circuitos de violência contra juventudes periferizadas, bem como dispositivos de experimentações coletivas da produção de sentidos e formas de vida em contextos, onde são aviltadas as próprias condições para uma vida efetivamente vivível. Nessa aposta, além do caráter participativo da pesquisa, investe-se na reinvenção da própria forma-pesquisa e na sua potência de diferir ao perscrutar sentidos e cotidianos de sujeitos e grupos.

Nesta trama, e por essas lentes, problemas como o do adultocentrismo, da escuta da voz das crianças, da sua afirmação como sujeito de direitos, dos seus modos de participação, da formação daqueles que com elas dividem a vida em instituições e práticas sociais, das políticas públicas destinadas à infância vão rachando. Como apontam Costa, Moura Jr. e Barros (2020, p. 20), “apostar num tipo de pesquisa participativa nas margens deve implicar a produção de uma pesquisa marginal – isto é, feita e inserida nas margens e à margem das formas hegemônicas de pesquisa”. Tarefa ética negativa ao modo deleuziano:

[…] não remontar aos pontos, mas seguir e desemaranhar as linhas: uma cartografia, que implicava numa microanálise […]. É nos agenciamentos que encontraríamos focos de unificação, nós de totalização, processos de subjetivação, sempre relativos, a serem desfeitos a fim de seguirmos ainda mais longe uma linha agitada (Deleuze, 2000, p. 109).

O exercício da cartografia pode constituir os problemas citados anteriormente – adultocentrismo, voz, participação e formação – como analisadores de práticas institucionais e psicossociais cotidianas, ou seja, como aquilo que produz análise ou que revira as lógicas de produção de sentido. “Analisadores como aqueles acontecimentos que podem agitar […], permitindo surgir com mais força uma análise, que fazem aparecer, de um só golpe a instituição ‘invisível’” (Lourau, 1993, p. 35). Em outras operações de pesquisa, são eles mesmos que estarão em análise, pela força de dispositivos os mais diversos. Dito de outro modo: são fraturados em suas obviedades, naturalizações, mas também convocados em seus inusitados.

1 – Este preâmbulo inspira-se na compilação de 136 textos de autorias diversas, intitulada Pandemia Crítica, publicação on line, realizada pela editora N-1 e deflagrada com o início da pandemia pelo novo Coronavírus em janeiro de 2020 e que segue afetando o planeta. A publicação durou 4 meses.
Érica Atem G. de A. Costa ericaatem@ufc.br

Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará/UFC, Brasil. Docente do Mestrado Profissional em Psicologia e Políticas públicas na UFC/Sobral, docente do Depto. de Psicologia/UFC. Coordena o Maquinarias: infâncias em invenção – VIESES/UFC.

João Paulo Pereira Barros joaopaulobarros@ufc.br

Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará/UFC, Brasil. Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC. Coordena o VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação.