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UNICEF, (des)colonidades e infâncias: vidas negras importam

Contribuições de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Judith Butler e Susan Sontag para pensar a descolonização das práticas

O colonizado, inscrito nessa ordem colonial, está para a educação assim como está para sua condição de humano. Isso quer dizer que ele é situado do lado de fora, nos currículos, nas aulas, nas discussões, no plano pedagógico, nas hierarquias de valores, nos ensinamentos morais; porém, acaba embaralhando o dentro-fora da educação, na medida em que existe e é violentamente integrado na ordem e modelo educacional Ocidental (CARNEIRO, 2011). Este enquadre é uma política de guerra, a qual opera por construções de esquemas para nomear e enxergar alguém em uma perspectiva específica, cujo campo de práticas forja modos de ver, sentir, pensar e agir em relação a alguns grupos sociais como se estes fossem vida inelutáveis, precárias e vulneráveis ao máximo, desvalorizadas e colocadas como menores e até mesmo desprezíveis em escalas comparativas, gerando quadros de extermínio e um processo de indiferença face a toda essa maquinaria letal (BUTLER, 2018; SONTAG, 2003, 2004).

O enquadramento é uma prática divisora, a qual fabrica efeitos de valoração, em graus de classificação, distribuídos em gráficos de controle populacional, em uma verdadeira economia política securitária, funcionando como gestão de nomeação de quem é vida passível de luto ou não (BUTLER, 2019; SONTAG, 2020). Com efeito, autorizar algumas falas e discursos em detrimentos de outros produz hierarquia de corpos e subjetividades, sendo que a educação é uma engrenagem agenciadora de forças que podem criar ordens de dominação pela linguagem e por decisões políticas em destinação de recursos, verbas, currículos, extinção e criação de programas de proteção, etc. (CHAUÍ, 1996).

No contexto brasileiro, esse embaralhamento do dentro-fora das práticas divisórias está intimamente relacionado ao mito da democracia racial que, de saída, foi se inscrevendo na sociedade brasileira para apagar as violências coloniais, nivelando a população brasileira na condição de mestiça e eliminando, portanto, o branco e o negro do palco histórico brasileiro, colocando em cena (de maneira mentirosa e hipócrita) o mestiço – como plano de fundo, visando eliminar a certeza de que o Brasil é um país racista. O mito da democracia racial se manifestou em estudos científicos (CARNEIRO, 2011; BOLSANELLO, 1996), na literatura brasileira, nas políticas públicas da primeira república (DOMINGUES, 2005; FERNANDES, 1989) e foi se fixando como mito fundador (CHAUÍ, 2006) na cultura do país de maneira extremamente eficaz – tendo como parâmetro de eficiência os objetivos da branquitude brasileira (SCHUCMAN, 2012).

Porém, apesar de ter promovido um apagamento e violências muito singulares à experiência brasileira, na esteira do branqueamento, da mentira e da hipocrisia vieram também alguns aspectos de subversão e perversão, que afirmam a presença negra (presença do que está fora) na “obra humana” (o dentro), e quando mostradas com nitidez e agressividade, golpeiam todas as bordas e limites desse interior. Ninguém melhor que a ativista, filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1984, p. 238) para nos mostrar esses aspectos de subversão e perversão da “obra humana” Ocidental:

É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês. E por falar em pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da cultura brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo que, por sua vez, e juntamente com o ambundo, provém do tronco linguístico bantu que “casualmente” se chama bunda). E dizem que significante não marca… Marca bobeira quem pensa assim. De repente bunda é língua, é linguagem, é sentido, é coisa. De repente é desbundante perceber que o discurso da consciência, o discurso do poder dominante, quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo brasileiro, e de ascendência europeia, muito civilizado, etc e tal. Só que na hora de mostrar o que eles chamam de ‘coisas nossas’, é um tal de falar de samba, tutu, maracatu, frevo, candomblé, umbanda, escola de samba e por aí afora.

Devemos nos atentar à capacidade da “comunidade negra” de estar dentro do cotidiano, ao mesmo tempo em que é jogada nas suas manifestações mais legítimas para fora: religião e funk, por exemplo. Até mesmo nesses exemplos, a “obra brasileira” acaba trazendo para dentro em momentos específicos essas manifestações – pular ondinhas no ano novo, dançar funk nas festas de formatura das elites brancas, fazer feijoada vip, cobrando R$100,00 a entrada.

No contexto escolar, a língua formal (marca euro-ocidental) é a que aparece nos livros, na figura de poder de professores e diretores das escolas. Porém, é no pretuguês que as discussões sobre o conteúdo se desenvolvem, é no pretuguês que professoras e professores (principalmente os de escola pública, e mais ainda os que cresceram na mesma realidade que os alunos – escolas públicas e de periferia) conseguem conversar e estabelecer o tão valioso diálogo que Paulo Freire nos apresenta, numa tentativa de desconstruir a engrenagem hierárquica própria da colonização; é no pretuguês que seminários são apresentados em salas de aula de ensino médio.

Há uma relação com o mito da democracia racial que consiste justamente na percepção de que as relações raciais no Brasil são um grande e proposital – mas ao mesmo tempo acidental – embaralhamento entre o que se situa “dentro” e o que se situa “fora”, com uma série de aspectos que se repetem, se recriam, criam aspecto novos e disseminam possibilidades de destinos infinitas. Tudo depende de como se direciona o olhar para tudo isso, e a respeito do olhar, o colonialismo pode ser utilizado para direcionar. Contudo, a diretiva tem limites e não controla todas as possibilidades de existência, apesar de se caracterizar como uma violência, à qual extrapola as relações de saber e poder, caminhando entre o plano de dominação simbólica para o da violência de uma tanatopolítica e de uma necropolítica. A colonização – o processo educativo cunhado na violência da colonização – direciona o olhar de quem estiver sendo educado, e faz parte dessa violência que esse olhar direcionado se torne hábito, se torne prisão; a mera busca por novas possibilidades sem o combate explícito aos modelos coloniais não tem resultado algum, pois se o colonizado não consegue ver o que direciona seu olhar, não vai conseguir impedir que seu olhar seja direcionado; por mais que existam infinitas possibilidades, o hábito tenta direcionar o colonizado para o “lado de fora”.

O processo histórico foi, para grande parte da nossa humanidade, um processo de habituação à morte do outro – morte lenta, morte por asfixia, morte súbita, morte delegada. Essa habituação à morte do outro, daquele ou daquela com quem se crê nada haver para partilhar, estas formas múltiplas de enfraquecimento das fontes vivas da vida em nome da raça ou da diferença, tudo isso deixou vestígios muito profundos, quer no imaginário e na cultura, quer nas relações sociais e econômicas. Tais lesões e cicatrizes impedem de fazer comunidade. De fato, a construção do comum é inseparável da reinvenção da comunidade (MBEMBE, 2014, p. 305).

Para Chauí (1996), o discurso competente e a fala autorizada presentes nas diferentes esferas da democracia brasileira materializam diferentes domínios de exclusão e interdição discursiva de diversos grupos sociais, silenciados e com suas posições e obras apagadas das práticas educativas, impedidas de circularem e serem difundidas nos lugares institucionais, nas publicações e editoras, etc. Podería-se ainda destacar o campo da formação e do currículo neste filtro seletista da ordem do discurso.

Para exemplificar esta prática divisória dos filtros discursivos, vale a pena consultar os trabalhos de Sontag (2003, 2004, 2020), nos quais a mesma assinala como os registros são usados por um processo de apropriação cultural que os desloca em seus efeitos, após passarem por seletividades de olhar, dos procedimentos editoriais, de uma política de publicação e circulação. Cada uma dessas etapas e processualidades implica um modo de organizar e criar dispositivos institucionais e de subjetivações singulares. Segundo Spivak (2010), as falas dos grupos desvalorizados em uma cultura, sociedade e por uma política econômica são subalternizadas de diferentes maneiras e por um conjunto de práticas cotidianas e macropolíticas de educação formal e informal, mas é fundamental salientar que: “o sujeito subalterno colonizado é irremediavelmente heterogêneo” (SPIVAK, 2010, p. 57).

Com efeito, o que está em disputa são resultados da colonialidade na educação, em parte, pois há dimensões econômicas, sociais, culturais, políticas e subjetivas correlatas, nas relações entre as histórias entre vida e morte. As maneiras de apreender os acontecimentos enquanto modos de conhecer e reconhecer são importantes práticas sociais a serem interrogadas se for desejado constituir e efetivar (re)existências (des)coloniais na educação no tempo presente. Reconhecer nem sempre é conhecer para Butler (2018). A forma de realizar a inteligibilidade implica produzir determinadas normas sociais e estas afetam a classificação dos corpos, relações, subjetividades e valores. Os quadros de guerra são fruto de regimes de verdade e de uma política dos saberes em que vida e morte são efeitos das práticas de enquadramento das normas e leis.

Flávia Cristina Silveira Lemos flaviacslemos@gmail.com

Psicóloga. Mestre em Psicologia Social. Doutora em História Cultural pela Universidade Estadual Paulista, Assis, Brasil. Professora Associada III de Psicologia Social na Universidade Federal do Pará, Brasil. Bolsista de Produtividade PQ2/CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasil.

Dolores Cristina Gomes Galindo dolorescristinagomesgalundo@gmail.com

Psicóloga. Doutora em Psicologia Social. Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil. 



Anderson Reis de Oliveira andersonreis1356@gmail.com

Aluno de graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará, Brasil. Bolsista de Iniciação Cientifica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: CNPq, Brasil.


Mateus Moraes de Oliveira mateus10tw@gmail.com

Aluno de graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Cuiabá, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico/CNPq, Brasil.