Foto: Al King

A difusão do diagnóstico de transtorno bipolar infantil: controvérsias e problemas atuais

A psiquiatria infantil da idiotia ao transtorno bipolar

Tendo em vista as considerações levantadas anteriormente sobre as mutações na maneira de se conceber a infância, faz-se importante pensar na forma em que as descrições clínicas interagiram com a noção de criança em cada período da história.

Desta perspectiva, assim como a infância não tinha um lugar de destaque na sociedade antes da modernidade, a psiquiatria infantil como especialidade ou subespecialidade médica se consolidou tardiamente (Bercherie, 2001). Uma psiquiatria da infância, que levasse em consideração as idiossincrasias desta faixa etária na formulação de suas noções, surgiu somente no século XX, em conjunção com uma maior visibilidade que a criança alçou neste período. Com isto não queremos dizer que a criança não fazia parte da psiquiatria antes do século XX; pelo contrário, conforme aponta Foucault (2001), o par infância/infantilização das condutas foi essencial para a formação da psiquiatria moderna. Este protagonismo se deu principalmente pela questão da idiotia, uma vez que tal patologia remete à infância, mas diz respeito, sobretudo, a um ponto de parada no desenvolvimento infantil, correlato, portanto, à noção de infância como um momento que deve ceder lugar progressivamente à fase adulta. No contexto de constituição da psiquiatria moderna, a criança teve um papel importante, mas apenas enquanto uma preparação para o adulto, ou seja, sem levar em conta as idiossincrasias desta fase.

Um segundo estágio da constituição do campo da psiquiatria infantil trata do período que vai da segunda metade do século XIX até o primeiro terço do século XX. Este intervalo é marcado pela criação de uma clínica psiquiátrica da criança, que consiste basicamente na transposição da clínica e da nosologia elaboradas em relação aos adultos durante o mesmo período. Neste contexto, são feitos os primeiros debates em torno das faculdades mentais infantis visando destacar aquelas passíveis de desvio no desenvolvimento.

A ideia de uma patologia infantil passa a não mais se restringir, nesse período, à idiotia. Inúmeros trabalhos publicados no final do século XIX são marcados pela tentativa de encontrar na criança, ao lado da idiotia, um apanhado de síndromes mentais presentes no adulto. É somente a partir da terceira década do século XX, de acordo com Bercherie (2001), que nasce a clínica “pedo-psiquiátrica”, marcada pela interação entre a psiquiatria com crianças e a pediatria. Nesse período, muitos estudos com crianças passaram a ser desenvolvidos, configurando um panorama bastante distinto dos séculos anteriores. Observa-se um amplo interesse em relação à infância, levando o século XX a ser chamado de o século da infância, por Ellen Key, em 1909 (Kanner, 1935/1971). Diferente de buscar na criança certas patologias relacionadas ao adulto, o enfoque passou a ser as vicissitudes da infância. No entanto, trata-se ainda de um interesse biográfico, a infância segue sendo uma espécie de “antologia das reminiscências” (Nadesan, 2010, p. 31).

Para Bercherie (2001), foi por meio do interesse e da influência da psicanálise que finalmente se consolida uma psiquiatria voltada para a infância, configurando, a partir de 1930, o terceiro momento na formação da psiquiatria infantil como uma especialidade ou subespecialidade médica. A estruturação de uma clínica psiquiátrica da infância, no entanto, não é tão evidente neste período, uma vez que esta permanece atrelada intimamente à psicanálise. No entanto, observa-se outro movimento dentro da psiquiatria infantil, a saber: o estímulo a pesquisas em psicofarmacologia devido a avanços do uso de fármacos para epilepsia. Pode-se dizer que a partir da metade do século XX, nota-se o início da separação da psicanálise infantil e da psiquiatria, que será consagrada somente com o DSM-III, em 1980, e que se relaciona com profundas transformações internas da própria psiquiatria.

Os dois primeiros DSM, no entanto, são ainda marcados pela psiquiatria dinâmica. As patologias infantis neles presentes são apoiadas na ideia de transitoriedade e plasticidade, contidas, em sua maioria, na seção “Transient situational disturbances”. Em sua descrição, afirma-se que a seção é reservada para reações que são mais ou menos transitórias e que consistem em sintomas agudos sem aparente distúrbio de personalidade subjacente. O cenário é parecido no DSM-I (1952) e no DSM-II (1968); neste ultimo, observa-se que, embora a noção de reação tenha desaparecido do restante do manual, nesta seção ela foi preservada.

O DSM-III (1980), conforme indicado anteriormente, marca uma cisão e um novo paradigma da psiquiatria americana. Muito embora não caiba no escopo deste artigo um maior aprofundamento nas transformações engendradas por este3, faz-se importante destacar que, no que concerne às categorias infantis, o manual possui quatro vezes mais categorias diagnósticas do que a segunda versão (Silk et al., 2000). Estas estão em sua maioria no novo capítulo “Disorders Usually First Evident in Infancy, Childhood and Adolecence”, que pretende abarcar patologias iniciadas na infância. Observa-se que há diferença semântica no nome desta categoria para aquela destinada à infância no DSM-II. Enquanto na segunda versão, sugere-se que as patologias possuem algo específico da infância calcado no seu caráter de transitoriedade, na terceira versão indica-se que estas são amiúde diagnosticadas na criança, mas que há grande probabilidade de se estenderem na vida adulta. Esta mudança, a nosso ver, foi um passo significativo para que, em meados do século XX e início do XXI, a discussão em torno do transtorno bipolar infantil fosse empreendida. Isto porque, a partir do DSM-III, observa-se a substituição da ideia de transitoriedade dos transtornos infantis para a de continuidade entre as patologias da infância e dos adultos. Essa perspectiva se mantém no DSM-IV, chegando ao seu ápice no DSM-5.

Trata-se, por um lado, do aumento das categorias diagnósticas destinadas à infância e, por outro, mas também na mesma direção, do fim da especialização dos transtornos infantis. Este panorama é consolidado através do fim da seção direcionada exclusivamente à infância no DSM-5. Esta seção, que desde a segunda versão do manual corresponde ao primeiro capítulo, desaparece. Na quinta edição, a primeira parte é denominada “Neurodevelopmental disorders” (Transtornos do neurodesenvolvimento). Neste capítulo está alocada grande parte dos transtornos antes pertencentes à seção extinta. Com o fim de uma seção específica para a infância, uma série de patologias antes restritas aos adultos é atribuída também à infância, bem como certos transtornos, antes restritos à infância, são estendidos para os adultos, como o TDA/H4.

A noção de neurodesenvolvimento remete à ideia de que as patologias estariam relacionadas a uma disfunção cerebral, ou seja, a um desvio do desenvolvimento neurológico normal, que ganha um caráter crônico. Enquanto o desenvolvimento passa a ser discutido apenas em sua dimensão cerebral, permite-se que na infância sejam diagnosticadas condições mais estáveis e duradouras.

Tal contexto é indissociável do papel que a criança galgou nos últimos anos sendo vista, conforme comentado anteriormente, como ator social com certa autonomia. É justamente neste contexto que a discussão em torno do transtorno bipolar infantil emerge.

3 – Para tal ver Mayes; Horwitz (2005).
Thais Klein thaiskda@gmail.com

Psicóloga formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (IMS-UERJ) e em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ (PPGTP-UFRJ). Bolsista CAPES.

Rossano Cabral Lima rossanolima1@gmail.com

Doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (2010), com doutorado sanduíche no Instituto Max Planck de História da Ciência (Berlim, Alemanha). Foi Professor Visitante do NUPPSAM/IPUB/UFRJ (2011) e atualmente é Professor Adjunto e Vice-Diretor do Instituto de Medicina Social da UERJ.