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Meninos não choram: estudo sobre um caso de abuso sexual infantil

O campo

Atualmente, o acompanhamento às crianças vítimas de violência deve ser realizado pelo CREAS em articulação com outros serviços que compõem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) (Brasil, 1990), o qual se convencionou chamar “rede de proteção” (Brasil, 2017). Quando detectada alguma situação de violência, essa rede se organiza conforme o fluxograma abaixo (Figura 1). Nesse fluxograma padrão, que não tem a pretensão de ser exaustivo, pode-se verificar, conforme indicado pela seta, o lugar do CREAS:


Fluxograma padrão não exaustivo para o acompanhamento a crianças vítimas de violência a partir de uma instituição de saúde. Fonte: Adaptado de Conselho Federal de Medicina (CFM) (2018, p. 315).

Em um lugar discreto na rede, o CREAS entra em cena apenas após uma série de medidas prioritárias serem tomadas ou, se necessário, para garantir a atenção a essas medidas e aos direitos das crianças. Segundo o manual editado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, 2011), intitulado Orientações Técnicas: Centro de referência especializado de Assistência Social – CREAS, esse serviço de atendimento especializado deve acolher as crianças vitimadas ou em situação de risco por violência e suas famílias, oferecendo-se como ponto de referência em determinado território, escutando-as de forma profissional, sigilosa e qualificada, e ofertando informações sobre serviços, benefícios disponíveis e direitos. Isso de forma atenta às demandas e aos projetos de vida singulares e com respeito à autonomia individual e familiar (MDS, 2011).

Observa-se, ainda hoje, que as crianças que se queixam de abusos são alvo de grande desconfiança. Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 2% dos casos de abuso sexual são registrados (Scmickler; Rech; Gomes, 2003). Essa grande taxa de subnotificação condiz com os estudos que apontam que, por motivo de “temor pessoal” (Scmickler; Rech; Gomes, 2003, p. 78), parte das pessoas próximas ao infante tomam partido do agressor, principalmente quando ele faz parte da família ou é uma pessoa influente. Estudos também revelam que o ambiente familiar é extremamente hostil às mulheres, e que a violência intrafamiliar, efetuada pelo parceiro, é a forma mais comum de violência praticada contra elas (Acosta; Gomes; Barlem, 2013). Recentemente, com o advento da quarentena domiciliar em decorrência da pandemia de Covid-19, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, registrou um acréscimo de 18% no número de denúncias registradas pelos serviços Disque 100 e Disque 180 entre os dias 1° e 25 de março de 2020 (Vieira; Garcia; Maciel, 2020). Esses fatores podem contribuir para o silenciamento da violência nas famílias e para a grande taxa de subnotificação de violências contra crianças. Além desses fatores, cabe ainda atentar para a possibilidade de que, mesmo nos casos nos quais há algum familiar com o intuito de registrar a queixa da criança, pode ocorrer de o relato ser desautorizado nos locais de denúncia. Sendo assim, esse contexto de dependência emocional ou econômica, temor pessoal e pouco acesso às políticas públicas contribui para que, em alguns casos, haja um verdadeiro “complô do silêncio” (Scmickler; Rech; Gomes, 2003, p. 77).

Em consonância com as considerações de Ferenczi (1992c/1933), verifica-se no manual do Conselho Federal de Psicologia, intitulado Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na rede de proteção às crianças e adolescentes em situação de violência sexual (CFP, 2020), que é necessário para a efetivação da proteção da criança que ela seja escutada sem julgamento. Apesar de a escuta acolhedora ser fundamental para o atendimento de qualquer sujeito em situação de violência, para a clientela infantil esse cuidado assume lugar de destaque, pois, ao evitar a desautorização do relato da criança, pode-se, em alguns casos, impedir que a traumatização ocorra. Na atualidade, a política pública para o enfrentamento do abuso contra crianças preconiza que seja garantido ao infante um atendimento multiprofissional e em rede com o objetivo de promover a interrupção urgente e definitiva do ciclo de violência a partir da identificação da situação de abuso e de suas causas, bem como o envolvimento de parceiros profissionais e institucionais (CFP, 2020).

Ferenczi e a desautorização da experiência de abuso

Como visto anteriormente, o trauma, segundo Ferenczi, se dá em dois tempos. Primeiramente ocorre um choque, situação de difícil elaboração, também chamada de comoção psíquica. Posteriormente, para que se efetive o trauma, é necessária a incidência da desautorização social do sofrimento do sujeito.

A comoção psíquica é resultado de um desprazer repentino que não pode ser superado por meio de uma ação de transformação do mundo pelo afastamento do perigo através de reação de defesa física (reação aloplástica). Com o fracasso da reação aloplástica, são iniciadas reações eminentemente adaptativas em relação à realidade violenta a fim de conter a dor (reação autoplástica). Sendo assim, podem se dar, portanto, o investimento em representações que remetem a um prazer futuro ou prazer in spe (expectativa de prazer) (Ferenczi,1992d/1934). Essa expectativa de um bem maior no futuro, ou de articulação da dor como um mal necessário para aquisição de algo valorizado, pode tornar em alguns casos o desprazer suportável, como ocorre, por exemplo, na extração de um dente cariado. Nessa situação, reações musculares e psíquicas substitutivas que podem ser qualificadas de “ilusionais” (Ferenczi,1992d/1934, p. 110) tornam a dor da extração tolerável. Quando isso ocorre, não há traumatização.

Nos casos nos quais há traumatismo, estabelece-se uma incapacidade de superar a situação de desprazer por meios próprios e, em decorrência disso, com o objetivo de conter a forte reação de angústia, ocorre o acirramento da reação autoplástica no sentido de uma autoaniquilação. É também fundamental para a traumatização que se instaure uma total falta de esperança em decorrência da solidão provocada pela desautorização do sofrimento do sujeito, aspecto que será melhor delineado adiante. Essa situação extrema de autodestruição acarreta uma cisão do Eu que elimina, por meio de alucinação negativa, qualquer resquício de incômodo ou indignação em relação à situação dolorosa (Ferenczi,1992d/1934). Tal processo pode gerar de imediato uma desorientação psíquica e, a longo prazo, a aflição da angústia pode ser substituída por miríades de sintomas como medo de enlouquecer, mania de perseguição, megalomania, tendência a proteger-se excessivamente ou a instalação de um estado de passividade e incapacidade de opor resistência (Ferenczi,1992d/1934).

Esses sintomas são acompanhados pela compulsão à repetição inconsciente da cena traumática que é normalmente manifesta em sonhos dolorosos. Porém, a forte reação de desorientação psíquica utilizada para contenção da dor no momento do trauma produz um estado de incapacidade de percepção que faz com que, de fato, não haja na memória resquícios perceptivos da cena traumática além da dor (Ferenczi, 1992d/1934). A repetição inconsciente por meio dos sonhos parece se apresentar como uma tentativa solitária de cura, mas que só é capaz de produzir uma repetição desse estado de comoção dolorosa sem memórias que se apresenta como um momento que ficou congelado no tempo. Para ilustrar esse mecanismo de compulsiva insistência, Ferenczi (1992d/1934) faz alusão ao sprit d’escalier (espírito da escada da tribuna), expressão francesa que se refere ao ato mental infrutífero, porém irresistível, de se retomar, tarde demais, tentativas de elaborar respostas mais satisfatórias para uma determinada discussão que já se encerrou.

Na proposição relacional ferencziana, o momento decisivo para a traumatização é a segunda cena que instaura a solidão em meio à dor por meio da desautorização [Verleugnung], que se dá posteriormente ao tempo da comoção psíquica (Pinheiro, 1995). Na cena da desautorização, nos casos de abuso sexual infantil, a criança violentada — cuja fase de maturação produz um acirramento de sua condição de vulnerabilidade em relação às palavras dos adultos de confiança — dirige-se a eles para que tenha uma confirmação a respeito do que se passou e que ela não compreendeu bem. Entretanto, seu relato é desmentido (Pinheiro, 1995). Segundo Kupermann:

O não reconhecimento por parte do outro da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica uma “desautorização” da sua experiência (e do seu testemunho) no campo social, sendo esta “desautorização”, ela mesma, primordial na constituição do trauma (Kupermann, 2015, p. 39).

Nesse sentido, a direção de tratamento proposta por Ferenczi segue rumo à produção de condições mais favoráveis para que haja, aos poucos, revisitações à cena traumática com a elaboração de sucessivas diferenças, de forma que se possa ir produzindo, de fato pela primeira vez, a percepção do que houve e as descargas motoras necessárias que ficaram paralisadas e cindidas em uma espécie de congelamento temporal (Ferenczi,1992d/1934). Essa condição mais favorável para a elaboração da cena traumática é referente à produção de um contexto a partir do qual o sujeito não esteja mais completamente só e que possa obter ajuda na realização do luto de tudo que perdeu com o trauma de maneira definitiva e que, portanto, não pode mais reaver. Além disso, é importante a tentativa de fornecer ao sujeito traumatizado incentivo — e por que não também condições — para uma nova vida que possa ser construída a partir do que ainda pode obter alguma reparação e a partir de outras coisas inteiramente novas que possam valer a pena em sua existência (Ferenczi,1992d/1934). No contexto específico da clínica de Ferenczi com adultos traumatizados na infância, as relações abusivas tinham se dado contingencialmente em um passado distante, porém, nada parece se opor à transposição das ideias do psicanalista para casos nos quais a violência é atual, como é o caso das crianças atendidas pelo CREAS e que, portanto, demande providências concretas e urgentes, como o fornecimento de condições materiais e intervenções diretas no sentido de produzir a interrupção do ciclo de violência.

Segundo Dal Molin (2016), pode-se entender que o recurso ao reconhecimento e ao auxílio por parte de outras pessoas é o último reduto de esperança para os sujeitos em situação aflitiva. A atribuição de maior importância etiológica a essa cena, na qual está em jogo a relação com os objetos externos, é a contribuição original do analista húngaro à teoria psicanalítica sobre o trauma. É nessa cena em que existe o risco da desautorização, mas também a possibilidade de se pedir auxílio na elaboração de vivências excessivas (Dal Molin, 2016). Ou seja, existe também como possibilidade de desfecho para a segunda cena o antônimo da desautorização, que é a possibilidade de se reconhecer socialmente a vulnerabilidade do sujeito que relata ter sido abusado e a realidade de suas percepções e sentimentos (Gondar, 2012). É possível especular se não é essa esperança nos efeitos benéficos do reconhecimento do sofrimento e da vulnerabilidade de quem vive uma realidade abusiva a característica mais importante, de um ponto de vista clínico, da perspectiva ferencziana.

Estudo de caso

Primeiro tempo: um choque silencioso ou soldados não choram

Foi recebido em atendimento, no CREAS, um menino de quatro anos encaminhado pelo Conselho Tutelar. Ele veio acompanhado de sua avó paterna que, muito emocionada, disse que os apelos do neto não estavam sendo ouvidos. Ela relatou que já havia procurado o Conselho Tutelar e a Delegacia, e apresentou cópia de registro de ocorrência sobre a situação que afligia a criança. O menino se queixava de que um primo de dez anos de idade estava fazendo brincadeira desagradável, na qual colocava o pênis em seu traseiro. A avó relatou, inconformada, que por diversas vezes percebia que o ânus do neto estava machucado e o pênis esfolado, até a situação-limite, na qual os ferimentos foram tão graves que a criança precisou ser levada ao hospital para ser socorrida. Apesar de ter apenas quatro anos, o menino apresentava ótima dicção e vocabulário. Ademais, trazia com frequência colocações desconcertantes a respeito dos adultos, principalmente em relação à sua mãe, sempre com um ar cômico, um verdadeiro enfant terrible5. Uma frase proferida em uma das entrevistas com os profissionais deu voz ao sentimento que paralisou o caso durante um tempo: “Mas eu não vejo… assim… na minha percepção… uma questão de sofrimento dele com isso, né”6. Porém, a respeito disso, Ferenczi teria dito com precisão: katonadolog ou meninos não choram.

O solitário soldado de apenas quatro anos se encontrava impossibilitado de deserção ante a situação traumática intrafamiliar. Constrangido pelo contexto que o expunha a uma situação excessiva, desenvolveu uma forma de protesto que oscilava entre ações silenciosas autoplásticas e a manifestação de protestos contra o primo e a mãe através de falas contundentes e agressividade. Em entrevista com o primo de dez anos, o mesmo se mostrava cabisbaixo e pouco falante, negava estar sofrendo ou praticando qualquer tipo de abuso e trazia como única queixa a agressividade da criança de quatro anos que às vezes batia nele com um cabo de vassoura.

O pequeno soldado era filho de pais separados e vivia em regime de guarda compartilhada após decisão judicial que estipulou que a criança deveria alternar quinze dias consecutivos na casa da mãe com cinco dias na casa do pai e da avó paterna. Em atendimento com o pai, o mesmo informou que a iniciativa em relação à regulamentação da guarda foi dele, e que precisou apelar para a Justiça, tendo em vista a proibição da mãe em permitir o contato com seu filho. Prossegue afirmando que só conseguiu registrar o filho quando este já contava um ano de idade, e que só pôde começar a visitá-lo quando a criança tinha dois anos. O pai alegava que, de fato, nunca foi casado com a mãe da criança, e que ela nunca o perdoou pelo abandono. A criança relata que o abuso ocorria na casa da mãe, onde o primo de dez anos frequentava. A mãe, ciente da queixa, sustentava que os relatos do filho eram mentiras e que ele estava sendo manipulado pela avó paterna com objetivo de prejudicá-la. Em uma visita domiciliar, a mãe recebeu a equipe do CREAS na calçada de forma impaciente e não compareceu aos atendimentos agendados.

A criança parecia cindida diante de uma situação de difícil elaboração. A vivência sexual com o primo nem sempre era vivida imediatamente como um sofrimento. Outro profissional relatou: “mas ele trazia… relatava com muita tranquilidade o que acontecia”, “como se fosse brincadeira com o outro primo”7. Porém, havia algo que o assombrava com frequência, um espírito aterrorizante que o impelia pela busca de um interlocutor que o ajudasse — com a oferta de um tempo de escuta — na sua luta solitária rumo a alguma elaboração do ocorrido. Era o sprit d’escalier, que o puxava pelo pé de volta à cena perturbadora com o primo, exigindo o impossível para um menino de quatro anos, a saber: uma resposta satisfatória diante de um encontro sexual incestuoso e que o desembaraçasse dos sentimentos paradoxais de prazeres e dores insuportáveis ou, o que também é possível, que o permitisse superar os lapsos de memória típicos das vivências traumáticas (Ferenczi,1992d/1934). Aqui é possível discernir em Ferenczi, enquanto direção de tratamento, uma política da escuta em relação às crianças que é distinta da política do silenciamento; na primeira, o silêncio do adulto não é “silêncio de morte” (Ferenczi, 1934/1992e, p. 111) que produz ignorância, mas silêncio de vida que cria um tempo de escuta.

Verificou-se que, diante da postura da mãe que desautorizava seu relato, o menino dizia sem meias palavras que “não gostaria de viver mais naquela sujeira”. Ao mesmo tempo, afirmava com surpreendente sobriedade que gostava da mãe e “sentia saudades e gostaria de visitá-la durante apenas dois dias” e não durante quinze dias consecutivos, pois considerava tempo em demasia. Além do mal-estar em relação ao primo, o menino trazia também outras queixas: “A minha mãe não passeia comigo”. Queixava-se também de outras negligências na casa da mãe, como pouca alimentação e falta de atenção. Além disso, a avó paterna e a escola denunciavam falta de higiene e de cuidados de saúde em relação ao menino.

A demanda por uma maior atenção familiar para a criança se destacou, segundo os profissionais, enquanto uma das causas da relação abusiva entre as crianças. Nesse sentido, a situação de abuso pôde ser interpretada como um sintoma de um ambiente familiar no qual as crianças eram deixadas muito sozinhas. Desse diagnóstico, decorreu a demanda pelo acompanhamento da família, principalmente da mãe em suas dificuldades pessoais em escutar e cuidar de seu filho. Certa vez, o menino trouxe fotos para o atendimento no CREAS e apresentou seus parentes um a um, o que foi entendido como uma demanda para que as relações familiares se tornassem presentes em seu atendimento.

Diante da desautorização do seu sofrimento, as queixas do pequeno soldado solitário em relação ao comportamento de sua família mostravam uma desconcertante maturidade e uma noção precisa do mal que o acometia, que era a falta de uma presença familiar significativa no cuidado das crianças, que estavam, de fato, abandonadas a si próprias.

5 – Termo em francês utilizado para se referir à criança que, por sua inteligência acentuada, habitualmente diz coisas embaraçosas para os adultos. Esse termo é utilizado também para se referir a profissionais de vanguarda que obtiveram sucesso agindo de forma não ortodoxa.
6 – Fala extraída de entrevista com os profissionais.
7 – Fala extraída de entrevista com os profissionais.
Leonardo Ribeiro Gonçalves de Oliveira leonardorgo@gmail.com

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRRJ e especialista em saúde mental (IPUB/Universidade federal do Rio de Janeiro).

Leonardo Câmara lcpcamara@gmail.com

Universidade Federal de São Carlos, Brasil. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (DPsi/UFSCar), mestre e doutor em Teoria Psicanalítica (Universidade Federal do Rio de Janeiro), membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF).

Fernanda Canavêz fernandacanavez@gmail.com

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Professora do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRRJ. Coordenadora do Marginália - Laboratório de Psicanálise e Estudos sobre o Contemporâneo.