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As crianças e seus mil dias: articulações entre saúde e educação

Antonio José Ledo Alves da Cunha
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/ 0000-0003-3592-1849

Patrícia Corsino 
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-4623-5318

DOI: https://doi.org/10.54948/desidades.v0i31.46065

Iniciando o diálogo

Mas as doenças são mesmo coisas de menino procurando jeito de ficar no mundo. Quando não são as dores de barriga, são as de ouvido, os resfriados ameaçando pneumonia. Se Antônio merecia atenção maior, era por causa do tempo. Enquanto todos pensavam que ele ficaria mais dois meses no escuro da noite da mãe, sem mais nem menos pulou para a vida. E, se assustou a todos, seu susto deve ter sido maior ao encontrar todos assustados. Sua timidez deve ter nascido aí. Afinal de contas, ele não pediu licença e entrou desarrumando tudo.
Bartolomeu Campos de Queirós

As crianças entram na vida sem pedir licença e viram pelo avesso o seu entorno. Não há como não se alterar com elas. Desde lá, no escuro da noite de cada mãe, criam situações e possibilidades, procuram jeitos de estar no mundo. Mexem com o corpo todo de quem as gestam, mexem com emoções, afetos, desejos. Primeiro de dentro e depois de fora, participam da vida por inteiro. O nascer assusta e assombra não só a elas que chegam, mas também os que aqui já estão. E esse susto inicial do encontro com o outro, que, para Antônio, pode ter dado origem à sua timidez, é o que nos constitui vida afora. O susto de Antônio é o de todos nós porque, como afirma Bakhtin (2006, p. 341), “ser significa ser para o outro e, por meio do outro, para si próprio”.

O outro é constituinte do eu num processo alteritário e dialógico. Mesmo antes de nascerem, discursos e cuidados são direcionados às crianças, evidenciando que a inserção no mundo se dá desde a gestação. Estudos de diversos campos têm apontado a importância do período pré-natal e da primeira infância na vida das pessoas. Cada área, por sua vez, aprofunda estudos e apresenta caminhos, na maioria das vezes, de forma isolada. Um dos desafios do campo científico e das políticas públicas tem sido pensar as crianças na sua integralidade física, emocional, afetiva, cognitiva, social. Entendemos que, se, por um lado, as especificidades de cada área disciplinar com suas pesquisas são necessárias para aprofundar conhecimentos, por outro, a articulação entre elas apresenta novas indagações, podendo ampliar perspectivas. Assim, este artigo se propõe a estabelecer um diálogo entre Pediatria e Educação Infantil, tomando como ponto de partida para o diálogo questões que dizem respeito aos primeiros mil dias das crianças. Os mil dias, que englobam a gestão e os dois primeiros anos da criança, considerados pela área da saúde como um período importante para o desenvolvimento físico e mental do ser humano, são discutidos de forma metafórica, abarcando questões para além dessa área e da dimensão cronológica stricto sensu, mas como processo relacional e constitutivo. O texto está organizado em três partes. A primeira parte trata da origem dos mil dias, apresenta o olhar da saúde sobre esse período, define atenção integral e discute o marco legal da primeira infância, que se propõe a articular políticas intersetoriais. A segunda parte trata da educação como um direito que abarca outros direitos, discute a qualidade da oferta da Educação Infantil para o desenvolvimento integral das crianças, a não dissociação entre cuidar e educar, traz questões para discutir o desenvolvimento das crianças nos primeiros anos de vida e a docência na Educação Infantil. Na terceira parte conclui com indagações para as políticas voltadas para a primeira infância, com ênfase nos primeiros mil dias, as quais são fundamentais para o pleno desenvolvimento das crianças, para o aprimoramento das sociedades e diminuição de desigualdades.

Os mil dias e a saúde

Em 2008, o The Lancet publicou uma série de artigos sobre desnutrição materno-infantil que identificou a necessidade de focalizar os cuidados no período que vai desde a concepção até o final do segundo ano de vida da criança – os primeiros mil dias –, apontando que uma boa nutrição e crescimento saudável teriam benefícios que durariam por toda a vida (BHUTTA et al., 2008).

Desde a publicação dessa série, o conceito dos primeiros mil dias tem sido adotado por agências e organizações não governamentais internacionais1, utilizado como referência por pesquisadores da área da saúde2 e mencionado em artigos científicos3.

O período dos primeiros mil dias passou a ser considerado importante para intervenções que garantam nutrição e desenvolvimento saudáveis, que trarão benefícios em todo o ciclo de vida. Segundo Cunha, Leite e Almeida (2015), as crianças devem receber alimentação adequada por meio de nutrição pré-natal adequada, aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses, adição de alimentos complementares adequados e continuação da amamentação até os dois anos. Face à condição de dependência absoluta de cuidados de um adulto, é fundamental que tenham um ambiente propício e acolhedor necessário para desenvolver laços fortes com seus cuidadores, lançando as bases para um desenvolvimento pleno e saudável (CUNHA; LEITE; ALMEIDA, 2015).

Assim, os primeiros mil dias da criança incluem os 270 dias da gestação e os 730 dias até que o bebê complete dois anos e tem sido considerado como de grande importância para a saúde na fase adulta. Nesse período, o ser humano experimenta o maior estirão de crescimento. Além disso, são os anos fundamentais para o desenvolvimento de dois dos mais importantes sistemas do corpo humano: o nervoso e o imunológico. Nesse período também ocorre a formação de bons hábitos alimentares, que aumentarão as chances de a criança se tornar um adulto saudável (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021b).

Portanto, tanto a nutrição adequada, especialmente desde a concepção até os dois anos, quanto a estimulação precoce nos primeiros cinco anos de vida desempenham um papel crítico no processo de formação e desenvolvimento cerebral e contribuem decisivamente para o pleno desenvolvimento da criança (NELSON; HAAN; THOMAS, 2006).

A contagem dos primeiros mil dias começa na gravidez em função de a gestação impactar na saúde física e emocional do feto (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a). A alimentação da mãe durante esse período ajuda a determinar o paladar e o olfato do bebê, uma vez que fatores que os determinam podem passar para o líquido amniótico (VALLE; EUCLYDES, 2007). O desenvolvimento neurológico também é muito intenso na vida intrauterina e infelizmente pode sofrer influências indesejáveis de vários fatores, como o fumo, drogas e medicamentos ingeridos pela mãe (GRANTHAM-MCGREGOR et al., 2007; BLACK et al., 2016). O fumo, por exemplo, por meio de seus componentes, pode levar ao estreitamento do cordão umbilical para evitar a contaminação do feto, porém também pode levar à oferta de menos nutrientes a ele (LEOPÉRCIO; GIGLIOTTI, 2004). Esse é também o período em que o cérebro mais precisa de estímulos, uma vez que 90% das conexões cerebrais são estabelecidas até os seis anos. Em outras palavras, as interações sociais contribuem para impulsionar a atividade cerebral (ZERO TO THREE, 2021).

Em relação ao desenvolvimento neurológico, apesar de o bebê já nascer com o cérebro desenvolvido em relação a aspectos sensoriais, como o tato, a audição e o olfato, é nesse período que o órgão passa por grandes modificações cognitivas. Nos primeiros mil dias, as células cerebrais podem fazer até mil novas conexões a cada segundo, uma velocidade que ocorre somente nesse período da vida. Essas conexões contribuem para o pleno funcionamento do cérebro no futuro e para a aprendizagem das crianças (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a).

Até mesmo o campo da Macroeconomia tem apontado a importância dos mil dias das crianças, trazendo mais argumentos para a valorização desse período. James Heckman, economista americano, ganhador do prêmio Nobel de economia em 2000, a partir de uma série de estudos, chegou à equação (Equação Heckman) de que a para cada US$ 1 investido na primeira infância se tem US$ 7 de retorno na vida adulta. Em que pesem questões mais pontuais e de ordem local, seus estudos concluem que esse retorno se expressa em função, por exemplo, de menores índices de violência e de evasão escolar, assim como de menos gastos com tratamento de doenças evitáveis (WEINBERG, 2017).

Além disso, esses estudos mostram a correlação entre a nutrição adequada na primeira infância e o melhor desempenho escolar, o que, para o economista, pode impactar positivamente o Produto Interno Bruto (PIB) de um país (WEINBERG, 2017). Portanto, o argumento do investimento nesse período da vida aponta possíveis resultados favoráveis não somente para o próprio indivíduo, seja na infância ou na vida adulta, como também para a sociedade (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021b).

Em relação à nutrição, a alimentação apropriada para os primeiros mil dias inclui uma dieta equilibrada da mãe na gravidez, o aleitamento materno exclusivo nos seis primeiros meses de vida do bebê e, a partir daí, a introdução de alimentos, como água, sucos, chás e papinhas. Estudos4 têm mostrado que o aleitamento materno exclusivo até os seis meses de vida favorece o desempenho intelectual e reduz o risco de vir a desenvolver obesidade e doenças cardiovasculares na vida adulta. É importante ressaltar que os bebês triplicam o peso do nascimento no primeiro ano de vida e, até os dois anos, acontece a formação dos hábitos alimentares que a criança levará pelo resto da vida (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a).

Em relação ao afeto e cuidados, as evidências indicam que crianças crescem melhor quando são amadas (LUBY, 2020). Carinho, afeto e contato físico são essenciais para estabelecer e fortalecer os vínculos entre pais e filhos e ajudam a aumentar a imunidade do bebê. Experiências vividas na primeira infância afetam a formação do cérebro da criança em áreas relacionadas com a empatia e as emoções (STREET; SMITH, 2003). A parte do cérebro relacionada à memória, aprendizagem e autocontrole, chamada hipocampo, cresce duas vezes mais rápido nas crianças que recebem mais apoio emocional da mãe do que as que não recebem (KONKIEWITZ, 2013). Esse processo começa ainda na gestação, pois o feto já demonstra capacidade de audição desde a sexta semana de gravidez, podendo reconhecer a voz dos pais e captar todas as emoções que as acompanham.

Uma das atividades mais importantes das crianças é o brincar, desde os primeiros dias. Balançar o chocalho para um bebê de um mês, por exemplo, faz com que ele ouça o som e associe ao movimento. Com crianças maiores, brincar é importante para o desenvolvimento integral – cognitivo, afetivo, linguístico –, além de favorecer o exercício da autonomia, possibilitando que elas sejam mais independentes e autoconfiantes (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a).

Crianças de dois a quatro anos que têm contato com livros, que brincam em parques ou praças nos dois primeiros anos de vida apresentam resultados melhores em testes específicos de memória, inteligência e cognição (PRIMEIROS 1000 DIAS, 2021a). Esses estudos sobre os mil dias evidenciam que não é apenas a genética que determina o potencial de crescimento e desenvolvimento do ser humano, mas a forte presença do outro e a relação com a cultura. Em suma, oferecer condições que favoreçam o desenvolvimento infantil nos primeiros anos de vida tem importância vida afora e gera menos custo do que buscar reverter ou minimizar os problemas em períodos posteriores.

Procuramos neste tópico apresentar o conceito e a importância dos mil dias para o ser humano. A atenção à saúde deve considerar esse conhecimento quando implementada a nível individual ou quando são formuladas políticas de atenção à saúde da criança. A seguir, apresentamos o conceito de atenção integral à saúde da criança, que tem relação indissociável com a implementação de ações relacionadas ao conceito dos mil dias.

Atenção integral à saúde da criança

Os fundamentos da atenção à saúde da criança nesse período da vida, ou seja, nos mil dias, não devem ser distintos daqueles voltados para crianças de outras faixas etárias, apesar de ter algumas ações que são específicas desse período. O princípio fundamental vem a ser a atenção integral à saúde da criança. Essa atenção integral, segundo o Ministério da Saúde (MEC), tem como objetivo promover e proteger a saúde da criança e o aleitamento materno, mediante atenção e cuidados integrais e integrados, da gestação aos nove anos de vida, com especial atenção à primeira infância e às populações de maior vulnerabilidade, visando à redução da morbimortalidade e um ambiente facilitador ao desenvolvimento saudável (BRASIL, 2018).

Para que essa atenção à saúde possa ser efetiva é necessário incluir aspectos de promoção à saúde, prevenção de agravos, atenção a doenças e medidas de reabilitação para os que forem acometidos. Em relação à atenção a doenças, devem ser priorizadas as mais comuns, conhecidas como mais prevalentes. Além disso, deve ser garantido que os três níveis de atenção à saúde sejam oferecidos e estejam integrados, a saber: a atenção primária, secundária e terciária, incluindo a atenção especializada a doenças de maior gravidade.

Em relação às ações específicas para os primeiros dois anos de vida, em especial para o primeiro ano, preconiza-se que a criança tenha consultas do que se costuma chamar de puericultura. Nessas consultas, o profissional de saúde monitora o crescimento e o desenvolvimento da criança para buscar formas de garantir que ela se mantenha saudável. Para atenção a doenças, a porta de entrada do sistema se dá pela atenção primária à saúde, que, no Brasil, está inserida na Estratégia Saúde da Família.

A Estratégia Saúde da Família visa à reorganização da atenção básica no país, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde (SUS), e é tida pelo Ministério da Saúde e gestores estaduais e municipais como estratégia de expansão, qualificação e consolidação da atenção básica por favorecer uma reorientação do processo de trabalho com maior potencial de aprofundar os princípios, diretrizes e fundamentos da atenção básica, de ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades, além de propiciar uma importante relação custo-efetividade (BRASIL, 2021).

Um ponto importante é o estabelecimento de uma equipe multiprofissional, denominada equipe de Saúde da Família (eSF), composta por, no mínimo: i) médico generalista, ou especialista em Saúde da Família, ou médico de Família e Comunidade; ii) enfermeiro generalista ou especialista em Saúde da Família; iii) auxiliar ou técnico de enfermagem; e iv) agentes comunitários de saúde. Podem ser acrescentados a essa composição os profissionais de saúde bucal: cirurgião-dentista generalista ou especialista em Saúde da Família, auxiliar e/ou técnico em saúde bucal (BRASIL, 2021).

Podemos observar que a legislação referente à saúde das crianças e das famílias tem caminhado em direção a um atendimento integral. Muito já se conquistou em relação ao SUS e ao atendimento em geral. Uma prova disso tem sido o enfrentamento da pandemia de COVID-19. Entretanto, os recursos destinados à saúde nem sempre são suficientes, e a gestão pública de recursos e projetos, muitas vezes, não são eficientes no atendimento da demanda.

1 – Cf. World Health Organization (2013); Thousand Days (2015)
2 – Cf. Elmadfa e Meyer (2012).
3 – Cf. Woo Baidal et al. (2016).
4 – Cf. Primeiros 1000 dias (2021a); Cunha, Leite e Almeida (2015).
Antonio José Ledo Alves da Cunha acunha@medicina.ufrj.br

Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil. Coordenador do Laboratório Multidisciplinar de Epidemiologia e Saúde – LAMPES, da Faculdade de Medicina da UFRJ. Pesquisador 1-B do CNPq. Cientista de Nosso Estado, FAPERJ. Doutor em Epidemiologia. Mestre em Saúde Pública e em Pediatria. 

Patrícia Corsino  corsinopat@gmail.com

Pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Pontífica Universidade Católica – PUC, Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutorado pela Università degli Studi di Pavia, Itália; Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Brasil. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Infância, Linguagem e Educação – GEPILE.