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UNICEF, (des)colonidades e infâncias: vidas negras importam

Flávia Cristina Silveira Lemos
Universidade Federal do Pará, Faculdade de Psicologia, Belém, Brasil.
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-4951-4435

Dolores Cristina Gomes Galindo
Universidade Federal do Mato Grosso, Programa de Pôs-Graduação em Psicologia, Cuiabá, Brasil
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-2071-3967

Anderson Reis de Oliveira
Universidade Federal do Pará, Faculdade de Psicologia, Belém, Brasil
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-3818-2757

Mateus Moraes de Oliveira
Universidade Federal do Mato Grosso, Programa de Pôs-Graduação em Psicologia, Cuiabá, Brasil
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-2911-1516

Este artigo busca problematizar práticas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) de (des)colonização e, paradoxalmente, de silenciamento e controle dos corpos de crianças, além de atualização dos mecanismos de colonialidades das vidas negras. Essa problematização será feita a partir de uma conversação entre Mbembe (2014, 2018, 2019), Foucault (1979, 1999, 2002, 2004, 2008a, 2008b), Sontag (2003, 2004, 2020), Carneiro (2011), Gonzalez (1984) e Butler (2018, 2019). Para tanto, interrogam-se as práticas de (des)colonização das infâncias negras, colocando em xeque as práticas do UNICEF no Brasil.

Esta agência montou o seu primeiro escritório no Brasil em 1950. Está ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), fundada no pós-II Guerra Mundial como uma reorganização da Liga das Nações. O Sistema das Nações Unidas tem fomentado articulações políticas e incidências intensivas em diferentes áreas do conhecimento e nas mais diversas políticas públicas voltadas aos mais variados grupos sociais e às questões sociais, econômicas, políticas, culturais, ecológicas e de segurança. Neste texto, busca-se especialmente problematizar as práticas de descolonizações racistas do UNICEF face às crianças e adolescentes no Brasil. A produção da diferença tem sido alvo de atenção dessa agência multilateral nos relatórios e ações políticas no país em várias esferas governamentais e não-governamentais.

Com efeito, a problematização das colonialidades é um foco de pesquisas e preocupações na atualidade, tanto em universidades quanto em organizações internacionais ligadas à ONU, tais como o UNICEF. Há 20 anos, trabalhamos com a análise de documentos em uma perspectiva histórica com fontes sobre a atuação do Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil. Desse modo, pretende-se neste artigo problematizar acontecimentos específicos sobre as infâncias negras a partir de um recorte de uma pesquisa histórica. Vale mencionar que é um momento importante para escrevermos sobre este tema, pois em julho de 2020, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos de promulgação no país, e esta lei teve contribuições dos princípios da Convenção dos Direitos Internacionais da Criança de 1989, realizada pela ONU, tendo também a participação da articulação política de assessores do UNICEF no Brasil:

O trabalho arquivístico, historiográfico, crítico-disciplinar e, inevitavelmente, intervencionista envolvido aqui é, de fato, uma tarefa de “medir silêncios”. Isso pode ser uma descrição do ato de “[…] investigar, identificar e medir […] o desvio de um ideal que é irredutivelmente diferencial” (SPIVAK, 2010, p. 64).

Questionar especificamente a colonialidade dos corpos de crianças e adolescentes negras(os) é um relevante trabalho no presente, pois ainda há inúmeras violações de direitos dirigidas a este grupo social, sobretudo no Brasil. O UNICEF chama a atenção para este acontecimento e propõe intervenções, sugere pautas e políticas equitativas. Portanto, neste artigo, aborda-se esta temática por meio de uma perspectiva da História Cultural e da Psicologia Social.

Racismos e (des)colonidades: biopolíticas, necropolíticas e resistências

As práticas colonizadoras territoriais dos últimos séculos se atualizam por meio da cultura e da ciência, bem como por meio da concorrência desenvolvimentista entre os países. A emergência dos Estados Modernos marcou o aparecimento da competição entre empresas e entre trabalhadores(as) no liberalismo capitalista, paralelamente à criação da sociedade de direitos e da invenção da infância como objeto de governo.

Os racismos culturais e os biológicos surgem com força, no bojo da construção do capitalismo liberal, e são atualizados no neoliberalismo empresarial, lançando mão de racionalidades científicas e hirarquizantes das vidas não apenas como resquícios do colonialismo, mas como uma nova roupagem de colonialidade em imperialismos cognitivos, econômicos e políticos da modernidade. Na segunda metade do século XX, acirra-se a concorrência empresarial e entre indivíduos na biopolítica, pautada no empresariamento da vida e dos estilos de existência. O modo de subjetivação do capitalismo mundial integrado intensifica as relações de exploração do trabalho, da mercantilização dos direitos e das relações sociais (FOUCAULT, 2008b).

A visão de civilização e educação passa a traçar uma métrica dos valores e das subjetividades por meio da avaliação e do exame socioemocional para classificar desempenhos e justificar desigualdades socioeconômicas. A concorrência econômica e política ganha incidência maior com os fluxos do capital global, especialmente se materializa no incremento das tecnologias gerenciais da morte em nome da defesa social, criando inimigos e matando como tal ato fosse cuidado com a vida.

A biopolítica toma a vida como foco no fazer viver e deixar morrer, podendo matar em nome da gerência da saúde e em nome da proteção social. Por isso, Foucault (1999, 2008a) assinalou a função tanatopolítica no interior das políticas de governo da vida, na medida em que matar e exterminar grupos, os quais foram desumanizados, pode ser uma tática de morte materializada na biopolítica. Nesse sentido, o autor salienta que nunca se matou tanto quando a vida foi apresentada como valor supremo de uma certa sociedade.

Matar em nome da vida é uma necropolítica, e gerir a vida, deixando morrer e fazendo viver alguns face à eliminação de outros, passou a ser um objetivo da biopolítica (FOUCAULT, 2008b; MBEMBE, 2014, 2018, 2019). Para organizar essas práticas, constitui-se esquemas valorativos entre os grupos sociais, tais como: testes, sanções, punições, hierarquias, comparações, controles, repartições e classificações. Os racismos ganham visibilidade nessas ações e se tornam vetores de sectarismos, fundamentalismos, comunitarismos e extremismos como racionalidades de mediação dos corpos. Para tanto, o conceito de desenvolvimento ganha centralidade, pois é por meio dele que se enquadra os corpos em escalas e lugares em gráficos dos níveis de inclusão e exclusão, em uma determinada sociedade.

Foucault (2004) assinalou que o conceito de desenvolvimento foi importante para vertentes com enquadres psicoculturais e da economia política em que as noções de subdesenvolvimento econômico, privação afetiva e sociocultural ganharam difusão como justificativas das desigualdades, sendo utilizadas para naturalizar e banalizar os racismos de Estado e de sociedade. Com efeito, conforme Butler (2019), as narrativas sobre o desenvolvimento dos países e dos sujeitos trazem elementos racistas como legitimadores da meritocracia e explicativos das hierarquias e comparações excludentes.

Mbembe (2014) explica que a educação racional seria a condição para que as pessoas negras e indígenas fossem reconhecidas como semelhantes ao homem branco Ocidental e para que sua humanidade pudesse ser tomada como figurável e perceptível à luz dos olhos eurocentrados dos Iluminismos racionalizantes (MBEMBE, 2014, 2018). Esse movimento inscreve na lógica colonial um “apagamento” das emergências étnicas do lugar de ser visto e produzido enquanto colonizado; ele passa a ser um sujeito detentor de direitos na medida em que é conduzido à razão e aos moldes (margens, bordas, molduras) ocidentais. O sujeito de direitos é colado ao sujeito da razão e ambos são apresentados no liberalismo como articulados à própria ideia de humanidade, na sociedade contemporânea.

Nos estudos de relações étnico-raciais brasileiros, isso pode ser o que chamamos de embranquecimento científico e no Direito, pautado no pressuposto racional da consciência de um sujeito soberano. É importante também ressaltar a posição estratégica da educação no processo de violência colonial – a educação (Ocidental) aqui aparece como um instrumento político/processual de apagamento étnico e direcionamento moral, como uma assassina de histórias, como uma prática des-personificadora, ao mesmo tempo em que contém consigo a negação da diferença e o acesso ao estatuto de cidadão da pessoa colonizada. Contém a presença e a não-presença, direciona, de certo modo, o material e o que desenha como figura borrada-indiscernível. Mbembe (2014, p. 154) nos diz:

Assim, a essência da política de assimilação é dessubstancializar a diferença, através de todos os meios, para uma categoria de indígenas [e negros] cooptados para o espaço da modernidade, se fossem ‘convertidos’ e ‘cultos’, ou seja, aptos para a cidadania e para usufruir dos direitos cívicos.

A infância, que significa “sem fala”, também é vista como período de ausência, de menoridade política e psicológica (WEINMANN, 2014). A ideia de menos civilidade está na base da perspectiva de menoridade como menos desenvolvimento e é usada para relacionar a infância ao racismo pela classificação de primitivo (BUTLER, 2018). “Os tratados de civilidade pueril propõem-se a orientar os familiares e mestres, prescrevendo-lhes regras de conduta, que visam à normalização dos que são o mais infantes” (WEINMANN, 2014, p. 134).

A partir do século XIX, a biopolítica é tecida e se organiza por racionalidades dos racismos de Estado e de sociedade, que opera pela modernização normalizadora e moralizante das condutas pelo liberalismo individualista e totalizador, simultaneamente; pois individualiza a culpa e o desempenho e totaliza os valores e modelos de grupos sociais. Michel Foucault é importante nesse campo porque produziu pesquisas sobre a gestão da vida e a entrada da mesma na História, distinguidas por critérios valorativos de vidas consideradas importantes e aquelas que são desqualificadas e deslegitimadas pelo próprio Estado de Direito e pelos saberes científicos (FOUCAULT, 1999, 2008a, 2008b).

Por sua vez, Mbembe (2018) assinala que a necropolítica refere-se aos estudos sobre a colonialidade nas práticas do presente com os resquícios da escravidão nas políticas da inimizade, voltadas com mais incidência aos corpos de pessoas negras. Esta política é conceituada como necro por ser uma gestão da morte praticada contra grupos, constituídos como inimigos da sociedade em função de desigualdades socio-econômicas e injustiças históricas. A morte de jovens e adolescentes em práticas de extermínio, por exemplo, é um acontecimento analisador dessa necropolítica e está ligada à política da inimizade voltada contra povos, em função dos racismos. No bojo da invenção do Ocidente Moderno como desenvolvido pela primazia da branquitude, Mbembe (2014) salientou, em Crítica da Razão Negra, que os negros eram analisados como incapazes de se governarem.

Para apurar as implicações políticas desses debates, talvez seja preciso lembrar que, não obstante a revolução romântica, uma tradição bem vincada na metafísica ocidental define o ser humano como possuidor de linguagem e razão. Com efeito, não há humanidade sem linguagem. A razão em especial confere ao ser humano uma identidade genérica, de essência universal, a partir da qual decorre um conjunto de direitos e valores. A razão une todos os seres humanos. É idêntica para cada um deles (MBEMBE, 2014).

Estes pontos são cruciais para a interrogação do silenciamento e apagamento de negros e indígenas no Brasil e em outros países, por exemplo, quando se busca pensar nos processos de subjetivação por meio de segmentações sociais, política, econômica, cultural e subjetiva realizados na gestão de uma necropolítica, conceito de Mbembe (2018). Uma pergunta se tornou central para esse autor: seriam essas pessoas inferiorizadas e desumanizadas dotadas de razão, de pensamento e de linguagem (MBEMBE, 2014)? Não podemos nos esquecer de que essas questões começaram a surgir apenas após todo o processo inicial de colonização, que trouxe consigo uma carga inimaginável de violência e xenofobia, sustentada pela certeza de que nenhum dos grupos colonizados era considerado humano. Certeza esta construída pela imagem que o branco europeu tinha de pessoas às quais eram classificadas como negras e indígenas, ou seja, sob a insígnia de selvagens, sem religião, sem moral, sem ordem, sem organização política e vistos como animais, portanto, infra-humanos.

Classificar o colonizado enquanto alguém “racional” foi um processo ocorrido após séculos de colonização, quando emergiram as chamadas revoluções burguesas e os princípios iluministas, na Europa, onde começaram a entrar em cena na história do pensamento branco Ocidental as noções modernas de direitos individuais, igualdade, liberdade e democracia, perspectivas estas conduzidas por aspectos morais e racionais. Mbembe (2014) diz então que essas questões deram lugar a três tipos de respostas às implicações políticas relativamente distintas.

A primeira delas viria a afirmar o negro como sem história, fora da história, situar a experiência humana do negro na ordem da diferença fundamental enquanto essência biológica e cultural (MBEMBE, 2014). Nada que viesse do negro importava, era útil, tudo era desprezível, inclusive ele próprio; seria impossível conviver com o signo africano e sua herança, com o corpo negro, colocando-o como igual ao corpo branco, à experiência branca de existência. O próprio corpo negro foi constituído como testemunho dessa diferença fundamental e inquestionável – traços fenotípicos, cabelo, dança, língua e, principalmente, a cor da pele. Mbembe (2014) encerra a primeira resposta dizendo que em virtude dessa diferença radical ou até desse ser-à-parte, justificava-se a sua exclusão, efetiva e por direito, da esfera da cidadania humana total. Reparem que o primeiro movimento é o de exclusão total, de existência à parte, ou como o próprio Mbembe (2014) coloca, ser-à-parte.

A segunda resposta está alinhada com a primeira em relação à diferença fundamental, mas lida com ela de outra maneira, se distanciando da exclusão total. Nesta resposta, a diferença não consiste num signo africano/indígena vazio, sem razão ou com absolutamente nada, ela considera a diferença, considera costumes e preenche o signo do outro. Como Mbembe (2014) explica, trata-se de inscrever a diferença em uma ordem institucional distinta, ao mesmo tempo que se constrange esta ordem distinta a operar em um quadro fundamentalmente igualitário e hierarquizado. A diferença existe não na lógica de um [signo, corpo, lugar] branco preenchido e um [signo, corpo, lugar] colonizado vazio, mas sim na lógica de um colonizado com suas diferenças e costumes, todos considerados. A partir disso, essa diferença contida no colonizado é “incorporada” à ordem Ocidental, num campo de igualdade que pode ser disposto em um plano de falsificado no jogo do controle da ordem discursiva.

É possivelmente o que Césaire (1977) percebeu como mal enunciar os problemas para melhor legitimar as soluções que se lhe aplicam – e essa formulação pode, em última análise, servir para todas as três respostas elencadas por Mbembe (2018), na medida em que cristaliza a dinâmica relação de saber e poder, congelando-a em classificações racistas, às quais são transformadas em práticas de dominação social, econômica, política, cultural e subjetiva. Estes processos configuram uma violência, chamada de simbólica, todavia, também agenciam uma necropolítica, ou seja, uma gestão da morte na medida em que o silenciamento e exclusão são modos de matar, desumanizando em um primeiro momento para, posteriormente, deixar morrer ou fazer morrer as vidas enquadradas como desvalorizadas (MBEMBE, 2014, 2019; BUTLER, 2018).

Então, seriam produzidas formas de saber específicas, tais como: a ciência que passa a afirmar a dimensão colonial com o objetivo de documentar e arquivar a diferença, de eliminar a pluralidade e a ambivalência em prol da redução das mesmas à ordem das classificações cientificistas que geram efeitos da inferioridade e comparação racializada (MBEMBE, 2018), ou seja, o reconhecimento de uma existência “positiva” da diferença para menos em graus de intensidade e variação, seria o pré-texto para uma catalogação do colonizado, um movimento que afirmou de maneira decisiva a prática de considerar o colonizado um objeto, manipulável e, em certa medida, um processo de desumanização. Mbembe (2014, p. 153) encerra dizendo que:

O paradoxo deste processo de abstracção e de reificação é o seguinte: por um lado, aparenta reconhecimento; por outro, constitui por si um juízo moral, uma vez que, por fim, o costume é apenas singularizado para melhor indicar a que ponto o mundo indígena [e negro], na sua naturalidade, em nada coincide com o nosso; isto é, não faz parte do nosso mundo e não poderia, desde logo, servir de base à experiência de uma cidadania comum.

Por fim, a terceira resposta deriva da política/processo de assimilação/integração. Crê que é possível uma experiência situada de mundo que seria comum a todos os seres humanos enquanto uma suposta vivência de uma humanidade universal, a ser erguida por jogos de semelhanças essencializadas entre os seres humanos (MBEMBE, 2014). Aqui, as diferenças são deixadas de lado, e passa-se a acreditar em uma universalidade do ser humano tal qual uma essência, naturalizada. Porém, essa universalidade não pertence de início a todas(os), ao contrário, apenas ao branco europeu; a “herança” das outras duas “soluções” anteriores colocaria as pessoas negras e indígenas em uma posição de diferente (inferior) como pressuposto fundamental.

É possível encarar essas três respostas como três momentos e atos simultâneos. As consequências práticas desses atos foram decisivas para a formação das instituições e leis da forma como são conhecidas hoje. O primeiro ato fixa o pressuposto de diferença excludente das instituições modernas e todas as que viriam adiante (dentro da tradição Ocidental), colocando as pessoas negras e indígenas como seres à parte da humanidade. O segundo ato torna possível a instrumentalização dessa diferença, das formas quais fossem e forem possíveis. O terceiro ato, num gesto duplo, encerra o processo de universalização do Ocidental branco (estabelece o branco como humanidade e, a partir disso, fixa esse humano na educação, nos direitos, nas leis, na medicina, na psicologia, etc.), ao mesmo tempo em que encerra o processo de desumanização do colonizado, inscrevendo-o num eterno sentimento de incompletude, de negação de si mesmo, e de busca pela “instrução”, pela existência “digna”, nos moldes estabelecidos (e constantemente reafirmados pelas instituições ocidentais modernas) pelo europeu – no que Mbembe (2014) chama de humanidade prorrogada. A terceira resposta, como já disse antes, encerra o humano em torno do branco europeu ocidental. Ou seja, ela fecha o ser humano, constrói muros, fronteiras, margens, bordas – o que pretende delimitar o que está dentro e o que está fora.

O “lado de fora”, o colonizado, como já dito anteriormente, entra numa condição de humanidade prorrogada, por estar inscrito numa ordem ocidental de organização social – modelos de organização social oriundos da modernidade. São esses modelos de organização que embaralham essa noção de humano; porém, não de maneira totalmente “acidental”, mas de certo modo, proposital. Fazem parte das engrenagens da violência colonial, a mentira e a hipocrisia da igualdade e da universalidade, dos direitos e da individualidade e cidadania. Entretanto, apesar de ser algo proposital, acaba sendo também um ponto de embaralhamento, de confusão, de disseminação de possibilidades. A humanidade prorrogada acaba inscrita em um jogo de significantes que, ao mesmo tempo em que provoca sofrimento e dominação ao colonizado, lhe proporciona um espaço para criação e ressignificação, ou nos termos em que coloca Mbembe (2014): inversão. A respeito disso, ele diz:

É próprio dessa humanidade prorrogada, incessantemente condenada a reconfigurar-se, anunciar um desejo radical, insubmersível e vindouro, de liberdade ou de vingança, principalmente quando tal humanidade não passa pela abdicação radical do sujeito. Com efeito, ainda que juridicamente definidos como bem móveis e apesar de práticas de crueldade, de degradação e de desumanização, os escravos continuam a ser humanos. Através do seu labor ao serviço de um senhor, continuam a criar um mundo, através do gesto e da palavra, tecem relações e um mundo de significações, inventam línguas, religiões, danças e rituais, e criam uma ‘comunidade’. A destituição e a abjecção que lhes são impostas não eliminam de todo sua força de simbolização. Pela sua mera existência, a comunidade de escravos não deixa de rasgar o véu da hipocrisia e da mentira que cobre as sociedades escravagistas (MBEMBE, 2014, p. 91).

Uma análise prática desses termos entrega-nos o fato de, apesar de toda a mentira e hipocrisia do colonizador, e apesar de todas as instituições e conceitos existentes atualmente (principalmente no contexto brasileiro) terem sido fechados em torno da “humanidade universal”, da obra que é o ser humano. Como a lógica da colonização pode ser observada de forma pronta e acabada no caso brasileiro, nos termos do que chamamos de mito da democracia racial, a perversão desses limites é disseminada e utilizada das mais variadas maneiras possíveis, constituindo privilégios, dinâmicas de exclusão, assim como formas de resistência e enfrentamento do racismo. Ainda mobilizando aspectos da terceira resposta, um deles é especialmente importante: a educação. Como Mbembe (2018) explica, seria por meio da educação que pessoas indígenas e negras seriam transformadas em cidadãs. Para além do que já foi discutido anteriormente a respeito da humanidade prorrogada, do ser-à-parte, podemos propor um olhar à palavra educação que esteja relacionando-a com outros significantes, como o próprio humano, cidadão, indivíduo ou civilização. Integrada na obra do humano, está a educação. Os limites, os supostos dentro e fora do humano são também, para efeito de análise, o dentro e fora da educação.

Flávia Cristina Silveira Lemos flaviacslemos@gmail.com

Psicóloga. Mestre em Psicologia Social. Doutora em História Cultural pela Universidade Estadual Paulista, Assis, Brasil. Professora Associada III de Psicologia Social na Universidade Federal do Pará, Brasil. Bolsista de Produtividade PQ2/CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasil.

Dolores Cristina Gomes Galindo dolorescristinagomesgalundo@gmail.com

Psicóloga. Doutora em Psicologia Social. Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil. 



Anderson Reis de Oliveira andersonreis1356@gmail.com

Aluno de graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará, Brasil. Bolsista de Iniciação Cientifica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: CNPq, Brasil.


Mateus Moraes de Oliveira mateus10tw@gmail.com

Aluno de graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Cuiabá, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico/CNPq, Brasil.