Foto: Leo Lopes

Crianças, jovens e suas famílias nas esquadrias da epidemia do HIV/AIDS

AIDS, infâncias e juventudes

A AIDS é uma epidemia com mais de 30 anos, que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, trazendo muitas dores, perdas, aprendizados e desafios para as políticas públicas e para a sociedade, especialmente em setores como saúde, educação, seguridade social ou trabalho.

A infecção pelo vírus HIV, mais do que se reduzir apenas à dimensão da presença de um vírus em um organismo, configurou-se como uma complexa relação de elementos socioculturais, principalmente ligados à sexualidade e relações de gênero. Além disso, fatores como raça/etnia, geração ou classe são preponderantes para os desenhos da epidemia e suas leituras.

Muito já foi dito sobre a AIDS, desde a fragilidade das concepções que a alocaram em grupos de risco, ou que atribuem a infecção a comportamentos de risco, até chegarmos no momento atual, no qual, para entender a epidemia, o quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos pode oferecer subsídios. Neste texto, recorto o olhar para a dimensão da infância e juventude afetada pela epidemia da AIDS.

O primeiro caso de AIDS em crianças no Brasil foi identificado na década de 1980. Naquele tempo, várias famílias (pai/mãe/avós) enfrentavam dificuldades para cuidar das crianças e a perspectiva é que elas morreriam. A resposta oferecida pela sociedade civil (e apoiada pelas políticas públicas) foi a criação de casas de apoio, que abrigassem as crianças até sua morte. O advento da terapia antirretroviral, denominada popularmente de “coquetel”, transformou esta realidade porque adultos, jovens e crianças – que antes tinham a morte como sina – começaram a sobreviver (e viver).

Esse contexto foi bem recebido pelas instituições que abrigavam crianças, mas trouxe a questão que, nas décadas de 1990 e 2000, tocava muitos dos envolvidos com esta pauta: as crianças cresceram, e agora? O que fazer, como fazer, tanto no âmbito da sexualidade, como na construção de perspectivas de vida fora dos abrigos? (Abadia-Barrero, 2002; Cruz, 2005).

Casas de apoio aparecem como resposta social a partir daquilo que se identifica como a necessidade das crianças. Contudo, quem define essas necessidades? A partir de que elementos?

A resposta comunitária foi muito corajosa, mas a alternativa apresentada não estava descolada das concepções de infância e do que historicamente foi concebido como atendimento adequado para a infância pobre e doente. A resposta comunitária estava ancorada em três fios: atendimento da infância pobre em instituições, conceito de família e lugar social da diferença (Cruz, 2005).

Isto quer dizer que pensar instituições de apoio para crianças e jovens com AIDS está associado a concepções de que existe uma família ideal e que ela é pautada em um modelo nuclear (pai, mãe, filhos), saudável, com condições econômicas e sociais também idealizadas e consideradas adequadas para a educação de crianças. A família real, com suas pluralidades e fragilidades, na medida em que não atende a este ideal, é desvalorizada e desqualificada. No caso da AIDS, agrega-se o fato de que tanto crianças e jovens como famílias carregam o estigma e discriminação associados ao HIV/AIDS.

Hoje o preconceito é acirrado, mas quando surgiram as primeiras casas de apoio – no final da década de 1980, início da década de 1990 –, o preconceito em relação aos portadores de HIV/AIDS era ainda maior. E a AIDS configurava-se como uma ameaça de morte; neste sentido, os portadores do HIV eram vistos como “diferentes”. E o que fazer com aqueles que são diferentes? A criação de um lugar específico para quem tem AIDS, ao mesmo tempo em que se configurou como apoio, também revelou o modo que a sociedade tem para lidar com a diferença (criando espaços específicos e por vezes isolados)3.

A infância que se produziu nos discursos deste período é aquela que não seria (em decorrência da morte) e a juventude é a que viria a ser (porque ao jovem caberia o futuro). Por isso, naquele momento da epidemia (e ainda hoje), há dificuldade para lidar com o jovem no tempo presente, com as exigências de vida, liberdade e desejo que os jovens, como qualquer pessoa, podem trazer (Cruz, 2005).

Há uma dinamicidade na epidemia da AIDS, e o que acontecia nas décadas de 1980 e 1990 não é exatamente o mesmo que acontece nesta década. Felizmente, menos crianças nascem com HIV e, portanto, temos um número menor de jovens que são portadores do HIV/AIDS através da transmissão vertical. Entretanto, ainda temos crianças e jovens em abrigos e, infelizmente, a AIDS aumenta entre jovens, especialmente entre jovens gays.

França Junior, Doring e Stella (2006) desenham um quadro da epidemia que permanece atual.

[…] A resposta brasileira, até o momento, é limitada à assistência médica para crianças e adolescentes portadores do HIV/AIDS, ao combate à transmissão vertical do HIV e ao financiamento da instalação e manutenção de casas de apoio (abrigos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente) para infectados afetados, órfãos ou não. Essas medidas são insuficientes para garantir um ambiente de apoio para órfãos, crianças e adolescentes infectados ou afetados pelo HIV/AIDS (França Junior, Doring, Stella, 2006, p. 23).

Vale agregar que, na atualidade, temos muitos jovens infectados pelo HIV através de transmissão sexual e/ou uso de drogas e que há fragilidade no âmbito das políticas públicas voltadas para o apoio da juventude com HIV/AIDS. No contexto da assistência, muitos profissionais de equipe interdisciplinar buscam contemplar a dimensão biopsicossocial, contudo, a visão que ainda prevalece no campo da atenção é predominantemente biomédica, o que restringe o olhar para uma perspectiva de saúde integral.

3 – Este debate é explorado com mais detalhes em Cruz (2005).

Elizabete Franco Cruz betefranco@usp.br

Psicóloga, Mestre em Psicologia Social, Doutora em Educação. Professora do Curso de Obstetrícia e do Mestrado em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, Brasil.