Sophie Shapiro

A proibição legal de castigos físicos na infância: alguns contrastes entre Brasil, Uruguai e França

Assimetrias e adestramentos

Como propõem diferentes analistas (Segalen, 2010; Damon, 2005, Vigarello, 2005, entre outros), entendo que os atuais debates em torno dos modos de tratamento das crianças ilustram mutações relativas à democratização das relações familiares. Conforme sintetiza Martine Segalen (2010), o desafio colocado aos pais (ou tutores), na fase atual dos direitos da criança, consistiria em conjugar a simetria preconizada por uma educação sem ‘qualquer forma de violência’ e a responsabilidade educativa que subjaz à relação tutelar.

Conforme pesquisas de opinião divulgadas pela imprensa, mais de 50% dos brasileiros e dos uruguaios (Veja, 2010; Información Sociale, 2007) e 80% dos franceses (TNS Sofres, 2009) manifestam-se contrários à proibição legal de castigos físicos. Este posicionamento indicaria a persistência histórica de uma lógica de adestramento que na tradição ocidental supõe uma natureza humana má que precisaria ser corrigida (Sahlins, 2009)? Ele confirmaria o argumento de Héritier (1996) segundo o qual o recurso à violência resulta de relações humanas de poder para as quais a relação pais-filhos (ou adultos-crianças) forneceria o modelo hierárquico primeiro? No presente, vemos que as controvérsias suscitadas pela proposta de interdição legal de castigos, os debates sobre quais práticas deveriam ser proibidas (o tapa? a palmada? até a palmadinha?), seus malefícios ou benefícios acionam teorias religiosas e profanas (Delanoë, 2015) que atribuem um valor educativo ao sofrimento. A partir de Héritier (1996), podemos dizer que elas põem em discussão a legitimidade do princípio de anterioridade segundo o qual os pais nascem antes dos filhos, devem nutri-los e conformá-los. Para esta tarefa, a violência (ou a não violência), sendo expressão de um estado determinado das relações de poder, poderia intervir com a finalidade de adestrar ou “tornar conforme”. Em relação ao Brasil, Teresa Caldeira (2000) observa a naturalidade com que a punição física aparece nos discursos em geral e especialmente quando se trata de “dar exemplo”, “por limites”, disciplinar as crianças. Conforme o senso comum, as crianças não seriam suficientemente racionais para entender tudo o que os pais lhes dizem, mas podem entender pela dor: uma linguagem que qualquer um pode entender – que tem o poder de impor princípios morais e corrigir o comportamento social (Caldeira, 2000, p. 367). Conforme a autora, no Brasil, o corpo dos dominados – crianças, mulheres, negros, pobres ou supostos criminosos – seria concebido como um ‘locus’ de punição apropriado para que a autoridade se afirme através da inflição de dor. A naturalidade com que se concebe a dor como recurso corretivo revelaria uma noção de corpo incircunscrito, sem barreiras claras de separação, um corpo permeável, aberto a intervenções e, portanto, desprotegido por direitos individuais. Ora, é justamente a delimitação cada vez mais estrita de uma fronteira entre os corpos de adultos e crianças que as legislações promotoras dos direitos da criança operam desde o início dos anos 2000.

A distinção retomada por Geertz (Segato, 2006, apud Geertz, 1989) entre padrões ‘para’ (‘patterns for’) e padrões ‘de’ comportamento (‘patterns of behavior’) pode ser útil para entendermos que a adesão a esta proposta de proibição legal de castigos físicos pressupõe uma reflexividade que a própria lei visa promover. Conforme Geertz, os padrões ‘para’ o comportamento seriam inculcados pelo processo de socialização e responsáveis pela automatização das condutas. Já os padrões ‘de’ comportamento resultariam da reflexão sobre as condutas automatizadas e os moldes que nos fazem agir. Transpondo estas noções para a discussão sobre a proibição legal dos castigos físicos, identifico uma reivindicação segundo a qual eles serviriam a inculcar padrões ‘para’ o comportamento das novas gerações, enquanto a sua negação supõe a crítica a estes mesmos padrões. O grande incômodo causado por esta proposta de mudança legal estaria relacionado ao fato dela deslegitimar formas de punição (tal como a palmada) como prerrogativa simbólica da relação parental. A reivindicação deste recurso (utilizado ou não) parece destacar-se como o último bastião da autoridade parental diante do progressivo reconhecimento de crianças como cidadãos plenos.

Na França, as pesquisas de opinião mostraram que apesar da maioria ser contra a lei da palmada (ou lei supracitada), ela não é, no entanto, a favor de castigos físicos e apenas 5% dos entrevistados consideram “a palmada” como a melhor punição (Damon, 2005). Estes posicionamentos sugerem a possibilidade de adesão a padrões ‘de’ comportamento na relação com as crianças e, portanto, a ruptura com condutas automatizadas que autorizam o recurso a castigos físicos, sem que uma lei específica seja considerada necessária. Neste sentido, as controvérsias em torno do tema jogam luz não somente sobre relações de poder no âmbito familiar, mas também entre unidades domésticas e agentes estatais e supra nacionais. Para além da mera adesão a violências ditas educativas, o incômodo com esta proposta de lei relaciona-se talvez ao fato de que a condição de menoridade que posiciona as crianças como objetos de tutela supõe a existência de tutores legalmente constituídos que deverão demonstrar capacidade de educá-los. Em seu estudo sobre processos judiciais de guarda de crianças no Brasil, Adriana Vianna (2005) observa que os direitos da infância representam uma situação-limite dentro do ideário dos direitos humanos posto que explicitam um complexo jogo de valores em torno do que seja a proteção necessária a esses sujeitos especiais: “Ser responsável implica estar preso a um conjunto de obrigações morais não apenas de controle dos indivíduos durante sua menoridade, mas de formação desses mesmos indivíduos.” (Vianna, 2005, p. 28).

O que eu gostaria de sublinhar a partir desta observação é que a proibição legal dos castigos físicos, cobrada atualmente dos Estados signatários da CDC, situa-se nesta dinâmica como mais um aspecto definidor da boa gestão da infância e dos modos legítimos de exercer autoridade. Nesta nova definição, uma gama mais ampla de atos é formalmente definida como incoerente com a obrigação educativa. Entretanto, apesar de sua universalidade, estudos focados em práticas institucionais de promoção dos direitos das crianças sugerem que outra assimetria (para além daquela que distingue adultos de crianças) deva ser considerada em análises deste processo de ampliação do campo semântico da noção de “violência contra a criança”. A saber, a possibilidade de que uma mesma lei produza efeitos desiguais conforme a origem social das crianças e de suas famílias (Fourchard, 2012; Leblic, 2009; Sheriff, 2000) aponta para desigualdades no alcance das políticas de governo. Se por um lado a legislação sobre castigos físicos pode ser interpretada como sinal de um processo histórico de sensibilização e de civilização dos modos, por outro, alguns de seus desdobramentos indicam que a nova legislação tenderia a incidir diversamente conforme a posição social das famílias. Em relação ao Brasil, a análise dos discursos proferidos na Câmara de deputados durante a tramitação do projeto de lei colocou em evidência o fato de que são as famílias pobres e moradoras das favelas que se configuram como as principais destinatárias da lei (Ribeiro, 2013), ainda que o relatório da ONU sobre “violência contra a criança” afirme: “conforme estudos provenientes de diversos países de todas as regiões do mundo, 80% a 98% das crianças sofrem castigos físicos em casa” (ONU, 2006). Apesar deste caráter generalizado atribuído às práticas que a lei visa coibir, o educador social que entrevistei no Uruguai, e um dos principais ativistas pela aprovação da lei em 2007, lamenta o fato de que atualmente o único lugar onde ele observa a referência à lei com frequência é nos dossiês de ingresso de crianças e adolescentes no sistema de proteção à infância. Segundo ele, o Estado não teria assumido a promoção da lei e o silêncio que se instalou desde sua aprovação sinalizaria as tensões em torno do tema.

Conforme Segato (2006), a possibilidade do discurso legal inaugurar novas moralidades e desenvolver sensibilidades éticas depende de sua divulgação ativa, da aliança entre a lei e a publicidade. Portanto, o silêncio em torno de seu conteúdo seria o pior destino para uma lei que segundo seus proponentes teria uma importância, sobretudo pedagógica. No entanto, a observação feita pelo educador social uruguaio indica que o esquecimento da lei aprovada em 2007 pode ser relativo e válido principalmente para famílias cujos filhos, historicamente, não passam pelo sistema de proteção à infância.

Assim, os desdobramentos da intenção de legislar sobre os modos de tratamento das crianças com intuito de proibir castigos físicos constitui-se num ‘locus’ de visibilidade para posições de poder que vão além da relação pais e filhos ou adultos e crianças. Estes debates e seus resultados permitem observar possíveis desigualdades relativas a posições ocupadas na hierarquia social, assim como diferenças nas relações entre os países signatários da Convenção sobre os direitos da criança e as instâncias supra nacionais de promoção de direitos humanos.

Fernanda Bittencourt Ribeiro feribeiro@pucrs.br

Doutora em Antropologia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, Paris, França), professora da faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, Brasil. Coordenadora do Idades – Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia (CNPq). Coeditora da Civitas – Revista de Ciências Sociais.