Foto: Pxhere

Comuna da Terra D. Tomás Balduíno: aproximações a partir de palavras e imagens criadas por crianças assentadas



Fotografias produzida por um grupo de crianças (acervo das autoras)

“O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro.”
(Haroldo de Campos)

Revolver a terra, para começar

É conhecida a histórica e estrutural desigualdade social no Brasil. Uma de suas faces expõe o acesso à terra como expressão de privilégio e força de alguns pequenos e poderosos grupos sociais ao longo de séculos, em que predomina a grande concentração fundiária, gerando aumento da pobreza1, conflitos pelas terras no campo e o duro caminho de enfrentamento das agruras sociais que são diariamente expostas ao grande contingente de moradores e trabalhadores. Ao longo de séculos, no Brasil, foram se materializando os impasses e colocando a lume a urgência em se debater sobre as disputas e usos de terras e, ao mesmo tempo, projetar formas justas e igualitárias de viver no campo e na cidade.

Apesar de importante produção acadêmica alusiva aos conhecimentos e experiência com o saber dos moradores e moradoras do campo, sobretudo quando aliadas aos campos teóricos da educação e infância – notadamente em Edna Rossetto (2009; 2016), Roseli Caldart (2000; 2014), Ana Paula Soares da Silva; Jaqueline Pasuch e Juliana Benzonn da Silva (2012), Ana Paula Soares da Silva (2014) e outros –, consideramos que há ainda a necessidade de se conhecer o cotidiano das comunidades de moradores do campo que, na disputa pela terra, têm suas vozes e corpos desqualificados. Tal fato leva ao desconhecimento de suas formas de vida, lutas, projetos políticos e conquistas e à naturalização das mesmas como sendo menos importantes. Trata-se de um amplo processo de desconsideração, cujo propósito e risco são os de cairmos num amplo e vagaroso curso de apagamento desses grupos e silenciamento de suas vozes e reivindicações.

Acreditamos na presença de um idioma da infância da terra, em que seus ditos – pela palavra, pelas imagens, pelo corpo e gestos – são fundamentais, diferentes e pouco conhecidos. Idioma em gestos e corpos que, ao se colocarem em público e em práticas políticas, tais como em assembleias, na lida com a terra ou nas Cirandas Infantis, sobre o que escreveremos mais adiante, dão o tom da trajetória e da vida em ocupações e assentamentos e nos mostram um tempo presente que, se é de luta permanente, é também de conquistas e projeção de futuro de igualdade de direitos e melhores condições de vida. O Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST), em sua força e gestos, coloca-se como obstáculos que atravessam e contrariam a imposição de um tempo de extermínio de ideias e propostas igualitárias, políticas e coletivas de organização e práticas sociais e políticas.

Achille Mbembe (2016) tem inspirado a pensar sobre a presença soberana daqueles que agem como se tivessem o direito de matar e escolher quais grupos devem viver e quais podem ser exterminados. Morte não apenas do corpo físico, mas de propostas e projetos de determinados grupos, de ações e relações com o outro, de jeitos de estar e se posicionar no mundo. Refletir sobre essa asserção permitiu-nos compreender os lutadores pela terra, seu direito a nela viver e tirar dela seu justo sustento como prática que freia, prende e altera, ainda que com vagar, as intempestivas formas e técnicas de morte atualmente em curso, em que “exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder” (Mbembe, 2016, p. 123). Ressalta-se que as crianças estão compreendidas nesse processo e, por isso, acreditamos que suas presenças são fundamentais como marcos a registrar suas existências e formas de compreender o mundo, um forte e sublime modo de resistir.

Saskia Sassen (2016) aproxima-se dessa reflexão incluindo outro elemento. O que temos, segundo ela, é uma lógica de expulsões de pessoas e grupos sociais de seus lugares de origem, derivando, por vezes, em sua completa exclusão do mapa. A autora levanta uma importante tese: a de que estamos diante de formações predatórias, e não mais de uma elite predatória, que domina partes do mundo e impõe seus modos de gerir, diríamos aqui, não apenas a economia, mas, com ela, modos de pensar e agir, formas de organizações sociais e culturais. Assim, afirmamos que o MST encontra-se na contramão dessa lógica capitalista que centrifuga ideias e práticas sociais igualitárias, e o que nos interessa, aqui, envolvendo as crianças como grupos que não podem ser esquecidos, cujas vozes engrossam e adensam reivindicações.

Partindo de um amplo espectro de contextos sociais de luta pela terra, em especial, impulsionados pelo MST, apresentamos reflexões a partir de um recorte bastante delineado: considera-se as crianças assentadas e suas singulares formas de luta radicadas à terra e a seus modos de vida e maneiras peculiares de ver o mundo do campo. São trazidos aqui alguns aspectos da vida das crianças num assentamento urbano do MST, Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, mostrando imagens fotográficas criadas coletivamente por 12 meninos e meninas em idades que variam dos 5 aos 12 anos, que, em pequenos grupos, captaram cenas cotidianas escolhidas por eles e elas.

Não há aqui qualquer pretensão de esgotarmos o tema infância no campo, ou mesmo, de apresentarmos um texto que reúna somente as vozes e os pontos de vista das crianças. Embora importantes, de acordo com nossa estada em campo, as falas e a captação artesanal de imagens foram se entrecruzando e tecendo falas coletivamente. Assim, procuramos trazer, ainda que de modo muito breve, um pequeno pedaço da Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, ora indiretamente por nossa narrativa de adultas pesquisadoras, ora pelas falas das crianças e fotografias por elas elaboradas.


Fotografias produzidas por um grupo de crianças (acervo das autoras)

A Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno situa-se a 45 quilômetros da cidade de São Paulo, sendo município de Franco da Rocha. É desta Comuna do MST – como são definidos os assentamentos dentro de grandes cidades – que partimos para a escrita deste ensaio, convidando leitores e leitoras a participarem conosco do que está representado como um recorte da pesquisa Ser menina e ser menino no assentamento MST: o que as crianças registram em suas máquinas fotográficas?2, que buscou conhecer relações cotidianas entre meninas e meninos assentados, porém, na luta pela terra, pela reforma agrária e pela organização dos trabalhadores rurais nesse mesmo assentamento, junto a adultos e adultas, familiares ou não.

Apresentamos reflexões que buscam, de modo amplo, aproximações com o cotidiano infantil no assentamento a partir de fotografias produzidas pelas próprias crianças como parte de uma série de vivências e experiências envolvendo a produção de imagens ao longo da abordagem metodológica da pesquisa. Ressaltamos as crianças como criadoras das fotografias, aqui afirmadas como fontes documentais e manifestações expressivas. São elas, junto a homens e mulheres, as inventalínguas, como diria o poeta, a expressar compreensões e projeções de tantas formas de lidar e estar no mundo e, nesse caso, no mundo do campo.

A pesquisa referida foi desenvolvida com as crianças dentro do assentamento em situações que envolviam relações com a família, passeios pela Dom Tomás acompanhados pelas crianças, e participação de encontro regional com os Sem Terrinha, que acontece anualmente em diferentes regiões do Brasil. Sem Terrinha é o modo como são denominadas as crianças no MST, o qual, segundo Liene de Lira Da Matta (2015), evoca a pertença ao movimento social, como sujeito-criança. A participação resultou de convite aberto feito por Maria, responsável pela Ciranda Infantil.

Neste ensaio, consideramos apenas a prática de oficinas de fotografia pinhole realizadas na Ciranda Infantil. Ao longo de oito meses, frequentamos o assentamento, que conta atualmente com 62 famílias e muitas crianças de todas as idades. Plantações emolduram o local, em especial as de ervas para cosméticos, que foram apresentadas com orgulho de conquista e expectativas de futuro ao ampliar o tamanho da plantação e produção. Optamos pela fotografia como forma de capturar cenas do cotidiano, elaboradas pelas crianças. O trabalho com a técnica fotográfica pinhole, de caráter artesanal, implica longo tempo de investigação do cenário ou objeto a ser fotografado. Marisa Mokarzel (2014), ao definir pinhole a partir das práticas do fotógrafo Miguel Chikaoka, afirmará que processo é a palavra-chave para compreendermos essa técnica fotográfica em que se considera a troca de afetos, conhecimentos e a interação humana como pontos fortes.

As câmeras são feitas em latas reutilizadas de diferentes tamanhos. Brincar com a lata e buscar o objeto a ser fotografado compõem um jogo entre todos os participantes, num rico processo que envolve conhecer a cena fotografada e reconhecê-la, ao mesmo tempo que a todo o percurso de revelação, em que se experimenta a fotografia, confeccionando a lata e revelando a fotografia num local escuro. É válido ressaltar que, junto às crianças, temos, nesse momento, um dos pontos altos desse caminho.

Ao longo de seis oficinas, foram criadas 30 fotos, numa média de duas a três por grupos de crianças. É apresentada aqui apenas uma mostra de seis fotografias que julgamos representativas do conjunto3. No decorrer do percurso feito em caminhadas para se captar em sentidos diversos o espaço físico/ambiente do assentamento, foram se constituindo grupos de crianças de idades variadas. A observação e feitura de câmeras para, posteriormente, elaborar e revelar as fotos resultaram em fotografias coletivas, ou seja, realizadas por grupos de crianças fotografando ao longo do percurso. Optamos por não colocar o nome de um único autor para não nos arriscarmos a deixar alguém de fora sem a devida referência nominal, mas informamos que todos os grupos foram formados por meninas e meninos e que os mesmos se faziam e desfaziam constantemente, a depender da proposta e das motivações sugeridas no próprio campo de pesquisa.

Como mencionado, o ponto de vista das crianças encontra-se presentificado ora de modo indireto em nossas narrativas, ora pelas fotografias criadas por elas e em outras passagens com suas observações durante o percurso das investigações. Para tanto, buscamos a construção de um texto que entrecruza vários olhos de crianças e adultas. Temos aqui uma coautoria. Somos três mulheres a escrever: Marcia, Maria e Paula, esta última, à época, moradora do assentamento aqui referido, cujo olhar, fundamental, conduziu-nos à melhor compreensão do local, bem como possibilitou nossa entrada no espaço. Escrevemos juntas parte desta história de pesquisa, com a qual também se luta.

1 – Vale destacar o retrocesso que está sendo imposto à população brasileira e às conquistas relativas à democracia e outras de caráter social e econômico. Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra: desde 2003, a violência no campo no Brasil não era tão alta quanto foi em 2017. O número é 16,4% maior que em 2016, quando aconteceram 61 assassinatos, e quase o dobro de 2014, com 36 vítimas. A análise consta no relatório Conflitos no Campo Brasil 2017, Comissão Pastoral da Terra (CPT).
2 – A investigação contou com a coordenação de Daniela Finco, UNIFESP – Guarulhos e o financiamento do CNPq, entre os anos 2010 e 2012, e teve como integrantes as coautoras deste trabalho.
3 – Em algumas poucas passagens optamos por repetir algumas fotos com o objetivo de ressaltar imagens e reflexões delas advindas.
Marcia Gobbi mgobbi@usp.br

Graduada e licenciada em Ciências Sociais - Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestrado e Doutorado em Educação, Sociedade e Cultura - Universidade de Campinas (UNICAMP), Brasil. Professora Doutora da Faculdade de Educação - USP.

Maria Cristina Stello Leite mariastello@gmail.com

Graduada e licenciada em Ciências Sociais - Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestrado em Educação - Faculdade de Educação - USP e doutoranda na mesma instituição.

Paula França pauladasilvafranca@gmail.com

Pedagoga - Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Brasil, do curso Pedagogia da Terra. Militante e coordenadora regional de Educação do Movimento dos/as Trabalhadores/as Rurais sem Terra (MST), Brasil.